quinta-feira, 23 de maio de 2013

DECISÃO DIFÍCIL

Estou no sindicato. Cheguei determinado, disposto a justificar tudo e sumir. Em carta-renúncia atestar a minha fraqueza, eu também me rendi, fui cooptado, me entreguei, sou algoz agora.
                  Peço reunião da direção para depois do almoço, amanhã não, é urgente.
                  Quem estiver fora do Estado que saiba depois, é grave o que tenho a dizer. Minha vida será outra amanhã.
                  De hoje para trás só saudade e sentimento de dever cumprido naqueles momentos de um ciclo que se fecha hoje, e doces, deliciosas lembranças, para sempre.
                  Virei patrão, confesso-lhes. Vou renunciar agora. Não faz sentido eu dirigir um sindicato de trabalhadores sendo patrão, vivendo do trabalho alheio.
                  “Que patrão! Só porque você comprou uma escolinha lá no fim do mundo? Vai ter mês de você ter que tirar do salário para pagar as dívidas da escola, cara! Essa sua posição não é escrupulosa, é burra, companheiro.”
                  “Não, pessoal. Vocês sabem qual é a minha formação. Sou marxista, vocês sabem.
                  Os conceitos de lucro, mais-valia, capital de giro, investimentos... São muito fortes dentro de mim Eu não conseguiria conviver com eles, fazer discurso em cima deles e ter um comportamento diferente no dia a dia. Não dá.”
                  “Pára, companheiro! No partido tem até o núcleo de empresários... Quem disse que o socialismo está proibido aos empresários?”
                  “Não sou do partido de vocês, vocês confundem socialismo com social-democracia, com neoliberalismo, estou fora, questão de coerência.”
                  “Incoerência é você deixar de ser um quadro importante para ir ganhar dinheiro.”
                  Discussão acalorada, inconformismo dos companheiros, segurança da decisão: “a direita e os pelegos têm sérias restrições a mim: radical, intransigente, manobrador... Mas todas de comportamento político, de táticas e estratégias políticas. Nenhuma de fundo ideológico.
                  Sabem o que penso e me respeitam pela minha coerência.
                  Imagina se no meio de um discurso um deles gritar ‘esse f-d-p é patrão!’ Se as críticas e as restrições deixarem de ser de fundo político-ideológico e passarem para o campo moral?
                  Tenho uma porrada de adversários, acho que até inimigos, mas todos discordam e criticam os métodos, não os propósitos, a finalidade.
                  Na hora em que criticarem os propósitos, acharem que não estou sendo sincero, que estou manipulando em proveito próprio, transformei-me num político comum.
                  Se eu quisesse isso já seria um carreirista, vocês sabem. Estou fora, pessoal!”
                  Convencem-me a continuarmos a discussão no dia seguinte, com a presença de mais companheiros.
                  Nunca mais voltei ao sindicato.

                  A Minha mulher, em casa, exultante.
                  Viagens nunca mais. Noites insones, esperando? Fim.
                  Depressão. Dormi Karl Marx, acordei Adam Smith.
                  Vai demorar ainda um bom tempo para que as coisas se ajeitem na minha cabeça.
                  Homem normal, agora, de conversar com filhos, ir a supermercados, sugerir o cardápio do almoço, conferir boletins escolares, preocupar-se com as companhias desse, o namorado daquela... Como qualquer chefe de família.


In Não Haverá Mais Natais, romance autobiográfico

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