quinta-feira, 23 de maio de 2013

LOCUTOR

Quem está em casa não imagina o quão cansativo é fazer um programa de rádio.
                          Nas grandes rádios comerciais trabalham equipes: um produtor (ou programador), um operador de áudio, um técnico de som, um ou mais telefonistas e o locutor.
                          Nas rádios pobres e pequenas um sujeito só substitui a todos, acumulando todo o serviço.
                          Há profissionais que preferem trabalhar com o computador (alguns programas substituem diversos procedimentos manuais e auditivos), o que não é o meu caso. Só uso o computador para tocar os comerciais pré-gravados, por dois motivos: a minha absoluta incompetência para acompanhar a tecnologia, enrolando-me todo com o computador, e para proteger o meu acervo: sou colecionador de músicas e tenho algumas raridades, fora dos catálogos e fora do mercado.
                          Gravadas no computador, rapidamente serão copiadas, perdendo o valor.*
                          Então trabalho com dois e até três aparelhos de CD ou DVD, alternando discos e aparelhos (ao invés do equipamento jogar o sinal para os auto falantes, como acontece em nossas casas, joga para a mesa).
                          E como funciona? Insere-se o disco na gaveta, seleciona-se a faixa e trava-se (deixa no ponto).
                          Quando a música anterior acaba, solta-se a vinheta que intercala as músicas ao mesmo tempo em que se trava o disco que acabou de tocar.
                          No momento exato do término da vinheta, trava-se, soltando a música, no outro aparelho, sincronizadamente, com os olhos no cronômetro e os ouvidos nos fones, atentos: há diferenças de alturas na gravação, variando de gravadora para gravadora, e às vezes entre faixas num mesmo disco, o que obriga ao controle manual, na mesa, senão o seu rádio, em casa, aumenta e diminui de volume sozinho.
                          Regulada a altura do som, procura-se a música seguinte, insere-se o disco na gaveta, seleciona-se a faixa desejada e deixa-se no ponto (travada).
                          Seleciona-se a próxima vinheta, com o cuidado de não repetir as anteriores, tocadas a pouco, e também deixa no ponto.
                          Quando for falar, fecha-se o canal que está tocando a música e, enquanto a vinheta está no ar, recomeça-se a mesma música, com o canal fechado.
                          Faltando três segundos para a vinheta terminar (há vinhetas que só duram quatro segundos), abre-se o canal do microfone, ao mesmo tempo em que vai se diminuindo, gradativa e lentamente, o canal onde está tocando a música.
                          Falta ainda carimbar as músicas: soltar uma vinheta muito curta (um ou dois segundos) ou um efeito sonoro no meio da música, no momento exato de uma pausa, para que os sons não se sobreponham.
                          Além de elegante, caracteriza a emissora e não permite que uma grave as músicas da outra, usando em concorrência desleal.
                          Enquanto se está atento a isso, a todos esses procedimentos, o telefone toca. Pode ser alguém que só peça uma música, diga a quem quer oferecer, agradeça e desligue, mas também pode ser um conhecido querendo sustentar a conversa, e você todo enrolado, tendo que consultar na lista qual é a próxima seqüência, procurar os discos e programar, esperar a pausa, carimbar a música; uma gentil dama liga, impressionada com a sua voz, acreditando que o seu físico condiz com a voz, nos seus vinte e poucos anos de tesão e bom desempenho, que já se foram em meados do século passado, você na pista para negócio, “artista” transa fácil, e carimba a música, quando não é uma rejeitada ou um corno te fazendo de psicólogo, a música acabando, a vinheta entrando, os seus ouvidos atentos à altura do som, os olhos no cronômetro, agora é uma dona que quer oferecer a próxima seqüência aos filhos, são nove, e começa a ditar o nome completo de um por um, depois o nome do marido também, e de uma amiga que vende  Avon, se o senhor quiser mando ela aí, e há que programar os comerciais, entram no próximo intervalo, e outro telefonema, alguém que perdeu um cachorrinho da raça poodle e que atende pelo nome de peralta, por favor o senhor pode anunciar?, carimba a música, e você escrevendo o recado, e súbito alguém chama no portão, é o vizinho da rádio, quer oferecer uma música ou só assistir você trabalhando, uma conversa reme-reme que haja Deus, e lá vem outra música e o telefone toca, alguém quer vaga no colégio estadual, por favor ligue para o outro programa, na segunda de manhã, é, sou eu mesmo sim senhora, e tome vinheta, outra música, e agora é o moço pedindo um “louvor”, nesse horário não tocamos isso não meu amigo, e ele xinga você, em nome de Jesus, carimba a música, e você acaba esquecendo de tocar os comerciais, passou a hora, os anunciantes vão ligar, reclamando, e o telefone tocando, agora é a namorada do locutor que saiu, se lastimando porque ele ainda não apareceu no local do encontro, será que você sabe onde ele está? Sei não, deve ter se atrasado, ele ficou aqui no estúdio um tempão (mentira), deve ter se atrasado. Carimba a música, programa a próxima vinheta, trava; o telefone tocando, agora um Paraíba com sotaque de japonês bêbado, quer ouvir Bartô Galeno, não tenho isso não, amigo, então Oldair José, pode ser?, também não trouxe, e você tem que falar os nomes das músicas que tocaram na última seqüência, a pedido de quem, oferecendo a quem, e o japa-paraibano não desliga, o Amado Batista não é possível que você não tenha, também não?, liga pro programa de forró, amanhã, amigo, o colega toca, e o telefone tocando, e falar baboseiras românticas com empostação de travesseiro porque o programa é romântico e há que despertar tesão, e o telefone tocando, e a música acabando, e alguém chamando... E a sua mulher em casa certa de que você está aos beijos e abraços com alguém no estúdio, comeu mais uma hoje, cobrança que fará quando você chegar em casa, cansado, vendo leads coloridos piscando, anunciando que a música já vai acabar, os ouvidos zumbindo, efeito dos fones e do telefone, a mulher aguardando a carimbada e você mortinho, pronto ao ronco, e a mulher esperando, hora de comercial, e a música acabando, o telefone tocando, e você programando e o telefone tocando e alguém chamando e você anotando e o telefone tocando, a música acabando e amanhã tudo de novo outra vez... Puta merda!

* N.A.: agora podem baixar na Internet, mas na época os computadores eram ainda novidade e a Internet não estava tão ao alcance.


In “Não Haverá Mais Natais”, romance autobiográfico.

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