sábado, 25 de maio de 2013

DE QUATRO PARA QUATRO LETRAS

Esporte Clube Vega, arena onde impomos a nossa superioridade e subjugamos todos, não importa a modalidade esportiva - ó vaidade, mãe de todas as infantis pretensões!
                             A quadra, lisa como piso de sabão, exige passar o rodo e secar as poças a cada chuva ou sereno.
                             Mas nada impedirá mais uma vitória hoje, injustiça não convocarem os nossos atletas para as seleções nacionais.
                             Ao lado da quadra, um pouco mais para trás, o salão, pequeno e quente, quatro portas e nenhum janelão para entrada de ar fresco e saída rápida dos ocupantes, sempre que o álcool e a passionalidade dos traídos, os palpites contrários sobre o último jogo transformam a domingueira, blusas coloridas e calças boca de sino, cinturões de fivelas enormes, em batalha campal onde o campo é o chão encerado, pronto para recepcionar a mulata, cadenciados movimentos de pluma ao vento, cruza, salta, gira em voluteios incansáveis, fila de espera, escada para o sucesso dos cavalheiros porque com ela dançar sem dama, acompanha, repete, segue, desavisada que o cálcio impõe rigidez aos ossos contorcidos em poses só ao alcance dela acima da gravidade e da centrifugação, a mulata, morango e creme, sensualidade de chantili nos lábios úmidos que me chamará baby e abandonará o salão, dançará só pra mim, depois pros filhos.
                             As meninas da Rua Cinco, dadeiras, línguas cruéis, duas gerações depois as descendentes ganhando novo epíteto, marias chuteiras, sempre prontas aos jogadores.
                             Fantasia umas, oportunismo outras, golpe ainda outras.
                             Os meninos de carros novos, nome no rádio e cara nas figurinhas, carimbadas ruins de sair, todo mundo trocando, colando, jogando bafo-bafo antes da entrada, na hora do recreio e depois da saída, sob marquises e nos portões, nos bancos da praça e na porta da escola.
                             Os carinhas já comiam todas, e descobriram o Esporte Clube Vega, momentâneo Maracanã para nós, arapuca de caçar garotas, para eles.
                             Domingo de manhã vem um grupo bom, vão trazer um timaço, dessa vez a gente se desgraça.
                             Jogo duro, dois a zero eles logo no primeiro tempo, cerveja e pinga substituindo meio time, escalando os acompanhantes, irmãos, amigos, cunhadinhos, irmãos das meninas, que de outra maneira não jogariam na nossa quadra, os mauricinhos, como serão conhecidos esses tipos um dia.
                             Gol nosso. Volta um craque, esse da seleção brasileira, campeão no Chile, meio porrado. Ri a toa.
                             Gol deles. Três a um.
                             Gol nosso, outro gol nosso.
                             Acabou o jogo, três a três.
                             Não é todo dia que se empata com um timão desses. Verdade seja dita: barra forçada.
                             O juiz foi nosso. Um gol, cá pra nós, de dentro da área (a mudança de regras só virá daqui a alguns anos), e teve um pênalte clamoroso, como dizem os locutores, a favor deles e que o juiz não deu.
                             O que chamou mais a atenção não foi o jogo, mas a refeição do zagueiro da seleção, uma parede no Chile: uma bacia lotada de angu à baiana, meia garrafa de pinga e muitas cervejas.
                             No meio da conversa, elogios a rodo, um dos irmãos (eram dois, um do Fluminense e outro do América), vaticinou: “o melhor da família está começando, no infantil do Flamengo. Qualquer dia a gente traz aqui”.
          Revanche. Não engoliram o três a três.
                             Estou no Vega de novo, lotado hoje, já fez fama que jogador famoso vem aqui. Tem gente que nunca veio, acho que nem sabia da existência do clube.
                             Resolveram cobrar entrada. Pra jogo nunca cobraram, só pra baile, mas hoje... Craque graúdo de cara na figurinha, em revista e jornal, nome no rádio, cada carrão que... Caramba, igual ao do Roberto Carlos, aquele igual ao do Erasmo, do Simonal...
                             “Esse é o meu irmão, aquele que falei, o melhor da família...”
                             Qué isso! Esse moleque branquelo e magro, tímido como jabuti prestes à casca, cabeludinho, qué isso, só pode ser sacanagem do A., me admiro ele, do meu time, o flusão, de irmão cracaço no América, traz esse pixote e diz melhor que eu e meu irmão... Só pode ser sacanagem!
                             O nosso goleiro não veio, está trabalhando hoje, o reserva porrado que nem gambá, peru em pré-natal, véspera, por que não chamaram os goleiros do segundo quadro?
                             Quem ia adivinhar, “não tem nenhum do juvenil? Do infanto?”
                             “Estão aí os dois.”
                             “Então dá as camisas pra eles. Se eles vão botar aquele moleque, por que a gente não pode botar um também?”
                             Eis-me luvas, joelheiras, tênis e tremor entre craques.
                             Hoje me consagro ou me mudo. O bairro idolatra ou lincha aquele goleirinho de bosta, quem teve a infeliz idéia de escalar? Melhor gol livre.          
                             Ou autógrafos, escalação em todas as peladas e namoradas jorrando que nem água colorida no chafariz do Passeio Público. É hoje ou nunca.
                             Menos de cinco minutos e dois a zero os caras, um do cabeludinho.
                             Mais um do moleque e logo ninguém, dentro ou fora da quadra, presta a atenção no jogo, tanto faz qualquer placar ou quem ganhe, o brilho do guri apagou tudo, ofuscou a todos.
                             Nele a bola não é objeto. É órgão a mais, parte do corpo, pétala na flor, parece ioiô no dedo, só que a gente não vê o cordão, como se o corpo fosse de metal e a bola tivesse um ímã.
                             Não importa como venha a bola. Mata fácil, gruda no peito, na coxa, põe no lado interno do pé, dribla pela direita, esquerda, por cima, em posições improváveis que só em bailarinos de talento, um poema de movimentos, o time deles jogando fácil, metendo um atrás do outro porque todo mundo desmarcado, abandonado, nosso time todo cercando o moleque arisco, vaselinado escorrendo, escorregando que nem muçum depois de temporal, nem falta pára, intimida ou desanima.
                             Fim do primeiro tempo, cinco a zero, graças a Deus. Podia estar oito ou dez, talvez quinze. Eles jogam com dois times ao mesmo tempo, o moleque sozinho um deles.
                             Vão me substituir. Agradecido pela graça Senhor Deus das vítimas dos craques e dos pretensos atletas desamparados, o meu reserva sumiu, está no alambrado, dizendo “vou entrar não, não quero, ele tomou cinco e evitou cinco, sei não se eu evitava, deixa ele que tá bão”, o covarde, desgraçado, fazendo em fascículos o meu desespero, a minha rotina de devolver a bola para o meio da quadra, para nova saída, parece que esse moleque tem um prazer mórbido em me humilhar.
                             Percebeu que sou baixinho e chutou de letra no ângulo. Ninguém notou o meu esforço, aplausos só pra ele, mas sem críticas pra mim, sem admoestações, também... Fosse outro goleiro qualquer seria igual.
                             Diante dele qualquer gol está livre, carece de goleiro, reduzido a gandula privilegiado pegando a bola no fundo da rede, de minuto em minuto... Pra devolver pra ele.
                             Apito final. Fim do meu martírio e frustração para a platéia.
                             Dependesse dela mais dois tempos, partida de vinte, trinta... Deixa só o moleque na quadra, ele dá conta, dá nó no outro time inteiro. Nove a dois no placar, quatro gols dele.
                             Faz mal não. Um dia, eu, que caí de quatro pra ele, também me juntarei ao resto do mundo inteiro de quatro para quatro letras: Zico.


In “Não Haverá Mais Natais, romance autobiográfico.

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