Estou em Volta Redonda , município Fluminense, com a sua
enorme usina siderúrgica.
Esta
é a época em que mais trabalhei na vida, dividindo-me em tantas salas de aulas
que há dias em que me confundo e não sei para onde devo ir, orientando-me pelas
aulas da véspera, alheio a calendários e relógios.
Na
segunda feira, pela manhã, dou aulas em Nova Iguaçu ; a tarde e a noite, em Ramos.
Na
terça-feira repito a dose.
Na
quarta, dou aulas em Madureira, pela manhã, e em Ramos a tarde e a noite,
terminando a aula vinte minutos antes, para dar tempo de chegar na rodoviária e
embarcar para Minas Gerais, fazendo baldeação em Resende.
Viajo
durante toda a madrugada, com a luzinha do ônibus acesa, corrigindo provas,
lançando notas, avaliando relatórios.
Chego
na Faculdade, em Minas, às seis e meia da matina. Tomo uma generosa dose de
conhaque com coca-cola e café, para espantar o sono, o frio e o cansaço, e
inicio a maratona, manhã, tarde e noite.
O
frio é de lascar, com o orvalho solidificando na grama, umas agulhinhas de gelo
muito bonitinhas, para enlevo do meu lado infantil.
Na
verdade só trabalho de manhã e de noite, mas não durmo de tarde, reservando-a
para a deliciosa atividade de percorrer pastos, pocilgas, galinheiros, hortas,
pomares... Conversando com a peãozada, ou na cozinha, de conversa fiada com as
funcionárias, esse carioca é muito engraçado, só vive falando sacanagem,
botando apelido, com elas devotadamente atendendo aos meus pedidos culinários.
Era
pedir numa semana para comer na outra: leitão a pururuca, cozido, arroz de
carreteiro, vaca atolada, churrasco, peixada (peixes de água doce e ervas nativas)...
E um mundaréu de doces, cada um mais saboroso que o outro.
Não
tardou e toda a Faculdade passou a aguardar as quintas-feiras, amanhã é dia do
Chiquinho Carioca, dia de rango melhorado.
Daí
a questionarem os métodos que eu usava para fazer a mulherada me tratar como
não tratava a nenhum outro funcionário foi um pulo, concluindo todos que eu era
um come quieto, gerando comentários a boca miúda de que eu pegava de
catedráticas às boias frias roçando pastos, um absurdo.
Na
verdade só tive uma única aventura amorosa em Minas, e com uma fluminense,
moradora em Nova Iguaçu ,
professora de Biogeografia, um mulherão três vezes maior que eu.
Esta
conseguiu de mim o que nenhuma outra conseguiu, uma vontade louca de surrar uma
mulher, de bater como se bate em homem mais forte que a gente, e foi preciso
muito esforço para não ter o fato como consumado.
Ocasionalmente
viajávamos juntos. Ela preferia ir mais cedo, para dormir com as alunas, no
alojamento feminino, uma fofocada do cão, embarcando a tarde.
Numa
quarta-feira resolveu pegar o ônibus das vinte e três horas e por acaso nos
encontramos.
Aproximando-se
a subida da Serra das Araras, reclamou de dor de dente, dor que foi se tornando
aguda, incomodando muito.
Por
pura solidariedade, apiedado, preocupei-me e me desdobrei em atenção,
procurando mantê-la distraída até a próxima parada, uma hora e pouco adiante,
quando compraria e tomaria um analgésico.
A
conversa prosseguiu além da parada
paliativa e adiei as críticas e avaliações dos relatórios dos alunos para o
próximo fim de semana, euzinho esquartejado entre o compromisso pedagógico, um
papo meio piegas, às vezes acadêmico, às vezes pautado no trivial variado, e um
sono desgraçado semeando bocejos, suspiros e peso nas pálpebras.
Não
projetei qualquer intenção de extrapolar a conversa.
Mulher
enorme, embora de curvas certinhas, bem falante, do tipo cheguei, estou na
área, podem olhar... Raia longa e pesada, à feição de corredores campeões,
imprópria ao meu pangaré melhor preparado para correr com lesmas e tartarugas.
Passou
a lançar olhares, deixando evidentes os cochichos com as alunas, os sorrisinhos
maliciosos, sempre que eu passava, e se tornou pontual no ônibus das vinte e
três, em todas as semanas.
Dois
meses depois, cansado de me fazer de songo, sentindo-me donzela nas mãos de
experiente tarado, fingi partir para o ataque.
A
linha de frente estava tão frouxa e a defesa tão recuada que o que seria guerra
foi rendição incondicional, antes mesmo do meu primeiro tiro.
Nessa
mesma tarde minha carteira mudou de categoria: experiente na condução de carros
e camionetes, pela primeira vez pilotei um carretão, com uma carroceria que...
Meu Deus! E que difícil manobrar!
Mas
acho que tive alguma competência, porque na semana seguinte quis mais, e na
terceira e... Até que confessou ser comprometida, o que havia me negado.
E
mais falou, que eu conhecia o marido dela, acreditando que só de vista ou
contatos superficiais, sem saber que meu amigo de longa data, companheiro de
papos longos, com consciência social e passado de luta, um excelente caráter,
professor competente e de rara inteligência.
Fui
tomado de tal fúria que conter-me nos limites só dos impropérios foi tarefa
hercúlea, de extrema dificuldade na realização, piranha reduzindo-se ao mais
ameno dos adjetivos a qualificá-la.
E
o mundo se tornou pequeno para que eu me escondesse do amigo, a quem eu
corneara inocentemente.
Em
todas as terças-feiras nos encontrávamos e, nos intervalos das aulas, para mais
aguçar a minha agonia, me abraçava e chamava para o café, falando dos gols do
domingo ou do governo, sempre pichando.
Por
muitas vezes estive bem próximo de contar-lhe o ocorrido, vontade que chegou ao
auge no dia em que comentou que a mulher dele trabalhava comigo.
Uns
meses depois chegou ao curso numa tremenda depressão, pouco falando e menos
rindo ainda, como que alheio a tudo o que não fosse a própria dor.
Fomos
ao café, no recreio, e me confidenciou: descobrira que a mulher o vinha traindo
a um bom tempo, a vagabunda, palavra dele.
“Pois tenho uma coisa para lhe contar...”
“Não precisa”, me respondeu, “ela
me contou”.
Como?
Pois é, no calor da discussão, com o sistema nervoso além do limite,
ultrapassado no primeiro tapa, para vingar-se da agressão, ela listou o longo
rol de ex-amantes, comigo incluído.
“Nossa amizade não muda. Ela me disse que
você não sabia de nada, ela escondeu... Se fosse eu no seu lugar tinha comido
também... A amizade continua. Eu sei que se você soubesse...”
A amizade? Não acabou, mas mudou, esfriou na geladeira
da frustração.
In “Não Haverá Mais Natais”, romance
autobiográfico.
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