quinta-feira, 23 de maio de 2013

DE BISCATE A SACERDÓCIO

Emprego está brabo, voltei pra feira. Minha banca é de cebola e abóboras. Abóbora baiana porque é pequena, não precisa pesar. Não tenho balança nem grana pra comprar.
                  Cebolas de segunda. As compro mais baratas na CEASA, os meus filhos, a mulher cheirando a cebola até o mais íntimo da alma, todo mundo descascando, limpando, dando um trato pra parecer cebola de primeira, vez ou outra chuchu, mercadoria ingrata que amarela e endurece de um dia pro outro.
                  A mesma rotina todos os dias: acordar quatro e meia. Antes das seis na feira, recebendo sacos e caixotes no caminhão, disputando lugar no chão, outros camelôs achando-se os donos do lugar, os barraqueiros criando dificuldades ao concorrente, “aqui não que trabalho com cebola também, bota lá que o cara trabalha com frutas”, mas já tem um cara lá, já tem gente.
Depois os fiscais, o rapa, todo mundo mordendo, dividindo lucro. Depois a polícia, morde também.
                  Se vendeu pouco, grana curta, leva cebola, qualquer coisa porque leva por vício. Se não levar não se sente polícia.
                  Agora a discussão com o caminhoneiro. Jogaram a mercadoria de qualquer jeito, amassou, quebrou o caixote, rasgou saco.
                  E juntar tudo, embalar, esperar o caminhão, pagar o frete, duas e pouco da tarde, sono no esqueleto, ir à CEASA comprar novamente, despachar no caminhão, chegar em casa às cinco e meia, seis, chuveirada de espanta cebola, almoçar agora, a mulher cabreira, “dia todo na rua, fala aí, tem vagabunda beliscando, dinheiro mirrado pra casa, mixaria. Melhor arranjar emprego de carteira fichada ou o artesanato, aquelas merdas que você pintava, o trabalho no couro, carteiras, pochetes e tira-colos davam mais grana, por que não faz de novo? Você não sossega o rabo, quer fazer de tudo, vive pulando de galho em galho...” 
                  E o providencial convite, primeiro de muitos porque esbarrão de vocação, vontade e necessidade: “tem um cara ruim de papo, os alunos estão insatisfeitos, não quer substituir, dar aulas de ciências? Coisa fácil, de supletivo e preparatório de concursos, por que você não tenta? Se quiser eu te apresento lá!”
                  Primeiro dia. Melhor: primeira noite. Melhor ainda: primeira aula na vida.
                  Curso noturno, vinte e oito alunos, vinte oito pares de olhinhos em mim, cinquenta e seis olhinhos fixos, esse baixinho com cara de garoto, gestos de garoto, roupa de garoto... Professor? Sai um táti-bi-táti entra um garoto, assim não dá.
                  Timidez embargando a voz, calando, aterrorizando o raciocínio. Abro o livro e copio o texto no quadro, todo mundo copiando do quadro. Apago, copio mais, copiam mais, apago, copio mais...
                  Melhor ambientado respiro fundo, começo a explicar baixinho, mais murmurando que falando.
                  Me empolgo e já não vejo ninguém, pouco se me dá se são vinte e oito ou vinte e oito mil.
                  Abandono o texto copiado, e o que falo vem de dentro.
                  Já não sou eu, os segredos da natureza dando-se a se revelar, estames e carpelos, hemoglobina, pâncreas, resultante de efe um, elétrons deslocados, lacertídeos e lepidópteros passeando sobre as minhas retinas enamoradas do conhecimento compartilhado, falando solto e com vontade como quem canta mulher gostosa, murmurando como quem ora, com a eloquência de político demagogo ou sussurros de conselhos a crianças alternando-se sem ensaio, prévias determinações ou orientação, os alunos me procurando depois da aula, elogiando, e a minha vontade de continuar madrugada à dentro, dia seguinte, num nunca mais parar, lastimando a próxima aula estar a só daqui a dois dias.
                  Pudesse e seria todo dia, toda hora. E será.
                  Nasci professor e não sabia.


In “Não Haverá Mais Natais”, romance autobiográfico.

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