sábado, 25 de maio de 2013

EU, UM JORNAL

De todas as minhas iniciativas e atividades, a que me deu mais prazer, maior prejuízo financeiro, maior motivo de me divertir e mais aporrinhação; a que gerou mais ódio e admiração foi o jornal de bairro.
                           Nunca me conformei com a aversão do brasileiro à leitura. Somente Buenos Aires tem mais livrarias que todas as cidades brasileiras juntas (e nós ainda sacaneamos os argentinos).
                           Na Europa e nos Estados Unidos qualquer obra começa com uma tiragem de cinqüenta, cem mil exemplares.
                           No Brasil os autores que vendem três mil, cinco mil exemplares são considerados grandes vendedores, populares.
                           Resolvi por a comunidade para ler.
                           Apoiado no meu programa de rádio, com boa audiência, por conta das polêmicas e do assistencialismo*, criei um jornal: “Falação”.
                           O primeiro desafio foi determinar que tipo de jornal.
                           Optei por uma linguagem simples, letras grandes, muita ilustração e principalmente capaz de provocar sorrisos, mesmo quando a denúncia fosse séria, numa linha próxima d’O Pasquim, um marco no jornalismo brasileiro.
                           O segundo desafio, quase inviabilizando o projeto, foi a mão de obra: em quatro números só tive duas contribuições, mesmo assim quase reescrevendo os textos enviados.
                           E virei não só uma empresa jornalística como uma equipe inteira, fazendo o jornal sozinho: agenciador de publicidade, cobrador, arte finalista, pauteiro, redator, redator chefe de mim mesmo, repórter, cronista, colunista, revisor, fotógrafo, ilustrador, cartunista, caricaturista, diagramador, digitador, revisor, o contínuo que levava o disquete para a “Tribuna da Imprensa”, onde era impresso o jornal, o peão que trazia os jornais do centro da cidade para o bairro, e o distribuidor, deixando pilhas de jornais sobre os balcões dos estabelecimentos comerciais, onde as pessoas pegavam, gratuitamente.
                           Eu era o jornal.
                           Para isso criei diversos pseudônimos, na verdade personagens, com o cuidado de redigir com estilos variados e diferentes personalidades.
                           Os mais perspicazes, muito poucos, desconfiaram logo, mas a quase totalidade dos leitores foi optando, tornando-se fãs de um, criticando outro, acreditando serem pessoas diferentes.
                           Para dar a pista, os nomes dos “contribuintes”: Sylvério Deletério, o mau humorado, crítico mordaz das autoridades, principalmente do Administrador Regional e do Prefeito César Mala; Pancrácio Jeremias, o intelectual explicando Freud e pregando as excelências do socialismo; Leocádia Mercedina, uma perua deslumbrada, burrinha que só, escrevendo sobre comidas, inutilidades e roupas; Micrópilo Tibério, o responsável pelas charges e cartuns (o que me dava mais trabalho, principalmente para caricaturar o Fernando Henrique Cardoso e sua beiçola de mamar ovo).
                           E se passava algum erro de revisão ou impressão, no número seguinte eu me sacaneava sacaneando o “seu Mirthos”, nosso revisor, o professor de português “pouco afeito às letras”.
                           Descaradamente plagiando O Pasquim, inventei algumas cartas dos leitores, respondendo-as sacaneando o texto, a ideia e o missivista, o bastante para incentivar masoquistas, que passaram a escrever para o jornal.
                           Quanto mais indignada a carta, mais eu sacaneava, o que me custou más criações e desaforos pelo telefone, durante o meu programa.
                           O primeiro número teve quatro páginas, tipo tablóide (meia folha de jornal), e tiragem de mil exemplares. Esgotou em dois dias.
                           O segundo número veio com oito páginas e tiragem de dois mil exemplares. Esgotou.
                           O terceiro, também com oito páginas, teve uma tiragem de dois mil exemplares e, uma semana depois, mais mil exemplares.
                           Me animei, já bolando um concurso literário na comunidade e um livro com os melhores trabalhos.
                           A essa altura já não era mais um jornal de bairro, com distribuição nos bairros vizinhos.
                           Começou a pressão das “autoridades”: o administrador regional, “agendou”, por conta própria, uma entrevista comigo, no meu programa, para esclarecer as “inverdades” que Sylvério Deletério havia assacado contra ele, inclusive ameaçando de processo judicial o pobre do jornalista, por calúnia (foi um suadouro eu esconder o endereço do “amigo”, ou pelo menos apontar um lugar onde a polícia pudesse encontrá-lo).
                           Mais pândego foi o meu encontro com o Sub-prefeito da região, um sujeito grosso, autoritário, ligado aos grupos de extermínio, embrião das atuais milícias, alimentando pretensões eletivas (veio candidato a deputado e perdeu).
                           Começou falando alto, querendo saber quem estava por trás do jornal, quem era o interessado no jornal, não sei se pensando num gangster rival ou num político de oposição.
                           Diante da minha resposta, “os anunciantes e os leitores”, quis saber como é que com um jornal tão pequeno eu conseguia pagar “essa gente toda”.
                           Já irritado, também alteei a voz: “problema meu. O seu interesse nessa prosa é política ou contábil?”
                           Tivesse dado corda e não tivesse compromisso com a minha consciência, teria levado uma boa grana para mudar a linha do jornal (a maioria dos jornais comunitários recebe “subvenção”).
                           A conversa permaneceu tensa, com ele ameaçando fechar o jornal: “o senhor não é jornalista formado, é professor. O seu jornal não tem um profissional responsável. Não tem CNPJ, alvará, não paga impostos. O prefeito vai fechar.”
                           Perdi em definitivo a paciência: “pois duvido! Diga ao prefeito que é para ele fazer o que ele e os puxa sacos dele prometem que não cobro. O trabalho de vocês é fazer, o meu é cobrar o que não foi feito. Agora com licença que já estou preparando o próximo número.”
                           Dias depois recebi um documento amenizador, um velado pedido de desculpas, com a promessa de uma entrevista do prefeito no meu programa.
                           Cobrei por duas vezes. Deram desculpas.
                           Não sei se para evitar que eu ou outra pessoa organizasse os moradores, inesperadamente, quase em segredo, César Mala resolveu visitar o bairro.
                           Mal assistido pelos aspones e puxa sacos, veio logo depois de uma grande inundação, quando as famílias perderam quase tudo.
                           Reconhecido, recebeu gostosa vaia e... Uma chuva de merda de vaca sobre o carro da autoridade, a corriola, digo a comitiva, debandando antes que tivessem os ternos cagados, povo maravilhoso!
                           E, fecho de ouro, entrevistei Sérgio Cabral, inimigo político do Mala, que se julgava dono do curral eleitoral onde perdeu a eleição.
                          
* N.A.: Conseguíamos e intermediávamos doações de cestas básicas, móveis usados, muletas, cadeiras de roda, enxovais de bebês, internações em hospitais... Na própria comunidade.

                    Se cada edição do jornal faz o pânico dos poderosos, pânico menor não faz na própria comunidade, já que a vigilância sobre os maus moradores é implacável, transformando o jornal em central de reclamações e denúncias.
                           A prefeitura tem um programa de urbanização, o “Favela Bairro”. Crio a seção Bairro Favela, onde, sem dar nomes, mas dizendo onde o fato está ocorrendo, algumas vezes fotografando e publicando, vou fazendo as denúncias, puxando as orelhas dos maus moradores: um que, por conta própria, fez um quebra molas em frente de casa, alto e estreito, detonando as suspensões dos automóveis; alguém que está transformando terreno baldio em depósito de lixo; outro que cultiva criatórios do mosquito da dengue...
                           Por causa da ocupação indevida das calçadas (os comerciantes levantam paredes nas calçadas, transformando-as em extensões dos estabelecimentos, deixando só uma faixa estreita para os pedestres passarem, quando deixam), ganharei “inimigos”: lancei um concurso: “quem melhor enxota o povo”, colocando as fotografias das invasões no jornal.
                           Em quinze dias, com vergonha das fotos no jornal e por causa dos comentários, acabam todos os puxadinhos nas calçadas, todos os infratores, revoltados, metendo as marretas.
                           Paralelo a isso, há um colaborador, o professor Lautécio Caldas (este é logo identificado, comigo negando, claro) que, numa coluna de meia página, fala sério: drogas, doenças sexualmente transmissíveis, dengue, gravidez precoce, violência doméstica, preconceito racial...
                           O professor Lautécio é tão levado a sério que um dos seus artigos vai render por bom tempo.
                           Contaram-me que os meninos do bairro estavam pegando limalha de ferro nas serralherias para fazer cerol, o pó de ferro substituindo o pó de vidro.
                           Lautécio começa o artigo falando das pipas no mundo todo, principalmente na China, usada até para lançar explosivos sobre os inimigos (os primeiros ataques aéreos da história), dos estudos de Franklin sobre a eletricidade atmosférica, quando usou pipas nas experiências. Deu os sinônimos do termo pipa nas mais diversas regiões do país... Culminando pela interpretação freudiana do hábito de soltar pipas, dando uma sacaneadinha nos adultos que as empinam.*
                           Depois mostrou que a linha e a cola de madeira, por serem de origem vegetal, são isolantes, o mesmo acontecendo com o vidro, evitando choques na fiação elétrica, salvo se a linha estiver molhada.
                           Ao substituir o vidro por um metal, o menino na verdade está construindo um fio que irá conectá-lo à fiação elétrica, sem contar o poder de corte, muito maior, provocando ferimentos graves e até mutilações.
                           O que tem de serralheiro se justificando... “Professor, eu não dou a limalha. Vendo tudo para reciclagem”, “seu Francisco, diz ao professor Lautécio que se algum moleque me pedir limalha mando chamar o pai”...
                           E a molecada continua moendo vidro nas calçadas.
                           A essa altura, além de temido pelos cafetões do povo e dos maus moradores, o jornal está respeitado, circulando na Administração Regional, Subprefeitura, Batalhão, Escolas... Esgotando-se rapidamente (como anuncio no rádio o dia do lançamento e os locais da distribuição gratuita, o que aparece de gente estranha no bairro, para pegar o jornal... Claro que vêm mandados, a serviço de “poderosos” ansiosos e preocupados).
                           Sai finalmente o último número do Falação, com doze páginas e uma tiragem de quatro mil exemplares.
                           Mesmo sem ter idéia de estar editando o último número, baixo o pano com pompa e circunstância.
                           O bairro está mudando rapidamente, tornando-se violento, com invasões de terrenos, o aparecimento dos primeiros cadáveres em terrenos baldios, maus policiais cobrando por serviços públicos (há até casos de cobrança de porcentagem sobre móveis e imóveis comprados e vendidos, por uma falsa associação de moradores), autonomeações de xerifes locais, exatamente como em qualquer morro carioca.
                           Chego ao rádio e comento ter mantido contato com um dos líderes das invasões, o principal, descrevendo a maneira difícil, cercada de segurança, por parte dele, para conversarmos sobre tudo, com ele me explicando todo o mecanismo da violência urbana, todas as arbitrariedades até então cometidas, principalmente na nossa região, inclusive dando nomes, comigo gravando tudo, com cópias em mãos seguras.
                           Por uma semana sou maravilhosamente bem tratado pela galera dos rabos presos, com todos fazendo questão de me cumprimentar, e aí tudo bem com o senhor? Que Deus lhe acompanhe, professor.
                           Tenho o cuidado de não citar nenhum nome, de não comprometer ninguém, mas publico tudo o que está acontecendo, como está acontecendo, porque está acontecendo e no interesse de quem está acontecendo, num total de quase quatro páginas, um terço do jornal.
                           O negócio começa no bairro e termina nos gabinetes, no centro da cidade, os três poderes envolvidos, todo mundo comendo.
                           É um tal de gente ressabiada, fazendo sinal de “sujou”, quando eu me aproximo... Os mais ousados ensaiando conversa comigo, fazendo rodeios, sondando, buscando indícios de quem teria me dado a entrevista, loucos para encontrá-lo.
                           Se um dia eu escrever a minha autobiografia, como pretendo, quando a maior parte deles tiver morrido, parte presos e parte de pijamas, aposentados ou reformados, vou revelar quem foi.
                           Direi a verdade.
                           Escreverei que quem me deu a entrevista foi... Ninguém.
                           O entrevistado foi mais um personagem meu denunciando o que eu sabia.
                           Montei a entrevista.
                           O meu encontro foi descrito numa situação tão fantasiosa, tão cercada de cuidados, exatamente como se davam nos pontos e aparelhos, na época do movimento clandestino contra a ditadura, que até hoje não entendi como homens ligados à segurança pública não perceberam, sequer desconfiaram, que era uma farsa.
                           E mais: caracterizei o entrevistado como um ativista sem-terra... Em área urbana, haja Deus.
                           Como na televisão estava passando a novela “O Rei do Gado”, inspirei-me em um dos personagens, Regino, o líder sem-terra, protetor da Luana, a sem terra encarnada na Patrícia Pillar, agora Patrícia Gomes, sortudo esse Ciro.

* N. A.: Sigmund Freud, pai da psicanálise. A interpretação freudiana para essa brincadeira é que a pipa é a representação simbólica do pênis. Então o que ocorre entre os meninos é uma competição para ver quem tem o pênis maior, mais bonito, quem o mantêm mais tempo ereto (mais tempo com a pipa no ar, sem ser “cortado”), além da competição masculina pelo espaço, pelo domínio de uma área, como ocorre em todo o reino animal. A associação da atividade com a masturbação masculina é óbvia.
                           Já a bola de gude é competição sexual direta, com o triângulo ou a búlica (buraco a ser ocupado pela bola de gude) funcionando simbolicamente como a vagina.
                           Ganha quem desalojar mais bolinhas (machos) do triângulo ou ocupar mais búlicas (fêmeas).
                           Aí está o motivo das meninas não se interessarem por essas brincadeiras.
                           Como sacaneei os adultos que gostam das brincadeiras infantis/adolescentes? Insinuando que o soltar pipas nessa idade é sintoma de disfunção erétil: quem ocupa triângulos com bolinhas de vidro é porque não tem muita competência para ocupar triângulos de verdade.
                           A polêmica que isso gerou... Nossa!
                           Um detalhe: sou meio avesso ao freudianismo, por achar as suas interpretações reducionistas e um tanto fantasiosas.


                           Velório do Falação.
                           É muito caro publicar um jornal. Mesmo comigo sendo toda a mão de obra, a impressão é cara.
                           No princípio eu custeava parte e os anunciantes, parte, mais ou menos meio a meio.
                           Na medida em que as polêmicas foram aumentando e me tornei mais ousado nas críticas aos poderosos, os anúncios foram minguando, minguando... E passei a bancar o jornal quase sozinho.
                           Uns correram por medo, com a preocupação de que anunciando estavam concordando com o publicado (de certa maneira sim), outros porque se sentiram atingidos.
                           Isso me deixou duro e começou a pesar no caixa da escola.
                           Não bastasse, já tinha vazado que eu fazia o jornal sozinho, muita gente sabendo quem estava por trás da metralhadora giratória.
                           Juntou-se uma tentativa de intimidação*, com homens acintosamente armados, o que só me irritou, mas me pôs com as barbas de molho em relação aos meus filhos, netos, genros e noras circulando pelas ruas do bairro, ao alcance de covardes.
                           Havia ainda a escola. Poderiam associar a raiva a mim à escola, diminuindo o número de alunos, ou até uma covardia fiscal, encetada pelos “poderosos”.
                           Para piorar mais ainda, os adversários e inimigos descobriram a mais eficaz forma de contra-ataque: a calúnia e a difamação.
                           Começou a circular que o jornal era uma fachada política, já que eu viria candidato a deputado (nem quando dirigi um sindicato que me garantiria fácil a eleição. Conheço os corredores do poder); que eu estava rico (essa fama no meio da miséria é pior que lepra); cada grupinho afirmando que eu estava a serviço do outro grupinho...
                           De todo o dito, porém, o mais irritante partiu das hostes “evangélicas”: comprei a escola e enriqueci porque fiz um pacto com satanás, sabia falar e escrever porque era usado por satanás, e coisas que tais.
                           A boa nova se alastrou como o fogo no paiol da minha infância, com gente me evitando, para não ter contato com o maligno.
                           Acho maravilhosas as cabeças dos fanáticos.
                           Uma historinha real:
                          
                           Chego em casa morto de fome, sem ter almoçado, mais de dez entrevistas naquele dia, na Ilha do Governador, um calor de caldeira siderúrgica, a mulher: “vai jantar?”
                           “Não! Vou pedir uma pizza”. (se não almoço não janto, a enxaqueca).
                           Ato contínuo, vou ao telefone: “manda uma pizza de atum. Capricha que o motoqueiro leva uma cerveja gorda”.
                           Tomo banho rápido, para não dar tempo da pizza esfriar. Não entregam.
                           Vou para a rede, já irritado, fico matutando sobre a vida, essa baldeação na desgraça e, quarenta minutos depois, ronco de moto, buzina de moto, berro de motoqueiro: “professor!”
                           Pago, pergunto se está caprichada e entro.
                           Cerimonialmente a coloco sobre a mesa, altar da minha fome, lavo as mãos, muno-me de faca e garfo, pronto para o duelo, abro o embrulho e... Pizza de sardinha em lata!
                           Cólera de pit bull que levou pontapé no saco.
                           Concentro-me e incorporo Aurélio, Houssais, Rocha Pombo e todos os etimologistas, lexicógrafos, dicionaristas... Todos os que conhecem todas as palavras, justamente para tomar de empréstimo os palavrões, as pornografias, os termos chulos... Tudo o que eu tinha direito naquele momento.
                           Ligo: “pronto? Quem está falando aqui é o cara que pediu uma pizza de atum, ainda a pouco, lembra?”
                           “O professor...”
                           “Isso. Cara vocês mandaram sardinha no lugar do atum, está pensando que sou babaca?”. E comecei, mãe, vó e tias dele homenageadas até a geração que sucedeu a de Adão e Eva.
                           Do outro lado: “o senhor não pode falar isso, eu sou filho de um Deus vivo, o senhor é que tem pacto com o diabo, é rico porque vendeu a alma, eu vivo no sangue de Jesus...” E por aí foi, irando-me mais ainda.
                           Que me perdoem as meninas dos olhos dos leitores e os olhos das meninas dos idem, mas em determinado momento, minha mulher às gargalhadas: “qué isso, menino!”, não me contive mais: “diabo é o caralho. Manda o diabo aqui que eu como o rabo dele. Sabe o que você faz com o seu diabo?”
                           E o cara do outro lado, gritando também: “meu diabo não. Eu sou filho de Deus!”
                           Impotente para amestrar a minha língua, berrou: “vou mandar outra pizza. Não precisa pagar.”
                           “Vê se dessa vez manda de atum, e vou pagar sim porque você tem pistolão no céu e não quero fazer dívidas lá”
                           Deve ter quebrado o telefone, tamanha foi a porrada do fone no gancho.
                           Volta o motoqueiro. Abro o embrulho na frente dele. Atum.
                           Pago: “entrega o dinheiro porque vou ligar comunicando que paguei”. Devolvo a de sardinha.
                           “Não precisa devolver não.”
                           “Precisa porque senão amanhã estão dizendo nas igrejas que sou vigarista, como duas pizzas e só pago uma.”
                           Vou à pizza, finalmente.
                           No meio da relação, digo, da refeição, sem tê-la comido devidamente, o telefone toca.
                           A mulher atende: “filho, é o cara da pizzaria”
                           Atendo: “agora foi certinho, professor? Estou ligando para lhe pedir desculpas. O rapaz se confundiu e trocou, isso não vai acontecer mais”
                           “Tudo bem, eu também lhe peço desculpas, não é bom a gente se sentir enganado. Mas me diz uma coisa: que conversa é essa de que tenho pacto com o diabo?”
                           “O pessoal comenta isso a muito tempo, professor, que o senhor está com o burro na sombra porque fez pacto com o maligno, prá comprar a escola.”
                           “Pois preste a atenção no que vou dizer: eu não teria como fazer pacto com o diabo simplesmente porque não acredito na existência do diabo. O meu Deus é tão grande e poderoso que não sobra espaço para poder paralelo. Quanto a ser um Deus vivo, só vou pensar sobre isso no dia em que soubermos o que é vida, o que é estar vivo. Até agora nem a filosofia nem a ciência explicaram.”
                           “Mas o diabo existe, professor...”
                           “Fique com a sua crença que eu fico com a minha. Em relação ao que você chamou de engano, a lata de sardinha tem forma, tamanho e cor diferentes da lata de atum, as carnes do atum e da sardinha têm cores e texturas bem diferentes, e os cheiros são inconfundíveis. Você está cego e com o nariz entupido?”
                           Ele riu: “está bem. Eu só liguei para pedir desculpas e dizer que considero muito o senhor.”
                           E a última alfinetada: “obrigado. Longe de mim pensar que foi preocupação com a minha língua no rádio. Fique tranqüilo que não vou comentar”.
                           “Eu sabia. Obrigado.”
                           Desligou.
                           Assim funciona as cabeças dos religiosos fanáticos, até a desonestidade, em nome de Jesus. Já a contestação, a exigência de respeito, feita por um não salvo, é coisa de satanás.
                          
* N. A.: no dia seguinte, em meu programa, denunciei tudo, dando os detalhes do ocorrido e o motivo: minha pancadaria verbal sobre o monopólio do transporte público na zona oeste, com duas empresas fazendo o que querem, inclusive os usuários de palhaços, recusando passageiros, circulando fora dos horários, com menos carros na linha do que determina o contrato de concessão pública, ônibus em mal estado de conservação...
                        Os brutamontes eram seguranças de uma empresa de ônibus.  

In "Não Haverá Mais Natais", romance autobiográfico.

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