Emprego está brabo, voltei pra feira. Minha banca é de
cebola e abóboras. Abóbora baiana porque é pequena, não precisa pesar. Não
tenho balança nem grana pra comprar.
Cebolas
de segunda. As compro mais baratas na CEASA, os meus filhos, a mulher cheirando
a cebola até o mais íntimo da alma, todo mundo descascando, limpando, dando um
trato pra parecer cebola de primeira, vez ou outra chuchu, mercadoria ingrata
que amarela e endurece de um dia pro outro.
A
mesma rotina todos os dias: acordar quatro e meia. Antes das seis na feira,
recebendo sacos e caixotes no caminhão, disputando lugar no chão, outros
camelôs achando-se os donos do lugar, os barraqueiros criando dificuldades ao
concorrente, “aqui não que trabalho com
cebola também, bota lá que o cara trabalha com frutas”, mas já tem um cara
lá, já tem gente.
Depois os fiscais, o rapa, todo mundo mordendo,
dividindo lucro. Depois a polícia, morde também.
Se
vendeu pouco, grana curta, leva cebola, qualquer coisa porque leva por vício.
Se não levar não se sente polícia.
Agora
a discussão com o caminhoneiro. Jogaram a mercadoria de qualquer jeito,
amassou, quebrou o caixote, rasgou saco.
E
juntar tudo, embalar, esperar o caminhão, pagar o frete, duas e pouco da tarde,
sono no esqueleto, ir à CEASA comprar novamente, despachar no caminhão, chegar
em casa às cinco e meia, seis, chuveirada de espanta cebola, almoçar agora, a
mulher cabreira, “dia todo na rua, fala
aí, tem vagabunda beliscando, dinheiro mirrado pra casa, mixaria. Melhor
arranjar emprego de carteira fichada ou o artesanato, aquelas merdas que você
pintava, o trabalho no couro, carteiras, pochetes e tira-colos davam mais
grana, por que não faz de novo? Você não sossega o rabo, quer fazer de tudo,
vive pulando de galho em galho...”
E
o providencial convite, primeiro de muitos porque esbarrão de vocação, vontade
e necessidade: “tem um cara ruim de papo,
os alunos estão insatisfeitos, não quer substituir, dar aulas de ciências?
Coisa fácil, de supletivo e preparatório de concursos, por que você não tenta?
Se quiser eu te apresento lá!”
Primeiro
dia. Melhor: primeira noite. Melhor ainda: primeira aula na vida.
Curso
noturno, vinte e oito alunos, vinte oito pares de olhinhos em mim, cinquenta e
seis olhinhos fixos, esse baixinho com cara de garoto, gestos de garoto, roupa
de garoto... Professor? Sai um táti-bi-táti entra um garoto, assim não dá.
Timidez
embargando a voz, calando, aterrorizando o raciocínio. Abro o livro e copio o
texto no quadro, todo mundo copiando do quadro. Apago, copio mais, copiam mais,
apago, copio mais...
Melhor
ambientado respiro fundo, começo a explicar baixinho, mais murmurando que
falando.
Me
empolgo e já não vejo ninguém, pouco se me dá se são vinte e oito ou vinte e
oito mil.
Abandono
o texto copiado, e o que falo vem de dentro.
Já
não sou eu, os segredos da natureza dando-se a se revelar, estames e carpelos,
hemoglobina, pâncreas, resultante de efe um, elétrons deslocados, lacertídeos e
lepidópteros passeando sobre as minhas retinas enamoradas do conhecimento
compartilhado, falando solto e com vontade como quem canta mulher gostosa,
murmurando como quem ora, com a eloquência de político demagogo ou sussurros de
conselhos a crianças alternando-se sem ensaio, prévias determinações ou
orientação, os alunos me procurando depois da aula, elogiando, e a minha vontade
de continuar madrugada à dentro, dia seguinte, num nunca mais parar, lastimando
a próxima aula estar a só daqui a dois dias.
Pudesse
e seria todo dia, toda hora. E será.
Nasci
professor e não sabia.
In “Não Haverá Mais Natais”, romance
autobiográfico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário