quinta-feira, 23 de maio de 2013

FOGO NO MUNDO

Amanhã farei seis anos e ganharei um dos melhores presentes da minha vida: a aversão radical às guerras e a todas as manifestações de violência. Nada vale uma lágrima, uma única gota de sangue humano.
                  Só que o presente virá embalado em lágrimas e desespero.
                  Vou me deitar às oito, cansado de tanto brincar, na expectativa de refrigerantes e bolo, presença cara, nos dois sentidos, e ocasional, só no natal e nos aniversários, doido para dormir logo, para o amanhã chegar rápido, e sou despertado num salto da cama, não é figura de imagem ou firula literária.
                  Caio em pé, fora da cama, às quatro horas da manhã, se tanto, no interior de uma enorme explosão.
                  Seguem-se outras, outras, mais outras, de variadas intensidades sonoras e variada luminosidade, o céu vermelho como se iluminado por imensa fogueira, rajadas de tiros às vezes, explosões isoladas ou a intervalos inconstantes fazendo eco, retumbando longe em alguns momentos, parecendo detonar-se no quintal, na sala, ao meu lado em momentos outros, minha mãe, olhos arregalados, abraçada à minha irmã quase neném, segurando a grade do berço com o meu irmão, neném, papai transfigurado, esse é o meu pai mesmo, não estou enganado? Andando rápido de um lado para o outro, correndo, gritando ordens, acalmando, “são obuses, não nos atingirão, estamos fora do raio de ação. Deitem-se porque agora são os de cento e vinte e cinco milímetros”, mamãe implorando, “vamos embora, vamos tirar as crianças daqui, vamos morrer todos e você parece que está gostando”, a multidão caminhando apressada, mulheres só de camisolas, homens de pijamas ou só de cuecas, arrastando crianças, cachorros, gatos, gente chorando, e os estampidos, vidraças quebrando-se pela vibração e o deslocamento do ar, paredes rachando, “vamos embora que vou sozinha com as crianças, vou te deixar só!”
                  Não, este não é o meu pai, mais parece o cão danado que mataram a pauladas um dia na esquina. Só recobrará a consciência, pra virar o meu pai de novo, quando os militares chegarem para organizar a retirada.
                  Estão falando que há bombas imensas, que, se detonadas, nada restará num raio enorme, vai arrasar até Vicente de Carvalho, Irajá, os caminhões cheios de gente chorando, olhando para trás, com medo do fogo perseguir.
                  Tanta gente assim sobre caminhões só verei novamente daqui a quatro anos, bandeiras brasileiras e algazarra, bebedeiras: Brasil campeão na Suécia, mais figurinhas com craques para eu colecionar, mas agora não.
                  Agora é o caos nas ruas e em mim, “segurem o meu pai, pelo amor de Deus!”
                  Ele agora quer caminhar na direção do fogo, do foco das explosões.
                  Acredita que poderá combatê-las, mamãe nos vestindo rapidamente, copioso choro de mãe, o mundo vai acabar e matar os meus filhos, a voz grossa no portão, “dona Y. vamos embora, trás as crianças, deixa o seu P. aí. Daqui a pouco não haverá mais tempo.”
                  Deixar o meu pai? Não, pelo amor de Deus!
                  E os lotações de porta única, ainda não há ônibus, carros particulares de motoristas com coragem e generosidade, viaturas militares, tudo lotado.
                  Estamos espremidos no lotação, papai junto, graças a Deus, daqui a pouco a segurança da casa do vovô e a agitação do papai querendo voltar.
                  Só lembrarei que hoje é meu aniversário daqui a três dias, depois de jejum, tristeza e silêncio, todo mundo preocupado comigo.
                  Vovô chega em estado de puro amor e carinho infinito: “vamos conversar?”
                  Coloca-me sentado na mesa, à sua direita na cabeceira: “você já está ficando um homenzinho, precisa saber de algumas bobagens que os adultos fazem, concorda comigo?”
                  E a minha cabecinha assentindo, olhar perdido, acuado como se vítima de surra imensa, a maior imposta a alguém em todos os tempos.
                  “Você sabe onde fica Deodoro?”
                  Como não saberia? É lá onde termina a Avenida Brasil, onde tem um montão de campos de futebol e papai me leva nos domingos pela manhã, Vila Militar, pra ver os jogos, “sei sim.”
                  “Pois é. Lá fica o paiol de munições do exército.
                  Munição é como o pessoal do exército chama as bombas, e paiol é onde as bombas ficam guardadas, está entendendo? Se não está o vovô explica melhor.”
                  “Estou, estou...”
                  “Acontece que o paiol pegou fogo e aí a munição que estava guardada lá explodiu.”
                  Aquela barulhada, aquele fogaréu que você viu foi tudo bomba pegando fogo. Ninguém estava jogando em cima de vocês não... Ninguém queria machucar ninguém...”
                  “Mas o papai... Papai ficou danado igual ao cachorro que ficou danado... Deram paulada até matar...”
                  “Seu pai não ficou danado coisa nenhuma. Só quem fica danado é cachorro, seu pai não é cachorro, não é mesmo?
                  Você sabe o que é guerra?”
                  Negativa.
                  “Às vezes os homens se desentendem e brigam. Quando são poucos eles brigam de socos e pontapés, se agarram. Já viu alguma vez?”
                  “Já!”
                  “Pois é, mas quando são muitos eles usam armas, munição, se machucam muito. O nome disso é guerra. Entendeu o que é guerra? Um monte de homens jogando bombas em cima de outro montão de homens, igual você viu na explosão de Deodoro.”
                  Não há televisão, coisa de europeus e norte-americanos. Não há a menor informação, a menor suspeita de que os homens, os adultos possam brincar de matar uns aos outros.
                  Isso só daqui a muito tempo, quando as crianças de dois, três anos aprenderão a atacar e matar, subjugar, antes de aprenderem a socorrer, proteger e perdoar. 
                  “Seu pai foi numa guerra assim, a maior de todas que teve até hoje. Morreu muita gente, muita gente se machucou... E quando ouviu aquelas bombas, viu aqueles clarões, todo mundo com medo, o seu pai pensou que a guerra tinha começado de novo, e ficou nervoso, muito nervoso, e ficou diferente, mas isso não vai acontecer mais, não vai pegar fogo de novo.
                  Seu pai foi trabalhar. Logo mais está aqui brincando com você, tomando cerveja de novo, jogando buraco... Fica triste assim não, deixa de ser bobo. Domingo vou levar você na praia. Vamos?”
                  De tarde brinquei, coloquei os meus carrinhos em guerra, no carpete, imaginando bombas e tiros, impondo aos meus soldados imaginários a dor que senti.
                  Dentre as muitas virgindades que perderei ao longo da vida, hoje foi-se a primeira: guerra é uma coisa que quando não se morre fica-se danado, para sempre.


In “Não Haverá mais Natais”, romance autobiográfico.

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