sábado, 25 de maio de 2013

PENSAR DÓI

Existem perguntas fundamentais que me afligem.
                           Como na mitologia, habita em mim uma esfinge propondo enigmas me exigindo respostas, para que eu não me veja devorado por mim mesmo.
                           O mais só podia ser como é, e nada de novo me surpreende, só confirma o esperado.
                           Não faz diferença se enveredamos pela estrada da religião ou da ciência porque ambas terminam num beco sem saída.
                           Acompanhe-me primeiro pela estrada da religião, ou da metafísica, como preferem chamar os materialistas: todas as religiões têm em comum a crença na existência de divindades, de um ou vários deuses, criador ou criadores do universo.
                           Não questionarei como fez ou fizeram, porque está além da nossa compreensão, ultrapassa qualquer possibilidade de especulação, a menos que sejamos totalmente ignorantes da complexidade e da imensidão do universo e toda a sua fauna cósmica: planetas, satélites, cometas, asteróides, meteoros, estrelas, pulsares, quasares, estrelas neutrônicas, magnetrônicas, gigantes vermelhas, anãs brancas, supernovas, constelações, galáxias, buracos negros, buracos brancos, antimatéria, matéria escura, energia escura, poeira cósmica, nebulosas... Em quantidade infinitamente maior que o número de grãos de areia em nosso planeta, tudo em movimento, em permanente mutação, uns transformando-se nos outros, numa constante evolução.
                           Aceitar um deus simplista, feito à imagem e semelhança do homem, é apequenar deus, fazê-lo um homem melhorado.
                           A questão central não é como fez, mas porque fez, com que intenção, com que propósito.
                           Esse papo de para a própria graça, para dar testemunho de si... Não vale.
                           Amor e poder são incompatíveis com a vaidade.
                           Como não admito a leviandade e a inconsequência em um deus, deve haver uma intenção, um propósito. Qual?
                           Sob o ponto de vista religioso esta é a questão central em meus pensamentos.
                           Descartando-se deus e ficando no meramente material: porque existe tudo quando seria muito mais fácil e simples não existir?
                           Antes do instante zero do big-bang não existia nada, a partir do que passou a existir tudo o que conhecemos, por evolução.
                           Isto violenta a lei de conservação da matéria e energia, que não podem surgir do nada.
                           Aí os sábios vêm me dizer que a lei de conservação da matéria e energia é inerente à matéria e à energia criadas no big-bang.
                           Tudo bem. Então quais eram as leis que determinaram o big-bang? O que motivou a ignição, a grande explosão?
                           Voltam os sábios: como somos frutos da evolução pós big-bang, jamais teremos condições de entender ou sequer imaginar o que o antecedeu.
                           É frustrante.
                           A outra questão é a da expansão do Universo. Não é se está em expansão ou não. Está por demais provado que está se expandindo, crescendo.
                           Ora, qualquer criança sabe que crescer é ocupar mais espaço, só que o espaço está no interior do universo, faz parte do universo, formado junto com a matéria e a energia, no big-bang.
                           Se não há espaço fora, como cresce? Cresce para onde? Como ocupar mais espaço na inexistência de espaço?
                           Formar uma imagem mental disso, pelo menos para mim, é um desafio e um suplício.
                           Estas são perguntas tão fundamentais que, sem respostas, transformam as religiões em opiniões e as ciências em meras descrições.
                           É como se homens primitivos observassem um avião pela primeira vez: uns diriam que se trata de uma cruz no céu, imediatamente associando a forças sobrenaturais, sem provas.
                           Estariam fazendo religião.
                           Outros observariam mais atentamente a forma, cor, brilho, a velocidade de deslocamento, direção, som das turbinas... Propondo um modelo, uma possibilidade para o que observaram.
                           Estariam fazendo ciência, sem que nem uns nem outros viessem a entender o que é um avião.
                           Em âmbito mais restrito, a questão da vida: por que é que a matéria bruta evoluiu para a vida? Esta era a opção única? E por que é que a vida evoluiu para a consciência?
                           Uma das afirmações mais fantásticas que já li é de Engels*: “Com o aparecimento do Homem a natureza criou consciência de si.”
                           A consciência é privilégio do homem ou é um fenômeno universal?
                           É atributo da matéria organizada ou a matéria se organiza a partir de uma consciência ou da consciência? .
                           Essas são as perguntas que me faço desde a adolescência, incomodando-me em cada dia da vida, levando-me aos livros, a longas conversas e profundas reflexões, e para as quais sei que não terei respostas.
                           Voltaire** afirmou invejar profundamente a ignorância da vizinha, afirmando que na ignorância residia a felicidade dela.
                           Não chego ao radicalismo de Voltaire, mas entendo a felicidade como a organização mental, a harmonia mental, a coerência entre a razão e os sentimentos.
                           Na medida em que adquirimos conhecimento ampliamos a mente, tornando-a maior e mais complexa, dificultando a presença da felicidade.
                           É mais fácil administrar um pequeno quintal que manter limpo e arrumado um latifúndio.
                           Voltaire sabia das coisas.
                           Fácil e bom ser um fanático religioso, com tudo pronto, encaixadinho. Mais fácil um bobo alegre na esquina, na calçada, discutindo futebol ou a roupa do vizinho.
                           Pensar é que dói.

* N. E.: Engels: filósofo alemão que ao lado de Karl Marx criou as bases teóricas do socialismo moderno.
** N. E.: Voltaire: filósofo de um movimento que ficou conhecido por Iluminismo. 

In "Não Haverá Mais Natais", romance autobiográfico.

NÃO CONGREGO

A pergunta que mais me fazem é se tenho religião, qual é a minha religião, se “freqüento” alguma religião, se acredito em Deus, onde “congrego”...
                           Engraçado é que perdi a conta do número de vezes em que os protestantes, inconscientemente, em ato falho, trocaram o professor por pastor.
                           Agora, comigo trabalhando como voluntário em um abrigo de orientação protestante, o negócio tomou tamanha rotina que já não corrijo mais.
                           Normalmente respondo afirmando não ter religião, ou me dizendo ecumênico, com as pessoas surpreendidas, sem saber que “religião” é essa.
                           A primeira coisa a esclarecer é que não ter religião não é o mesmo que ser ateu.
                           Fui materialista por uns bons anos, apoiado na literatura marxista, na dialética, e voltei ao teísmo (crença num deus) por absoluto vazio intelectual.
                           A minha crença em Deus não é questão de fé, de “conhecimento” incutido por tradição familiar ou leitura de textos religiosos, é uma necessidade intelectual para entender e explicar a realidade.
                           Só não me subordino a doutrinas, por entendê-las excludentes (não aceitam as outras), prepotentes (acreditam-se donas da verdade, proprietárias dos segredos divinos), primitivas (humanizam Deus, atribuindo-Lhe os mesmos sentimentos humanos, miúdos e limitados) e reducionistas (consideram que já está tudo explicado nos textos religiosos).
                           Noto muita má fé, manobra ideológica e ignorância (no sentido de ignorar, desconhecer) entre as lideranças religiosas.
                           Aceito que neguem a evolução, o big-bang, a materialidade dos fenômenos naturais, o que quiserem, desde que saibam do que estão falando, que conheçam o assunto, sob pena de estarem repetindo uma criança em defesa de Papai Noel ou da cegonha.
                           Só tem autoridade para aceitar ou negar qualquer teoria quem a conheça, sob pena de crassa ignorância, de leviandade, o que não seria de se esperar em quem se pretende orientador do próximo ou porta-voz das vontades divinas.
                           No passado acreditamos na Terra como o centro do Universo e o homem criado à imagem e semelhança de Deus, fisicamente mesmo* (é só consultar os documentos da época, sobre os quais os artistas plásticos criaram as suas obras e que estão ai pelos museus até hoje).
                               Nada mais lógico. Se o homem era o centro da criação, o planeta em que habitava deveria ser o centro do Universo, com tudo girando em torno dele, Deus próximo e com a incumbência única de vigiar e orientar o seu rebanho.
                           Aí descobrimos que nosso planeta não era o centro de nada, mas que girava em torno do Sol. E o sistema solar passou a ser o centro do universo, decrescendo a nossa importância.
                           Aí descobrimos que o Sol só era o centro do Sistema Solar, girando em torno de um imenso Buraco Negro, situado no centro da nossa galáxia, a Via Láctea.
                           E mais descobrimos: que estamos na periferia da galáxia, lá nos subúrbios cósmicos, e que o Sol é uma das menores, menos brilhantes e mais frias estrelas, uma insignificância diante do Universo.
                           Aí a Via Láctea passou a ser o centro do Universo, ou melhor: todo o universo era a Via Láctea, lar da principal criação de Deus.
                           Aí descobrimos que existem bilhões de galáxias, cada uma delas com bilhões de sóis, e que a Via Láctea é uma das menores.
                           Aí, recentemente, descobrimos que cada estrela, ou pelo menos a maioria das estrelas, tem planetas girando em torno de si, exatamente como o Sol, abrindo infinitas possibilidades para infinitas formas de vida.
                           E de aí em aí... Descobrimos que não somos o centro de nada, senão de nós mesmos**.
                           As religiões não evoluíram junto com a evolução do conhecimento humano, e o Deus responsável por isso tudo continua aquele mesmo do tempo em que acreditávamos que morava aqui ao lado, quando tudo girava em torno de nós e o Universo acabava ali adiante.
                           Nos informamos e oramos pelos mesmos textos dessa época, e o que não se enquadra nos textos é simplesmente abandonado, desconsiderado, seja por dizerem que é mentira, má fé da ciência ou obra de forças malignas, quando não ridicularizam os que defendem os postulados científicos, esquecendo que não é uma questão de crer ou não crer, mas de apontar o telescópio ou o microscópio e ver.
                           A argumentação, para essa posição, é de que os textos religiosos foram “inspirados”.
                           Tudo bem, desde que se aceite que foram inspirados para aquela época, porque hoje, pelas inconsistências e contradições, só forçando uma boa barra e afirmando que a linguagem é figurada, imprópria a uma interpretação literal, como fazem.
                           Não consigo ir a uma igreja ou a um templo para ouvir que “a ciência afirma que o homem veio do macaco”, com o cara ridicularizando Darwin e todos os evolucionistas.
                           Li toda a obra de Darwin*** e não há tal afirmação.
                           Quando vão ao púlpito afirmar isso estão agindo como papagaios repetidores do que ouviram, sem saber o que e do que estão falando, ou sabem e agem de má fé?
                          
* N. A.: é só ouvir o discurso dos religiosos, ainda hoje: “as mãos de Deus”, “o olhar de Deus”, “o hálito de Deus”... E não citam em sentido figurado não. Acreditam que estão sendo fisicamente olhados, tocados...
** N. A.: é cada vez mais consistente a possibilidade do multiverso, cada vez maiores as evidências de que o nosso universo não é único, mas um em um número infinito de universos (a melhor maneira de criarmos uma imagem mental disso é imaginar a água fervendo: cada bolhinha seria um universo).
*** N. A.: Darwin escreveu dois livros: “A Origem das Espécies” e “A Origem do Homem”. Depois juntou os seus diários e apontamentos de bordo, quando viajou por anos, no Beagle, um navio inglês (esteve no Brasil, em Cabo Frio) e transformou em mais um livro: “Viagem de um Naturalista ao Redor do Mundo”. Juro que o macaco citado pelos religiosos não está escondido nesses livros.

In "Não Haverá Mais Natais", romance autobiográfico.

MINHAS DIFERENÇAS COM ELES

Fico tentando entender porque implicam tanto comigo os “evangélicos”!
                           Nunca joguei pedra no telhado das igrejas deles, nem toquei fogo nos jardins. Caluniar, dizendo que fizeram pacto com o demônio, também não.
                           Fico aqui pensando... Será porque sempre me recusei a tocar “gospel” e louvores nos meus programas? Mas só se não entenderam as minhas justificativas...
                           Primeira: sou democrata, e a primeira exigência a se fazer a um democrata é que não seja preconceituoso.
                           Liga um irmão, pede um louvor, e toco. Depois liga um católico, pede um Hino à Maria, e toco. Aí vem um irmão do Candomblé, e pede um ponto de Pomba Gira, e toco. E o telefone toca novamente, é um budista pedindo um mantra, e toco. Depois um árabe, pedindo um salmo de Maomé, e um espírita com um hino psicofonado, e um umbandista solicitando um ponto de Pai Thomas, o Preto Velho... E o programa vira suruba religiosa, e vou enlouquecer deus, o que não quero.
                           Democracia é isso, ou tudo pra todo mundo ou nada pra ninguém, sem privilégios e privilegiados, a menos que alguém se julgue privilegiado por deus, tenha costas quentes no reino, aí me dá as provas que eu toco.
                           A segunda justificativa é mais simples: já tem tanta gente ganhando dinheiro com o sagrado, clamando o santo nome... Não em vão, pra faturar, que me recuso a ser mais um.
                           Mentira? Ah, é? Chama um cantor “gospel” de sucesso na sua igreja! Mas antes olha direitinho o contrato: se não tiver lá uma cláusula dizendo o valor do cachê, tem outra dizendo qual é a venda mínima de discos exigida no evento. Se os irmãozinhos não comprarem, a igreja cobre a diferença.
                           Afinal, vão pra louvar ou pra faturar?
                           Uma coisa que não tem nada a ver, mero acaso: mulher que ama porque ama é mulher que ama. Mulher que ama porque é remunerada para amar é prostituta, não sei porque me lembrei disso agora.
                           Mas toca o bonde, Tomé: pode não ser por isso, mas porque sento o pau nos autoritários que querem impor ideia única, e nos pretensiosos que se acham os donos da verdade e da razão.
                           É só ver os xiitas jogando bombas, aviões e bosta em todo mundo que não é xiita, inclusive em outros islamitas, como eles, mas que são sunitas.
                           Bin Laden que o diga!
                           E chamo a atenção para o primeiro sintoma do autoritarismo e da tentativa de imposição de ideia única, a deturpação das palavras e conceitos, em proveito próprio, e cito exemplos: na ditadura militar os generais censuravam a imprensa, que só podia noticiar o que eles permitiam, censuravam os textos teatrais, as letras das músicas... Para manter a liberdade!
                           Quer dizer, suprimiam a liberdade de expressão, de pensamento, de opinião... Para permitir a liberdade.
                           Aí se autodenominaram revolucionários, e o golpe de Estado de 64 passou a ser “Revolução”, a única da História Universal em que não foi dado nenhum tiro, salvo um ou outro peidinhos de uns sargentos de ressaca que haviam comido repolho e bebido cerveja na véspera.
                           E com um detalhe: o golpe foi dado no dia primeiro de abril (é só consultar os jornais do dia), mas como é o dia da mentira, dia dos bobos, anteciparam em um dia a data da comemoração.
                           Ora, meus irmãos, revoluções são movimentos sociais que mudam a estrutura das sociedades.
                           Como o Brasil clamava por uma revolução de fato, para mudar o que ainda hoje está aí (gente comendo sopa de tutano e gente comendo caviar em Paris), os militares, a serviço dos Estados Unidos, que não podia parar de explorar a colônia, traíram o seu comandante em chefe, o Presidente da República.
                           Por afirmar isso eu era subversivo, antipatriota, mau brasileiro e babaquices que tais.
                           Confundiam propositalmente uma quadrilha de golpistas com a pátria.
                           Na mesma linha, cito o exemplo dos judeus, lá na Palestina, mas antes um detalhe: quando nos referimos ao povo judeu falamos semitismo.
                           Os judeus são semitas. Jesus, os apóstolos e boa parte dos seus seguidores iniciais eram semitas. Moisés foi um líder semita.
                           Quando nos referimos ao Estado de Israel, um país como outro qualquer, falamos sionismo.
                            Os nazistas, liderados por Adolf Hitler, tinham a proposta de exterminar o povo judeu, matá-los até o último, fosse homem, mulher, criança no berço ou velhinho. Eram anti-semitas, criminosos em último escalão de crueldade.
                           Em 1948, três anos depois do fim da guerra e da ida de Hitler para os quintos, foi fundado o Estado de Israel.
                           No mesmo documento em que foi criado o Estado Judeu estava previsto que, junto e fazendo fronteira, seria criado o Estado dos palestinos, um outro povo.
                           E em guerras sucessivas, super armados pelos Estados Unidos, que os usam como base avançada, para controle do petróleo árabe, os judeus de Israel multiplicaram por seis o tamanho do próprio território (Israel), anexando terras dos países vizinhos, em atos de pirataria e saque, principalmente contra os palestinos, que hoje estão encurralados num território menor que o Município do Rio de Janeiro, área pouco maior que a Zona Sul Carioca.
                           Como ocuparam as nascentes e estações de tratamento de água, cortam a água, deixando mulheres e crianças com sede, atiram e jogam bombas sobre civis e fazem assentamentos de famílias judias nas terras invadidas, uma maneira de consolidar a invasão, não saindo nunca mais.
                           E para justificar as atrocidades, as autoridades de Israel (os políticos, sempre), associam os termos, confundindo, tentando fazer de sionismo e semitismo sinônimos.
                           Aí vou ao rádio e denuncio isso, e os cretinos de sempre, ao invés de me dizerem anti sionista (contra o Estado de Israel), dizem que sou anti semita (contra o povo judeu), provavelmente acreditando que eu era um daqueles que colocaram Jesus na cruz, só porque Hitler me pagou uma propinazinha.
                           Vamos em frente, Tomé: já que estou às porradas com os que deturpam palavras e conceitos em proveito próprio, para justificar o injustificável, e fazer do que supõem ser verdade a única verdade, vou aos religiosos e bato de frente com os meus irmãozinhos.
                           A primeira coisa que salta aos olhos é a palavra “gospel”, usada para tudo, de caracterização de música à marca de papel higiênico.
                           Mas afinal, o que quer dizer “gospel”?
                           Quando a mão de obra escrava, negra, africana, foi introduzida nas Américas, trouxe a cultura deles, claro: artes plásticas, culinária, indumentária, religião, língua e... Música, a música deles.
                           Na medida em que o tempo foi passando, por perda de contato com as raízes, os ritmos foram se alterando naturalmente, ou por influência de outros ritmos, de outras origens, como os ritmos europeus, por exemplo.
                           E a música original, negra, deu origem a diversos ritmos, variações do original.
                           No Brasil temos vários, onde se destaca o samba.
                           Na América Central, destaque para o reagle e a rumba.
                           E nos Estados Unidos três estilos fortes: o jazz, o blues e o gospel.
                           Esqueçamos o blues e o jazz, e fiquemos no gospel: esta palavra é a redução de “God Speak”, falar com deus, deus fala ou, forçando um pouco mais a barra, deus falando.
                           O gospel apareceu na época da conversão dos negros para o cristianismo, nas igrejas protestantes, Batistas principalmente.
                           Boa parte dos artistas negros norte-americanos começaram cantando em corais gospel, nas igrejas (Stevie Wonder, Aretha Franklin, Ray Charles, Diana Ross, e até Elvis Presley, embora não fosse negro).
                           Então o termo gospel não determina só um tipo de letra, religiosa, mas uma linha melódica, uma estrutura rítmica... Uma proposta estética, da mesma maneira que quando nos referimos aos termos samba, rock ou bolero, independente das letras ou até sem letras, só instrumental.
                           Chamar um rock com letra religiosa, um samba idem ou um funk ibdem de gospel, é o mesmo que chamar um gospel legítimo de jazz ou rumba; um bolero, um sertanejo ou um forró, de valsa.
                           E tenho dito!
                           Como o funk, o rock, o samba são ritmos “do mundo”, que se mantenha o ritmo e se troque de nome: gospel.
                           Mas não parou por aí. Logo-logo os pastores perceberam que o preço de um transmissor de FM era quase o mesmo de um amplificador de alta potência, e apareceram as “rádios piratas gospel”, logo depois as editoras gospel.
                           Daí para os açougues gospel, padarias gospel e até barracas de cachorro-quente gospel (quem, a barraca ou o cachorro?) foi um pulo, para desgraça de quem pensa.
                           Uma outra apropriação indébita é dos termos “cristão” e “evangélico”.
                           Todo aquele que crê em Jesus como o “caminho, a verdade e a vida” é cristão; todo aquele que, acreditando que Jesus seja Deus ou não, o tem como modelo de vida e comportamento, é cristão; todo aquele que estuda os seus ensinamentos, na busca da verdade religiosa, é cristão; todo aquele que, sem questionar quem tenha sido ou seja, tem fé, é cristão.
                           Em que livro da Bíblia, em que capítulo está escrito que só os protestantes renovados são cristãos? Para estes, o que caracteriza um cristão senão ser igual a eles?
                           Todos os que têm nos evangelhos fonte de estudos, inspiração e fé, independente da análise que façam do que leem são evangélicos.
                           Quer dizer que se alguém não entender o que escrevi tenho que considerar esse alguém um não leitor? Porque não entendeu nunca leu?
                           E se entendeu de uma maneira diferente da que esperei que entendesse é porque está contra mim? E se não gostou do que leu é porque não reconhece a minha “genialidade”, é um jumento? Pensando assim o jumento não seria eu?
                           Por fim, por ultimo, para acabar: releia todo este capítulo e procure em que momento contestei, adulterei, tripudiei ou neguei o conceito de Deus.
                           Em nenhum, mas, após a leitura dirão que o diabo me usou.
                           Sabe por que? O mesmo papo do início, da apropriação das palavras e conceitos, para uso em proveito próprio: como se julgam donos dos segredos divinos, doutores da Lei, contestá-los é contestar Deus. 

In "Não Haverá Mais Natais", romance autobiográfico.


INÍCIO DO VÍCIO

                           Meus avós tinham uma casinha nos fundos, alugada, e lá morava um senhor viúvo com duas filhas, de vinte e dois e vinte e quatro anos.
                           Ele trabalhava a noite, vigia de banco, de maneira que as donas ficavam sozinhas, e dormia de dia, de maneira que continuavam sozinhas, e nos fins de semana ia à feira de passarinhos, de maneira que elas ficavam sozinhas, e os meus avós trabalhavam fora, de maneira que eu ficava sozinho, de maneira que...
                           Pois é, sem maldade, custei muito a perceber que ela estava fazendo muito uso do telefone de vovó, ligando todo dia, às vezes duas, três vezes por dia, e me olhando como gato olha rato, doido para abocanhar o pobre.
                           Mais percebi: acabava de telefonar e ficava conversando comigo, tivesse assunto ou não. Mas, bebezinho superprotegido, maldade minha nenhuma.
                           Talvez percebendo, ela foi mais fundo, e começaram as brincadeirinhas de um correr atrás do outro, se agarrar, trocar tapinhas, essas galinhagenzinhas, e eu achando até engraçadas e divertidas aquelas brincadeiras...
                           Até que conseguiu me cercar num quartinho onde guardavam o material de limpeza.
                           Me apertou contra a parede e... Fiz a primeira descoberta: pelos desenhos e as fotos nas revistas, eu pensava que beijo na boca era só roçar de lábios.
                           Quem disse? É nada! Dona língua também é operária nos trabalhos.
                           E começou a morder o meu pescoço, brincadeira estranha, que assim eu nunca havia brincado, e até arrepia, dá um geladozinho na nuca, e surgiram dois peitões na minha cara, sufocando, impedindo a respiração, e eu sem saber o que fazer com eles, céus!, e a coxa dela entre as minhas pernas, e começou a desabotoar a minha camisa, o que essa mulher pretende, senhor?, e a forçar o meu short para baixo, curiosa, é agora que morro de vergonha, a respiração dela feito que correu morro acima umas três vezes, os olhos brilhando que nem de lobisomem, e me apertando, e a segunda descoberta: língua não serve só pra falar e beijar.
                           E quando eu já estava todo pelado, me empurrou no chão, se jogou por cima, e não era só os peitos era o corpo todo, e parecia brincadeira de cavalinho no trote, e essa gemedeira, eu não estou machucando ninguém, e essas contorções que nem porco entrando na faca, acho que desmaiei.... Então é assim? Até que não é ruim, e a terceira descoberta: mulher é melhor que mão.
                           E passou a ser todo dia, e se disser duas, três vezes por dia não é exagero quando se tem quatorze anos.
                           E vovó: “esse menino anda estranho, calado...” E vovô: “tá” emagrecendo...”
                           E vovó me levou na Dona Finoca, uma rezadeira, que me rezou com erva cidreira e arruda, para tirar o encosto, talvez espinhela caída, que estava caída nada, sempre de prontidão chamando o encosto, e o encosto demorou a ir, só foi mais de um ano depois, quando casou e me disse que agora não podia mais.

In "Não Haverá Mais Natais", romance autobiográfico.

                           

EU, UM JORNAL

De todas as minhas iniciativas e atividades, a que me deu mais prazer, maior prejuízo financeiro, maior motivo de me divertir e mais aporrinhação; a que gerou mais ódio e admiração foi o jornal de bairro.
                           Nunca me conformei com a aversão do brasileiro à leitura. Somente Buenos Aires tem mais livrarias que todas as cidades brasileiras juntas (e nós ainda sacaneamos os argentinos).
                           Na Europa e nos Estados Unidos qualquer obra começa com uma tiragem de cinqüenta, cem mil exemplares.
                           No Brasil os autores que vendem três mil, cinco mil exemplares são considerados grandes vendedores, populares.
                           Resolvi por a comunidade para ler.
                           Apoiado no meu programa de rádio, com boa audiência, por conta das polêmicas e do assistencialismo*, criei um jornal: “Falação”.
                           O primeiro desafio foi determinar que tipo de jornal.
                           Optei por uma linguagem simples, letras grandes, muita ilustração e principalmente capaz de provocar sorrisos, mesmo quando a denúncia fosse séria, numa linha próxima d’O Pasquim, um marco no jornalismo brasileiro.
                           O segundo desafio, quase inviabilizando o projeto, foi a mão de obra: em quatro números só tive duas contribuições, mesmo assim quase reescrevendo os textos enviados.
                           E virei não só uma empresa jornalística como uma equipe inteira, fazendo o jornal sozinho: agenciador de publicidade, cobrador, arte finalista, pauteiro, redator, redator chefe de mim mesmo, repórter, cronista, colunista, revisor, fotógrafo, ilustrador, cartunista, caricaturista, diagramador, digitador, revisor, o contínuo que levava o disquete para a “Tribuna da Imprensa”, onde era impresso o jornal, o peão que trazia os jornais do centro da cidade para o bairro, e o distribuidor, deixando pilhas de jornais sobre os balcões dos estabelecimentos comerciais, onde as pessoas pegavam, gratuitamente.
                           Eu era o jornal.
                           Para isso criei diversos pseudônimos, na verdade personagens, com o cuidado de redigir com estilos variados e diferentes personalidades.
                           Os mais perspicazes, muito poucos, desconfiaram logo, mas a quase totalidade dos leitores foi optando, tornando-se fãs de um, criticando outro, acreditando serem pessoas diferentes.
                           Para dar a pista, os nomes dos “contribuintes”: Sylvério Deletério, o mau humorado, crítico mordaz das autoridades, principalmente do Administrador Regional e do Prefeito César Mala; Pancrácio Jeremias, o intelectual explicando Freud e pregando as excelências do socialismo; Leocádia Mercedina, uma perua deslumbrada, burrinha que só, escrevendo sobre comidas, inutilidades e roupas; Micrópilo Tibério, o responsável pelas charges e cartuns (o que me dava mais trabalho, principalmente para caricaturar o Fernando Henrique Cardoso e sua beiçola de mamar ovo).
                           E se passava algum erro de revisão ou impressão, no número seguinte eu me sacaneava sacaneando o “seu Mirthos”, nosso revisor, o professor de português “pouco afeito às letras”.
                           Descaradamente plagiando O Pasquim, inventei algumas cartas dos leitores, respondendo-as sacaneando o texto, a ideia e o missivista, o bastante para incentivar masoquistas, que passaram a escrever para o jornal.
                           Quanto mais indignada a carta, mais eu sacaneava, o que me custou más criações e desaforos pelo telefone, durante o meu programa.
                           O primeiro número teve quatro páginas, tipo tablóide (meia folha de jornal), e tiragem de mil exemplares. Esgotou em dois dias.
                           O segundo número veio com oito páginas e tiragem de dois mil exemplares. Esgotou.
                           O terceiro, também com oito páginas, teve uma tiragem de dois mil exemplares e, uma semana depois, mais mil exemplares.
                           Me animei, já bolando um concurso literário na comunidade e um livro com os melhores trabalhos.
                           A essa altura já não era mais um jornal de bairro, com distribuição nos bairros vizinhos.
                           Começou a pressão das “autoridades”: o administrador regional, “agendou”, por conta própria, uma entrevista comigo, no meu programa, para esclarecer as “inverdades” que Sylvério Deletério havia assacado contra ele, inclusive ameaçando de processo judicial o pobre do jornalista, por calúnia (foi um suadouro eu esconder o endereço do “amigo”, ou pelo menos apontar um lugar onde a polícia pudesse encontrá-lo).
                           Mais pândego foi o meu encontro com o Sub-prefeito da região, um sujeito grosso, autoritário, ligado aos grupos de extermínio, embrião das atuais milícias, alimentando pretensões eletivas (veio candidato a deputado e perdeu).
                           Começou falando alto, querendo saber quem estava por trás do jornal, quem era o interessado no jornal, não sei se pensando num gangster rival ou num político de oposição.
                           Diante da minha resposta, “os anunciantes e os leitores”, quis saber como é que com um jornal tão pequeno eu conseguia pagar “essa gente toda”.
                           Já irritado, também alteei a voz: “problema meu. O seu interesse nessa prosa é política ou contábil?”
                           Tivesse dado corda e não tivesse compromisso com a minha consciência, teria levado uma boa grana para mudar a linha do jornal (a maioria dos jornais comunitários recebe “subvenção”).
                           A conversa permaneceu tensa, com ele ameaçando fechar o jornal: “o senhor não é jornalista formado, é professor. O seu jornal não tem um profissional responsável. Não tem CNPJ, alvará, não paga impostos. O prefeito vai fechar.”
                           Perdi em definitivo a paciência: “pois duvido! Diga ao prefeito que é para ele fazer o que ele e os puxa sacos dele prometem que não cobro. O trabalho de vocês é fazer, o meu é cobrar o que não foi feito. Agora com licença que já estou preparando o próximo número.”
                           Dias depois recebi um documento amenizador, um velado pedido de desculpas, com a promessa de uma entrevista do prefeito no meu programa.
                           Cobrei por duas vezes. Deram desculpas.
                           Não sei se para evitar que eu ou outra pessoa organizasse os moradores, inesperadamente, quase em segredo, César Mala resolveu visitar o bairro.
                           Mal assistido pelos aspones e puxa sacos, veio logo depois de uma grande inundação, quando as famílias perderam quase tudo.
                           Reconhecido, recebeu gostosa vaia e... Uma chuva de merda de vaca sobre o carro da autoridade, a corriola, digo a comitiva, debandando antes que tivessem os ternos cagados, povo maravilhoso!
                           E, fecho de ouro, entrevistei Sérgio Cabral, inimigo político do Mala, que se julgava dono do curral eleitoral onde perdeu a eleição.
                          
* N.A.: Conseguíamos e intermediávamos doações de cestas básicas, móveis usados, muletas, cadeiras de roda, enxovais de bebês, internações em hospitais... Na própria comunidade.

                    Se cada edição do jornal faz o pânico dos poderosos, pânico menor não faz na própria comunidade, já que a vigilância sobre os maus moradores é implacável, transformando o jornal em central de reclamações e denúncias.
                           A prefeitura tem um programa de urbanização, o “Favela Bairro”. Crio a seção Bairro Favela, onde, sem dar nomes, mas dizendo onde o fato está ocorrendo, algumas vezes fotografando e publicando, vou fazendo as denúncias, puxando as orelhas dos maus moradores: um que, por conta própria, fez um quebra molas em frente de casa, alto e estreito, detonando as suspensões dos automóveis; alguém que está transformando terreno baldio em depósito de lixo; outro que cultiva criatórios do mosquito da dengue...
                           Por causa da ocupação indevida das calçadas (os comerciantes levantam paredes nas calçadas, transformando-as em extensões dos estabelecimentos, deixando só uma faixa estreita para os pedestres passarem, quando deixam), ganharei “inimigos”: lancei um concurso: “quem melhor enxota o povo”, colocando as fotografias das invasões no jornal.
                           Em quinze dias, com vergonha das fotos no jornal e por causa dos comentários, acabam todos os puxadinhos nas calçadas, todos os infratores, revoltados, metendo as marretas.
                           Paralelo a isso, há um colaborador, o professor Lautécio Caldas (este é logo identificado, comigo negando, claro) que, numa coluna de meia página, fala sério: drogas, doenças sexualmente transmissíveis, dengue, gravidez precoce, violência doméstica, preconceito racial...
                           O professor Lautécio é tão levado a sério que um dos seus artigos vai render por bom tempo.
                           Contaram-me que os meninos do bairro estavam pegando limalha de ferro nas serralherias para fazer cerol, o pó de ferro substituindo o pó de vidro.
                           Lautécio começa o artigo falando das pipas no mundo todo, principalmente na China, usada até para lançar explosivos sobre os inimigos (os primeiros ataques aéreos da história), dos estudos de Franklin sobre a eletricidade atmosférica, quando usou pipas nas experiências. Deu os sinônimos do termo pipa nas mais diversas regiões do país... Culminando pela interpretação freudiana do hábito de soltar pipas, dando uma sacaneadinha nos adultos que as empinam.*
                           Depois mostrou que a linha e a cola de madeira, por serem de origem vegetal, são isolantes, o mesmo acontecendo com o vidro, evitando choques na fiação elétrica, salvo se a linha estiver molhada.
                           Ao substituir o vidro por um metal, o menino na verdade está construindo um fio que irá conectá-lo à fiação elétrica, sem contar o poder de corte, muito maior, provocando ferimentos graves e até mutilações.
                           O que tem de serralheiro se justificando... “Professor, eu não dou a limalha. Vendo tudo para reciclagem”, “seu Francisco, diz ao professor Lautécio que se algum moleque me pedir limalha mando chamar o pai”...
                           E a molecada continua moendo vidro nas calçadas.
                           A essa altura, além de temido pelos cafetões do povo e dos maus moradores, o jornal está respeitado, circulando na Administração Regional, Subprefeitura, Batalhão, Escolas... Esgotando-se rapidamente (como anuncio no rádio o dia do lançamento e os locais da distribuição gratuita, o que aparece de gente estranha no bairro, para pegar o jornal... Claro que vêm mandados, a serviço de “poderosos” ansiosos e preocupados).
                           Sai finalmente o último número do Falação, com doze páginas e uma tiragem de quatro mil exemplares.
                           Mesmo sem ter idéia de estar editando o último número, baixo o pano com pompa e circunstância.
                           O bairro está mudando rapidamente, tornando-se violento, com invasões de terrenos, o aparecimento dos primeiros cadáveres em terrenos baldios, maus policiais cobrando por serviços públicos (há até casos de cobrança de porcentagem sobre móveis e imóveis comprados e vendidos, por uma falsa associação de moradores), autonomeações de xerifes locais, exatamente como em qualquer morro carioca.
                           Chego ao rádio e comento ter mantido contato com um dos líderes das invasões, o principal, descrevendo a maneira difícil, cercada de segurança, por parte dele, para conversarmos sobre tudo, com ele me explicando todo o mecanismo da violência urbana, todas as arbitrariedades até então cometidas, principalmente na nossa região, inclusive dando nomes, comigo gravando tudo, com cópias em mãos seguras.
                           Por uma semana sou maravilhosamente bem tratado pela galera dos rabos presos, com todos fazendo questão de me cumprimentar, e aí tudo bem com o senhor? Que Deus lhe acompanhe, professor.
                           Tenho o cuidado de não citar nenhum nome, de não comprometer ninguém, mas publico tudo o que está acontecendo, como está acontecendo, porque está acontecendo e no interesse de quem está acontecendo, num total de quase quatro páginas, um terço do jornal.
                           O negócio começa no bairro e termina nos gabinetes, no centro da cidade, os três poderes envolvidos, todo mundo comendo.
                           É um tal de gente ressabiada, fazendo sinal de “sujou”, quando eu me aproximo... Os mais ousados ensaiando conversa comigo, fazendo rodeios, sondando, buscando indícios de quem teria me dado a entrevista, loucos para encontrá-lo.
                           Se um dia eu escrever a minha autobiografia, como pretendo, quando a maior parte deles tiver morrido, parte presos e parte de pijamas, aposentados ou reformados, vou revelar quem foi.
                           Direi a verdade.
                           Escreverei que quem me deu a entrevista foi... Ninguém.
                           O entrevistado foi mais um personagem meu denunciando o que eu sabia.
                           Montei a entrevista.
                           O meu encontro foi descrito numa situação tão fantasiosa, tão cercada de cuidados, exatamente como se davam nos pontos e aparelhos, na época do movimento clandestino contra a ditadura, que até hoje não entendi como homens ligados à segurança pública não perceberam, sequer desconfiaram, que era uma farsa.
                           E mais: caracterizei o entrevistado como um ativista sem-terra... Em área urbana, haja Deus.
                           Como na televisão estava passando a novela “O Rei do Gado”, inspirei-me em um dos personagens, Regino, o líder sem-terra, protetor da Luana, a sem terra encarnada na Patrícia Pillar, agora Patrícia Gomes, sortudo esse Ciro.

* N. A.: Sigmund Freud, pai da psicanálise. A interpretação freudiana para essa brincadeira é que a pipa é a representação simbólica do pênis. Então o que ocorre entre os meninos é uma competição para ver quem tem o pênis maior, mais bonito, quem o mantêm mais tempo ereto (mais tempo com a pipa no ar, sem ser “cortado”), além da competição masculina pelo espaço, pelo domínio de uma área, como ocorre em todo o reino animal. A associação da atividade com a masturbação masculina é óbvia.
                           Já a bola de gude é competição sexual direta, com o triângulo ou a búlica (buraco a ser ocupado pela bola de gude) funcionando simbolicamente como a vagina.
                           Ganha quem desalojar mais bolinhas (machos) do triângulo ou ocupar mais búlicas (fêmeas).
                           Aí está o motivo das meninas não se interessarem por essas brincadeiras.
                           Como sacaneei os adultos que gostam das brincadeiras infantis/adolescentes? Insinuando que o soltar pipas nessa idade é sintoma de disfunção erétil: quem ocupa triângulos com bolinhas de vidro é porque não tem muita competência para ocupar triângulos de verdade.
                           A polêmica que isso gerou... Nossa!
                           Um detalhe: sou meio avesso ao freudianismo, por achar as suas interpretações reducionistas e um tanto fantasiosas.


                           Velório do Falação.
                           É muito caro publicar um jornal. Mesmo comigo sendo toda a mão de obra, a impressão é cara.
                           No princípio eu custeava parte e os anunciantes, parte, mais ou menos meio a meio.
                           Na medida em que as polêmicas foram aumentando e me tornei mais ousado nas críticas aos poderosos, os anúncios foram minguando, minguando... E passei a bancar o jornal quase sozinho.
                           Uns correram por medo, com a preocupação de que anunciando estavam concordando com o publicado (de certa maneira sim), outros porque se sentiram atingidos.
                           Isso me deixou duro e começou a pesar no caixa da escola.
                           Não bastasse, já tinha vazado que eu fazia o jornal sozinho, muita gente sabendo quem estava por trás da metralhadora giratória.
                           Juntou-se uma tentativa de intimidação*, com homens acintosamente armados, o que só me irritou, mas me pôs com as barbas de molho em relação aos meus filhos, netos, genros e noras circulando pelas ruas do bairro, ao alcance de covardes.
                           Havia ainda a escola. Poderiam associar a raiva a mim à escola, diminuindo o número de alunos, ou até uma covardia fiscal, encetada pelos “poderosos”.
                           Para piorar mais ainda, os adversários e inimigos descobriram a mais eficaz forma de contra-ataque: a calúnia e a difamação.
                           Começou a circular que o jornal era uma fachada política, já que eu viria candidato a deputado (nem quando dirigi um sindicato que me garantiria fácil a eleição. Conheço os corredores do poder); que eu estava rico (essa fama no meio da miséria é pior que lepra); cada grupinho afirmando que eu estava a serviço do outro grupinho...
                           De todo o dito, porém, o mais irritante partiu das hostes “evangélicas”: comprei a escola e enriqueci porque fiz um pacto com satanás, sabia falar e escrever porque era usado por satanás, e coisas que tais.
                           A boa nova se alastrou como o fogo no paiol da minha infância, com gente me evitando, para não ter contato com o maligno.
                           Acho maravilhosas as cabeças dos fanáticos.
                           Uma historinha real:
                          
                           Chego em casa morto de fome, sem ter almoçado, mais de dez entrevistas naquele dia, na Ilha do Governador, um calor de caldeira siderúrgica, a mulher: “vai jantar?”
                           “Não! Vou pedir uma pizza”. (se não almoço não janto, a enxaqueca).
                           Ato contínuo, vou ao telefone: “manda uma pizza de atum. Capricha que o motoqueiro leva uma cerveja gorda”.
                           Tomo banho rápido, para não dar tempo da pizza esfriar. Não entregam.
                           Vou para a rede, já irritado, fico matutando sobre a vida, essa baldeação na desgraça e, quarenta minutos depois, ronco de moto, buzina de moto, berro de motoqueiro: “professor!”
                           Pago, pergunto se está caprichada e entro.
                           Cerimonialmente a coloco sobre a mesa, altar da minha fome, lavo as mãos, muno-me de faca e garfo, pronto para o duelo, abro o embrulho e... Pizza de sardinha em lata!
                           Cólera de pit bull que levou pontapé no saco.
                           Concentro-me e incorporo Aurélio, Houssais, Rocha Pombo e todos os etimologistas, lexicógrafos, dicionaristas... Todos os que conhecem todas as palavras, justamente para tomar de empréstimo os palavrões, as pornografias, os termos chulos... Tudo o que eu tinha direito naquele momento.
                           Ligo: “pronto? Quem está falando aqui é o cara que pediu uma pizza de atum, ainda a pouco, lembra?”
                           “O professor...”
                           “Isso. Cara vocês mandaram sardinha no lugar do atum, está pensando que sou babaca?”. E comecei, mãe, vó e tias dele homenageadas até a geração que sucedeu a de Adão e Eva.
                           Do outro lado: “o senhor não pode falar isso, eu sou filho de um Deus vivo, o senhor é que tem pacto com o diabo, é rico porque vendeu a alma, eu vivo no sangue de Jesus...” E por aí foi, irando-me mais ainda.
                           Que me perdoem as meninas dos olhos dos leitores e os olhos das meninas dos idem, mas em determinado momento, minha mulher às gargalhadas: “qué isso, menino!”, não me contive mais: “diabo é o caralho. Manda o diabo aqui que eu como o rabo dele. Sabe o que você faz com o seu diabo?”
                           E o cara do outro lado, gritando também: “meu diabo não. Eu sou filho de Deus!”
                           Impotente para amestrar a minha língua, berrou: “vou mandar outra pizza. Não precisa pagar.”
                           “Vê se dessa vez manda de atum, e vou pagar sim porque você tem pistolão no céu e não quero fazer dívidas lá”
                           Deve ter quebrado o telefone, tamanha foi a porrada do fone no gancho.
                           Volta o motoqueiro. Abro o embrulho na frente dele. Atum.
                           Pago: “entrega o dinheiro porque vou ligar comunicando que paguei”. Devolvo a de sardinha.
                           “Não precisa devolver não.”
                           “Precisa porque senão amanhã estão dizendo nas igrejas que sou vigarista, como duas pizzas e só pago uma.”
                           Vou à pizza, finalmente.
                           No meio da relação, digo, da refeição, sem tê-la comido devidamente, o telefone toca.
                           A mulher atende: “filho, é o cara da pizzaria”
                           Atendo: “agora foi certinho, professor? Estou ligando para lhe pedir desculpas. O rapaz se confundiu e trocou, isso não vai acontecer mais”
                           “Tudo bem, eu também lhe peço desculpas, não é bom a gente se sentir enganado. Mas me diz uma coisa: que conversa é essa de que tenho pacto com o diabo?”
                           “O pessoal comenta isso a muito tempo, professor, que o senhor está com o burro na sombra porque fez pacto com o maligno, prá comprar a escola.”
                           “Pois preste a atenção no que vou dizer: eu não teria como fazer pacto com o diabo simplesmente porque não acredito na existência do diabo. O meu Deus é tão grande e poderoso que não sobra espaço para poder paralelo. Quanto a ser um Deus vivo, só vou pensar sobre isso no dia em que soubermos o que é vida, o que é estar vivo. Até agora nem a filosofia nem a ciência explicaram.”
                           “Mas o diabo existe, professor...”
                           “Fique com a sua crença que eu fico com a minha. Em relação ao que você chamou de engano, a lata de sardinha tem forma, tamanho e cor diferentes da lata de atum, as carnes do atum e da sardinha têm cores e texturas bem diferentes, e os cheiros são inconfundíveis. Você está cego e com o nariz entupido?”
                           Ele riu: “está bem. Eu só liguei para pedir desculpas e dizer que considero muito o senhor.”
                           E a última alfinetada: “obrigado. Longe de mim pensar que foi preocupação com a minha língua no rádio. Fique tranqüilo que não vou comentar”.
                           “Eu sabia. Obrigado.”
                           Desligou.
                           Assim funciona as cabeças dos religiosos fanáticos, até a desonestidade, em nome de Jesus. Já a contestação, a exigência de respeito, feita por um não salvo, é coisa de satanás.
                          
* N. A.: no dia seguinte, em meu programa, denunciei tudo, dando os detalhes do ocorrido e o motivo: minha pancadaria verbal sobre o monopólio do transporte público na zona oeste, com duas empresas fazendo o que querem, inclusive os usuários de palhaços, recusando passageiros, circulando fora dos horários, com menos carros na linha do que determina o contrato de concessão pública, ônibus em mal estado de conservação...
                        Os brutamontes eram seguranças de uma empresa de ônibus.  

In "Não Haverá Mais Natais", romance autobiográfico.