Estou no sindicato. Cheguei determinado, disposto a
justificar tudo e sumir. Em carta-renúncia atestar a minha fraqueza, eu também
me rendi, fui cooptado, me entreguei, sou algoz agora.
Peço
reunião da direção para depois do almoço, amanhã não, é urgente.
Quem
estiver fora do Estado que saiba depois, é grave o que tenho a dizer. Minha
vida será outra amanhã.
De
hoje para trás só saudade e sentimento de dever cumprido naqueles momentos de
um ciclo que se fecha hoje, e doces, deliciosas lembranças, para sempre.
Virei
patrão, confesso-lhes. Vou renunciar agora. Não faz sentido eu dirigir um
sindicato de trabalhadores sendo patrão, vivendo do trabalho alheio.
“Que patrão! Só porque você comprou uma
escolinha lá no fim do mundo? Vai ter mês de você ter que tirar do salário para
pagar as dívidas da escola, cara! Essa sua posição não é escrupulosa, é burra,
companheiro.”
“Não, pessoal. Vocês sabem
qual é a minha formação. Sou marxista, vocês sabem.
Os conceitos de lucro,
mais-valia, capital de giro, investimentos... São muito fortes dentro de mim Eu
não conseguiria conviver com eles, fazer discurso em cima deles e ter um
comportamento diferente no dia a dia. Não dá.”
“Pára, companheiro! No partido
tem até o núcleo de empresários... Quem disse que o socialismo está proibido
aos empresários?”
“Não sou do partido de vocês,
vocês confundem socialismo com social-democracia, com neoliberalismo, estou
fora, questão de coerência.”
“Incoerência é você deixar de
ser um quadro importante para ir ganhar dinheiro.”
Discussão
acalorada, inconformismo dos companheiros, segurança da decisão: “a direita e os pelegos têm sérias
restrições a mim: radical, intransigente, manobrador... Mas todas de
comportamento político, de táticas e estratégias políticas. Nenhuma de fundo
ideológico.
Sabem o que penso e me
respeitam pela minha coerência.
Imagina se no meio de um
discurso um deles gritar ‘esse f-d-p é patrão!’ Se as críticas e as restrições
deixarem de ser de fundo político-ideológico e passarem para o campo moral?
Tenho uma porrada de adversários, acho que
até inimigos, mas todos discordam e criticam os métodos, não os propósitos, a
finalidade.
Na hora em que criticarem os
propósitos, acharem que não estou sendo sincero, que estou manipulando em
proveito próprio, transformei-me num político comum.
Se eu quisesse isso já seria
um carreirista, vocês sabem. Estou fora, pessoal!”
Convencem-me
a continuarmos a discussão no dia seguinte, com a presença de mais
companheiros.
Nunca
mais voltei ao sindicato.
A
Minha mulher, em casa, exultante.
Viagens
nunca mais. Noites insones, esperando? Fim.
Depressão.
Dormi Karl Marx, acordei Adam Smith.
Vai
demorar ainda um bom tempo para que as coisas se ajeitem na minha cabeça.
Homem
normal, agora, de conversar com filhos, ir a supermercados, sugerir o cardápio
do almoço, conferir boletins escolares, preocupar-se com as companhias desse, o
namorado daquela... Como qualquer chefe de família.
In Não Haverá Mais Natais, romance
autobiográfico
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