quinta-feira, 23 de maio de 2013

A RÃ

Sempre medi o tamanho da fé de uma pessoa pelo medo que essa mesma pessoa tem da morte, de morrer.
                  Não importa se a fé pensada, consciente, como a de Jesus e outros mártires, ou a fé fanática, produto de lavagem cerebral, apoiada na ignorância e nos preconceitos, como a dos terroristas que se acreditam mártires, atirando aviões sobre edifícios, veículos lotados de explosivos sobre multidões, ou anunciando armagedons e apocalipses para o dia seguinte.
                  Católico, eu tinha um terrível medo de morrer. E mais, dos mortos, acreditando que apareceriam para mim e coisas que tais.
                  Veio a fase mística e a curiosidade dividiu espaço com o medo.
                  Seguiu-se uma crise de ceticismo e o medo diminuiu mais ainda, mas perdurou.
                  Comunista, o materialismo dialético criou-me a frustração de me saber finito e de aquisições inúteis porque sem possibilidade de uso futuro, no chamado post mortem.
                  Durante a recaída no misticismo, andei pensando muito na morte.
                  Não no depois da morte, mas no ato de morrer, na passagem da dimensão do corpo para a dimensão do pensamento absoluto, que eu chamava de espírito, e tive um sonho que julgo esclarecedor, a partir do que praticamente perdi o medo de morrer, se é que isto é possível em qualquer ser vivo.
                  Atenderei à sua curiosidade: sonhei que eu era uma rã.
                  Foi um sonho tão intenso, tão realista que senti a umidade em minha pele buscando lugares sombrios, fugindo da luz direta.
                  Eu ficava imóvel, aguardando que alguma coisa miúda se deslocasse próximo, ao alcance da minha língua visguenta, pegajosa.
                  Bastava que algo estabelecesse uma trajetória, se movimentasse perto e vapt! Minha língua certeira interceptava, trazendo até o palato.
                  Primeiro eu sentia as perninhas querendo apoiar-se sobre a minha língua, no céu da boca, bochechas, qualquer lugar que servisse de apoio, em vã tentativa de fuga.
                  Depois engolia, sentindo aquela coisa dura passar pela garganta, quase sempre imóvel, mas às vezes debatendo-se goela abaixo, faringe e esôfago, até que os meus ácidos estomacais terminassem com a agonia.
                  Remorsos, piedade, eu?
                  O mesmo remorso e a mesma piedade que você sente ao ver as galinhas ciscando, alheias em suas vidinhas de galinhas, no quintal ou confinadas em granjas, aos milhares em cada galpão, sem terem cometido delito algum.
                  O mesmo remorso e a mesma piedade que você sente ao retalhar o bife no almoço, sem se questionar.
                  O mesmo instinto animal a fazer presa tudo o que não for nós mesmos.
                  Em determinado momento deparei-me com dois olhos negros, de pupilas verticais, uma boca desmesuradamente rasgada e a língua bifurcada tateando o espaço, bebendo o meu cheiro.
                  A distância era curta demais para que eu tentasse uma fuga desesperada, dando as costas e permitindo o ataque, então fiquei imóvel, o que foi fatal.
                  Posteriormente questionei isso e, um pouco conhecedor da História Natural, concluí que a rã não vê a cobra, já que só percebe sombras difusas de corpos em movimento, o que determina a sua imobilidade diante da morte iminente.
                  Não é rendição, é alheamento.
                  Voltando ao sonho: quando percebi a grande mancha se deslocando em minha direção, o que durou uma fração mínima de segundo, não tive tempo sequer para o exercício dos reflexos, muito mais rápidos que os pensamentos: dois instrumentos perfurantes atingiram-me, um no abdômen, lado direito, perfurando o fígado e os intestinos, e o outro na parte posterior das costas, lacerando os rins e o baço.
                  Debati-me em dor lacerante, buscando uma fuga pânica, em movimentos desordenados que mais ferimentos internos produziram, as patas traseiras se apoiando no espaço, executando saltos imaginários, e as dianteiras com as unhas fincadas no chão, traçando os rastros da agonia.
                  Assim fiquei por um tempo que não sei precisar, até que, diante do inexorável, do incontornável, da sentença definitiva e sem recursos possíveis, relaxei.
                  As dores sumiram imediatamente e fui tomado de uma sensação de paz, de comunhão com tudo, não sei explicar, como se eu fizesse parte de tudo e tudo fizesse parte de mim, todo o universo uma coisa só, contínua, seguindo-se um alheamento profundo, um vazio abissal, sem memória e sem idéias, como se eu, aquela rã, nunca tivesse existido.


In “Não Haverá Mais Natais”, romance autobiográfico

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