quinta-feira, 23 de maio de 2013

A PIRANHA

Estou em Volta Redonda, município Fluminense, com a sua enorme usina siderúrgica.
                  Esta é a época em que mais trabalhei na vida, dividindo-me em tantas salas de aulas que há dias em que me confundo e não sei para onde devo ir, orientando-me pelas aulas da véspera, alheio a calendários e relógios.
                  Na segunda feira, pela manhã, dou aulas em Nova Iguaçu; a tarde e a noite, em Ramos.
                  Na terça-feira repito a dose.
                  Na quarta, dou aulas em Madureira, pela manhã, e em Ramos a tarde e a noite, terminando a aula vinte minutos antes, para dar tempo de chegar na rodoviária e embarcar para Minas Gerais, fazendo baldeação em Resende.
                  Viajo durante toda a madrugada, com a luzinha do ônibus acesa, corrigindo provas, lançando notas, avaliando relatórios.
                  Chego na Faculdade, em Minas, às seis e meia da matina. Tomo uma generosa dose de conhaque com coca-cola e café, para espantar o sono, o frio e o cansaço, e inicio a maratona, manhã, tarde e noite.
                  O frio é de lascar, com o orvalho solidificando na grama, umas agulhinhas de gelo muito bonitinhas, para enlevo do meu lado infantil.
                  Na verdade só trabalho de manhã e de noite, mas não durmo de tarde, reservando-a para a deliciosa atividade de percorrer pastos, pocilgas, galinheiros, hortas, pomares... Conversando com a peãozada, ou na cozinha, de conversa fiada com as funcionárias, esse carioca é muito engraçado, só vive falando sacanagem, botando apelido, com elas devotadamente atendendo aos meus pedidos culinários.
                  Era pedir numa semana para comer na outra: leitão a pururuca, cozido, arroz de carreteiro, vaca atolada, churrasco, peixada (peixes de água doce e ervas nativas)... E um mundaréu de doces, cada um mais saboroso que o outro.
                  Não tardou e toda a Faculdade passou a aguardar as quintas-feiras, amanhã é dia do Chiquinho Carioca, dia de rango melhorado.
                  Daí a questionarem os métodos que eu usava para fazer a mulherada me tratar como não tratava a nenhum outro funcionário foi um pulo, concluindo todos que eu era um come quieto, gerando comentários a boca miúda de que eu pegava de catedráticas às boias frias roçando pastos, um absurdo.
                  Na verdade só tive uma única aventura amorosa em Minas, e com uma fluminense, moradora em Nova Iguaçu, professora de Biogeografia, um mulherão três vezes maior que eu.
                  Esta conseguiu de mim o que nenhuma outra conseguiu, uma vontade louca de surrar uma mulher, de bater como se bate em homem mais forte que a gente, e foi preciso muito esforço para não ter o fato como consumado.
                  Ocasionalmente viajávamos juntos. Ela preferia ir mais cedo, para dormir com as alunas, no alojamento feminino, uma fofocada do cão, embarcando a tarde.
                  Numa quarta-feira resolveu pegar o ônibus das vinte e três horas e por acaso nos encontramos.
                  Aproximando-se a subida da Serra das Araras, reclamou de dor de dente, dor que foi se tornando aguda, incomodando muito.
                  Por pura solidariedade, apiedado, preocupei-me e me desdobrei em atenção, procurando mantê-la distraída até a próxima parada, uma hora e pouco adiante, quando compraria e tomaria um analgésico.
                  A conversa prosseguiu além da parada paliativa e adiei as críticas e avaliações dos relatórios dos alunos para o próximo fim de semana, euzinho esquartejado entre o compromisso pedagógico, um papo meio piegas, às vezes acadêmico, às vezes pautado no trivial variado, e um sono desgraçado semeando bocejos, suspiros e peso nas pálpebras.
                  Não projetei qualquer intenção de extrapolar a conversa.
                  Mulher enorme, embora de curvas certinhas, bem falante, do tipo cheguei, estou na área, podem olhar... Raia longa e pesada, à feição de corredores campeões, imprópria ao meu pangaré melhor preparado para correr com lesmas e tartarugas.
                  Passou a lançar olhares, deixando evidentes os cochichos com as alunas, os sorrisinhos maliciosos, sempre que eu passava, e se tornou pontual no ônibus das vinte e três, em todas as semanas.
                  Dois meses depois, cansado de me fazer de songo, sentindo-me donzela nas mãos de experiente tarado, fingi partir para o ataque.
                  A linha de frente estava tão frouxa e a defesa tão recuada que o que seria guerra foi rendição incondicional, antes mesmo do meu primeiro tiro.
                  Nessa mesma tarde minha carteira mudou de categoria: experiente na condução de carros e camionetes, pela primeira vez pilotei um carretão, com uma carroceria que... Meu Deus! E que difícil manobrar!
                  Mas acho que tive alguma competência, porque na semana seguinte quis mais, e na terceira e... Até que confessou ser comprometida, o que havia me negado.
                  E mais falou, que eu conhecia o marido dela, acreditando que só de vista ou contatos superficiais, sem saber que meu amigo de longa data, companheiro de papos longos, com consciência social e passado de luta, um excelente caráter, professor competente e de rara inteligência.
                  Fui tomado de tal fúria que conter-me nos limites só dos impropérios foi tarefa hercúlea, de extrema dificuldade na realização, piranha reduzindo-se ao mais ameno dos adjetivos a qualificá-la.
                  E o mundo se tornou pequeno para que eu me escondesse do amigo, a quem eu corneara inocentemente.
                  Em todas as terças-feiras nos encontrávamos e, nos intervalos das aulas, para mais aguçar a minha agonia, me abraçava e chamava para o café, falando dos gols do domingo ou do governo, sempre pichando.
                  Por muitas vezes estive bem próximo de contar-lhe o ocorrido, vontade que chegou ao auge no dia em que comentou que a mulher dele trabalhava comigo.
                  Uns meses depois chegou ao curso numa tremenda depressão, pouco falando e menos rindo ainda, como que alheio a tudo o que não fosse a própria dor.
                  Fomos ao café, no recreio, e me confidenciou: descobrira que a mulher o vinha traindo a um bom tempo, a vagabunda, palavra dele.
                  “Pois tenho uma coisa para lhe contar...”
                  “Não precisa”, me respondeu, “ela me contou”.
                  Como? Pois é, no calor da discussão, com o sistema nervoso além do limite, ultrapassado no primeiro tapa, para vingar-se da agressão, ela listou o longo rol de ex-amantes, comigo incluído.
                  “Nossa amizade não muda. Ela me disse que você não sabia de nada, ela escondeu... Se fosse eu no seu lugar tinha comido também... A amizade continua. Eu sei que se você soubesse...”
                  A amizade? Não acabou, mas mudou, esfriou na geladeira da frustração.


In “Não Haverá Mais Natais”, romance autobiográfico.

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