Acordo de madrugada. São três e vinte,
disposto aos pincéis e pigmentos, e a televisão me anuncia: um ano hoje.
Exatamente um ano de orfandade pop.
Resolvo
escrever sem reler o artigo que escrevi no dia seguinte ao da sua morte, e
lembro que o óbvio se concretizou: quase meio bilhão de dólares faturados com a
venda de discos e outros produtos, de lá para cá, muito mais que o necessário
para amenizar-lhe a dor não física, a quase falência econômica que, somatizada,
impôs a falência física, traduzindo-se em dores de verdade e depressão.
Sua
vida econômica está novamente equilibrada, embora vida já não haja, mais um
paradoxo pop, coisa de Michael.
Estranho-me
pela identidade com o ídolo, lastimando-o como a um parente próximo, já que sou
da geração anterior à sua, mais ligado em Elvis e Beatles, e busco as razões.
Como
todo o planeta, também me curvei ao menininho negro de olhinhos tristes, voz
afinadíssima, embalando-nos com I’ll be
there, Got to be there, Music and me...
Mas,
convertido ao comunismo, lendo pelas cartilhas do Materialismo Dialético, muito
preocupado em contestar a ditadura então reinante em nossas consciências e em
nossos dias, identifiquei-o com o totalitarismo norte-americano, entendendo-o
como o supra-sumo das imposições políticas, econômicas e culturais da matriz
fazendo-nos, macaquinhos colonizados, dançarinos de suas canções.
Corta!
Já
li ou ouvi dezenas, centenas de definições sobre a arte, a função da arte e do
que é uma obra de arte.
Como
as experiências religiosas, as artísticas são também muito particulares e
intransferíveis, impressões de cada um.
Para
mim a obra de arte é algo (sons, formas, cores, movimentos...) que nos divide a
vida em dois, em antes e depois da contemplação, da surpresa, da estupefação
diante do inesperado, do jamais pensado, e que cola pra sempre, como decalque
ou tatuagem.
Tive
alguns desses momentos quase místicos, transcendentais, quando, único,
diferente, irrepetível, como qualquer humano, me senti parte do todo,
continuação de cada ser e de tudo. Dos só suspeitados átomos à anônima
bactéria, das árvores e bichos à mais longínqua galáxia, lá nos confins do
tempo, passando por cada ser humano, tudo manifestações de uma mesma coisa,
talvez Deus, não sei.
Foram
momentos de variadas intensidades e, entre outros, pelo menos três estão
ligados a Michael.
No
primeiro eu dava aulas de Química e Biologia num curso preparatório em
Madureira, uma situação surreal: odiando visceralmente os militares, vendo em
cada homem fardado um gerente ou pelo menos agente dos interesses
multinacionais explorando a nossa pátria e o nosso povo, eu preparava alunos
para as escolas militares, para as academias militares, formando mais
opressores e agentes da opressão, fortalecendo o sistema, ao mesmo tempo em que
ligado a um movimento clandestino de resistência.
Isso
obrigado ao silêncio, para manter a pouca liberdade e a vida.
Escusado
é dizer que eu era um homem amargo, revoltado, acumulando cicatrizes na alma.
Ao
lado do curso ficava uma loja de discos, um inferno, obrigando-nos, os
professores, a nos esgoelarmos para competir com os rocks moradores dos
equipamentos de som e que vinham nos visitar exatamente nos momentos de maiores
dúvidas dos alunos.
Um
dia... No intervalo entre duas aulas, uma voz lânguida embalou uma canção ainda
mais lânguida, traduzindo quase com exatidão o lamento, a lamúria... Uma
tristeza quase concreta a nos definir perecíveis e toscos, transitivos e sós.
A
música? Ben. A voz? Um instrumento
baixado do paraíso. Michael Jackson.
Não
sei quantas vezes já ouvi esta música. Não sei quantas a partilhei, nos meus
programas de rádio. Não sei quantas mais ouvirei, sempre com a sensação de que
pela primeira vez.
Também
não sei se algum crítico mais apurado e exigente vai querer me bater mas, em
termos de sensação, coisa minha, associo esta música ao terceiro movimento da
Sexta Sinfonia, de Beethoven. A mesma delicadeza na tristeza.
O
segundo? Sim, há um Deus. Um Deus que nos criou e a tudo.
Impossibilitados
de entendê-Lo, nos limites de nossa pequenez criamos adjetivos para defini-Lo
em Seus atributos: Justiça, Onisciência, Onipresença, Atemporalidade...
Há
um outro deus também, este criado pelo Homem, e entre os seus atributos, a
vingança, o castigo, a crueldade... A ponto de ser o operador do diabo e suas
caldeiras de lava e sangue.
Entre
os dois, talvez por alguma deformação, tenho como o maior dos atributos divinos
a beleza.
Isso.
Deus é um esteta. O maior, o insuperável, capaz de colocar num humilde pássaro
o som que músico algum repetirá. Na mais distante galáxia as formas e cores que
nenhum pintor ousará, por absoluta incapacidade.
Em
nome desse primeiro Deus, em partituras, palhetas, telas, palcos... Os homens O
buscam, como se orassem.
Em
nome do segundo manipulam revólveres, bombas, machados, moto serras, fogo,
venenos...
É
como se, primitivos, armados de paus e pedras déssemos trâmites à barbárie,
investindo sobre galerias, museus, salas de concertos... Depredando a natureza
que nos cerca e da qual fazemos parte, em suicídio permanente.
Se
lastimo a morte da árvore pelo oxigênio que não nos dará, mais lastimo pela
ausência das formas, cheiros e cores. Pelo vazio que ficará.
E
que melhor canção para nos convidar à sensatez que Earth Song (canção da Terra), uma sinfonia?
Ouvi-la
é orar, por-se em sintonia com o todo criado.
O
terceiro momento... Bem, o terceiro...
Como
afirmei, a experiência artística, seja para o autor ou seu cúmplice, o
espectador, chega a ser mística, transcendental, partindo-nos em dois, o de
antes e o de depois.
É
um momento tão raro e profundo que fica guardado, em todos os seus detalhes,
para sempre, até a morte, talvez após.
Raros
e altamente gratificantes, também tive os meus.
Esses
três, todos ligados a Michael, levam os demais de lambuja, a reboque: no Teatro
Municipal, ouvindo Batuque, de
Francisco Mignone; no Centro Cultural Banco do Brasil, diante de uma tela de
Kandinsky (parece exagero ou frescura, mas preocupei os vigilantes, por causa
das lágrimas, copiosas e intensas) e...
Domingo,
cerca de nove horas da noite, a minha falecida mulher na cozinha passando patê
em fatias de pão de forma, comigo sentado na poltrona da sala, alternando a
poesia posta no livro de Mário Quintana e a televisão.
Fantástico,
“o show da vida”.
Anunciam
o mais novo clipe de Michael. Segundo o locutor, um marco na indústria dos
clipes, assombrando a crítica internacional.
Mais
uma bobeira, pensei, e tornei ao livro.
Logo
na introdução, nos efeitos especiais – porta (ou tampa de caixão?), sintetizadores,
passos, uivos...
Antes
do primeiro acorde, abandonei Quintana enclausurado na página e me fixei na
tevê, incrédulo do que estava vendo e ouvindo.
Gritei
para a cozinha: - mulher, venha ver isso!
Era
tamanho o sincronismo dos movimentos com o ritmo, tão inusitados os movimentos,
tão perfeito o encaixe de voz e orquestra, as indumentárias, cenário,
iluminação, cortes, posicionamento de câmeras, expressões faciais que era tudo
uma coisa só, Michael e música, como se a música em seu estado mais puro e
absoluto emanasse dele.
Foi
arrebatamento e só dei por mim quando a minha mulher tentou me consolar, as
minhas lágrimas - intensas, abundantes, naturais, surgindo do mais íntimo de
mim.
Não
havia morrido ninguém, não tive prejuízo financeiro, não sentia saudade de nada
e nem de lugar nenhum.
Não
eram lágrimas de perda, mas de ganho.
Fosse
Beethoven, Picasso ou Barishinikov não faria diferença. Vi um homem diferente e
diferenciado, capaz de mostrar não o que o somos, mas o que podemos.
E
olhe que eu não era o velhinho bobo, sentimentalóide e chorão de agora.
Por
isso não entendo todas essas comemorações que irão acontecer hoje.
Michael
vive. Viva, Michael!
Viva
Michael!
Rio, 25/06/2010. .
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