Quem está em casa não imagina o quão cansativo é fazer
um programa de rádio.
Nas
grandes rádios comerciais trabalham equipes: um produtor (ou programador), um
operador de áudio, um técnico de som, um ou mais telefonistas e o locutor.
Nas
rádios pobres e pequenas um sujeito só substitui a todos, acumulando todo o
serviço.
Há
profissionais que preferem trabalhar com o computador (alguns programas
substituem diversos procedimentos manuais e auditivos), o que não é o meu caso.
Só uso o computador para tocar os comerciais pré-gravados, por dois motivos: a
minha absoluta incompetência para acompanhar a tecnologia, enrolando-me todo
com o computador, e para proteger o meu acervo: sou colecionador de músicas e
tenho algumas raridades, fora dos catálogos e fora do mercado.
Gravadas
no computador, rapidamente serão copiadas, perdendo o valor.*
Então
trabalho com dois e até três aparelhos de CD ou DVD, alternando discos e
aparelhos (ao invés do equipamento jogar o sinal para os auto falantes, como
acontece em nossas casas, joga para a mesa).
E
como funciona? Insere-se o disco na gaveta, seleciona-se a faixa e trava-se
(deixa no ponto).
Quando
a música anterior acaba, solta-se a vinheta que intercala as músicas ao mesmo
tempo em que se trava o disco que acabou de tocar.
No
momento exato do término da vinheta, trava-se, soltando a música, no outro
aparelho, sincronizadamente, com os olhos no cronômetro e os ouvidos nos fones,
atentos: há diferenças de alturas na gravação, variando de gravadora para
gravadora, e às vezes entre faixas num mesmo disco, o que obriga ao controle
manual, na mesa, senão o seu rádio, em casa, aumenta e diminui de volume
sozinho.
Regulada
a altura do som, procura-se a música seguinte, insere-se o disco na gaveta,
seleciona-se a faixa desejada e deixa-se no ponto (travada).
Seleciona-se
a próxima vinheta, com o cuidado de não repetir as anteriores, tocadas a pouco,
e também deixa no ponto.
Quando
for falar, fecha-se o canal que está tocando a música e, enquanto a vinheta
está no ar, recomeça-se a mesma música, com o canal fechado.
Faltando
três segundos para a vinheta terminar (há vinhetas que só duram quatro
segundos), abre-se o canal do microfone, ao mesmo tempo em que vai se
diminuindo, gradativa e lentamente, o canal onde está tocando a música.
Falta
ainda carimbar as músicas: soltar uma vinheta muito curta (um ou dois segundos)
ou um efeito sonoro no meio da música, no momento exato de uma pausa, para que
os sons não se sobreponham.
Além
de elegante, caracteriza a emissora e não permite que uma grave as músicas da
outra, usando em concorrência desleal.
Enquanto
se está atento a isso, a todos esses procedimentos, o telefone toca. Pode ser
alguém que só peça uma música, diga a quem quer oferecer, agradeça e desligue,
mas também pode ser um conhecido querendo sustentar a conversa, e você todo
enrolado, tendo que consultar na lista qual é a próxima seqüência, procurar os
discos e programar, esperar a pausa, carimbar a música; uma gentil dama liga,
impressionada com a sua voz, acreditando que o seu físico condiz com a voz, nos
seus vinte e poucos anos de tesão e bom desempenho, que já se foram em meados
do século passado, você na pista para negócio, “artista” transa fácil, e
carimba a música, quando não é uma rejeitada ou um corno te fazendo de
psicólogo, a música acabando, a vinheta entrando, os seus ouvidos atentos à
altura do som, os olhos no cronômetro, agora é uma dona que quer oferecer a
próxima seqüência aos filhos, são nove, e começa a ditar o nome completo de um
por um, depois o nome do marido também, e de uma amiga que vende Avon, se o senhor quiser mando ela aí, e há
que programar os comerciais, entram no próximo intervalo, e outro telefonema,
alguém que perdeu um cachorrinho da raça poodle e que atende pelo nome de
peralta, por favor o senhor pode anunciar?, carimba a música, e você escrevendo
o recado, e súbito alguém chama no portão, é o vizinho da rádio, quer oferecer
uma música ou só assistir você trabalhando, uma conversa reme-reme que haja
Deus, e lá vem outra música e o telefone toca, alguém quer vaga no colégio
estadual, por favor ligue para o outro programa, na segunda de manhã, é, sou eu
mesmo sim senhora, e tome vinheta, outra música, e agora é o moço pedindo um
“louvor”, nesse horário não tocamos isso não meu amigo, e ele xinga você, em
nome de Jesus, carimba a música, e você acaba esquecendo de tocar os
comerciais, passou a hora, os anunciantes vão ligar, reclamando, e o telefone
tocando, agora é a namorada do locutor que saiu, se lastimando porque ele ainda
não apareceu no local do encontro, será que você sabe onde ele está? Sei não,
deve ter se atrasado, ele ficou aqui no estúdio um tempão (mentira), deve ter
se atrasado. Carimba a música, programa a próxima vinheta, trava; o telefone
tocando, agora um Paraíba com sotaque de japonês bêbado, quer ouvir Bartô
Galeno, não tenho isso não, amigo, então Oldair José, pode ser?, também não
trouxe, e você tem que falar os nomes das músicas que tocaram na última
seqüência, a pedido de quem, oferecendo a quem, e o japa-paraibano não desliga,
o Amado Batista não é possível que você não tenha, também não?, liga pro
programa de forró, amanhã, amigo, o colega toca, e o telefone tocando, e falar
baboseiras românticas com empostação de travesseiro porque o programa é
romântico e há que despertar tesão, e o telefone tocando, e a música acabando,
e alguém chamando... E a sua mulher em casa certa de que você está aos beijos e
abraços com alguém no estúdio, comeu mais uma hoje, cobrança que fará quando
você chegar em casa, cansado, vendo leads coloridos piscando, anunciando que a
música já vai acabar, os ouvidos zumbindo, efeito dos fones e do telefone, a
mulher aguardando a carimbada e você mortinho, pronto ao ronco, e a mulher
esperando, hora de comercial, e a música acabando, o telefone tocando, e você
programando e o telefone tocando e alguém chamando e você anotando e o telefone
tocando, a música acabando e amanhã tudo de novo outra vez... Puta merda!
* N.A.: agora podem baixar na Internet,
mas na época os computadores eram ainda novidade e a Internet não estava tão ao
alcance.
In
“Não Haverá Mais Natais”, romance autobiográfico.
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