Amanhã farei seis anos e ganharei um dos melhores
presentes da minha vida: a aversão radical às guerras e a todas as
manifestações de violência. Nada vale uma lágrima, uma única gota de sangue
humano.
Só
que o presente virá embalado em lágrimas e desespero.
Vou
me deitar às oito, cansado de tanto brincar, na expectativa de refrigerantes e
bolo, presença cara, nos dois sentidos, e ocasional, só no natal e nos aniversários,
doido para dormir logo, para o amanhã chegar rápido, e sou despertado num salto
da cama, não é figura de imagem ou firula literária.
Caio
em pé, fora da cama, às quatro horas da manhã, se tanto, no interior de uma
enorme explosão.
Seguem-se
outras, outras, mais outras, de variadas intensidades sonoras e variada
luminosidade, o céu vermelho como se iluminado por imensa fogueira, rajadas de
tiros às vezes, explosões isoladas ou a intervalos inconstantes fazendo eco,
retumbando longe em alguns momentos, parecendo detonar-se no quintal, na sala,
ao meu lado em momentos outros, minha mãe, olhos arregalados, abraçada à minha
irmã quase neném, segurando a grade do berço com o meu irmão, neném, papai
transfigurado, esse é o meu pai mesmo, não estou enganado? Andando rápido de um
lado para o outro, correndo, gritando ordens, acalmando, “são obuses, não nos atingirão, estamos fora do raio de ação. Deitem-se
porque agora são os de cento e vinte e cinco milímetros”, mamãe implorando,
“vamos embora, vamos tirar as crianças
daqui, vamos morrer todos e você parece que está gostando”, a multidão
caminhando apressada, mulheres só de camisolas, homens de pijamas ou só de
cuecas, arrastando crianças, cachorros, gatos, gente chorando, e os estampidos,
vidraças quebrando-se pela vibração e o deslocamento do ar, paredes rachando, “vamos embora que vou sozinha com as
crianças, vou te deixar só!”
Não,
este não é o meu pai, mais parece o cão danado que mataram a pauladas um dia na
esquina. Só recobrará a consciência, pra virar o meu pai de novo, quando os
militares chegarem para organizar a retirada.
Estão
falando que há bombas imensas, que, se detonadas, nada restará num raio enorme,
vai arrasar até Vicente de Carvalho, Irajá, os caminhões cheios de gente
chorando, olhando para trás, com medo do fogo perseguir.
Tanta
gente assim sobre caminhões só verei novamente daqui a quatro anos, bandeiras
brasileiras e algazarra, bebedeiras: Brasil campeão na Suécia, mais figurinhas
com craques para eu colecionar, mas agora não.
Agora
é o caos nas ruas e em mim, “segurem o
meu pai, pelo amor de Deus!”
Ele agora quer caminhar na
direção do fogo, do foco das explosões.
Acredita que poderá
combatê-las, mamãe nos vestindo rapidamente, copioso choro de mãe, o mundo vai
acabar e matar os meus filhos, a voz grossa no portão, “dona Y. vamos embora, trás as crianças, deixa o seu P. aí. Daqui a
pouco não haverá mais tempo.”
Deixar
o meu pai? Não, pelo amor de Deus!
E
os lotações de porta única, ainda não há ônibus, carros particulares de
motoristas com coragem e generosidade, viaturas militares, tudo lotado.
Estamos
espremidos no lotação, papai junto, graças a Deus, daqui a pouco a segurança da
casa do vovô e a agitação do papai querendo voltar.
Só
lembrarei que hoje é meu aniversário daqui a três dias, depois de jejum,
tristeza e silêncio, todo mundo preocupado comigo.
Vovô
chega em estado de puro amor e carinho infinito: “vamos conversar?”
Coloca-me
sentado na mesa, à sua direita na cabeceira: “você já está ficando um homenzinho, precisa saber de algumas bobagens
que os adultos fazem, concorda comigo?”
E a minha cabecinha assentindo,
olhar perdido, acuado como se vítima de surra imensa, a maior imposta a alguém
em todos os tempos.
“Você sabe onde fica Deodoro?”
Como
não saberia? É lá onde termina a Avenida Brasil, onde tem um montão de campos
de futebol e papai me leva nos domingos pela manhã, Vila Militar, pra ver os
jogos, “sei sim.”
“Pois é. Lá fica o paiol de
munições do exército.
Munição é como o pessoal do
exército chama as bombas, e paiol é onde as bombas ficam guardadas, está
entendendo? Se não está o vovô explica melhor.”
“Estou, estou...”
“Acontece que o paiol pegou
fogo e aí a munição que estava guardada lá explodiu.”
Aquela barulhada, aquele
fogaréu que você viu foi tudo bomba pegando fogo. Ninguém estava jogando em
cima de vocês não... Ninguém queria machucar ninguém...”
“Mas o papai... Papai ficou
danado igual ao cachorro que ficou danado... Deram paulada até matar...”
“Seu pai não ficou danado
coisa nenhuma. Só quem fica danado é cachorro, seu pai não é cachorro, não é
mesmo?
Você sabe o que é guerra?”
Negativa.
“Às vezes os homens se desentendem e brigam.
Quando são poucos eles brigam de socos e pontapés, se agarram. Já viu alguma
vez?”
“Já!”
“Pois é, mas quando são muitos
eles usam armas, munição, se machucam muito. O nome disso é guerra. Entendeu o
que é guerra? Um monte de homens jogando bombas em cima de outro montão de
homens, igual você viu na explosão de Deodoro.”
Não
há televisão, coisa de europeus e norte-americanos. Não há a menor informação,
a menor suspeita de que os homens, os adultos possam brincar de matar uns aos
outros.
Isso
só daqui a muito tempo, quando as crianças de dois, três anos aprenderão a
atacar e matar, subjugar, antes de aprenderem a socorrer, proteger e
perdoar.
“Seu pai foi numa guerra assim, a maior de
todas que teve até hoje. Morreu muita gente, muita gente se machucou... E
quando ouviu aquelas bombas, viu aqueles clarões, todo mundo com medo, o seu
pai pensou que a guerra tinha começado de novo, e ficou nervoso, muito nervoso,
e ficou diferente, mas isso não vai acontecer mais, não vai pegar fogo de novo.
Seu pai foi trabalhar. Logo
mais está aqui brincando com você, tomando cerveja de novo, jogando buraco... Fica
triste assim não, deixa de ser bobo. Domingo vou levar você na praia. Vamos?”
De
tarde brinquei, coloquei os meus carrinhos em guerra, no carpete, imaginando
bombas e tiros, impondo aos meus soldados imaginários a dor que senti.
Dentre
as muitas virgindades que perderei ao longo da vida, hoje foi-se a primeira:
guerra é uma coisa que quando não se morre fica-se danado, para sempre.
In “Não Haverá mais Natais”, romance
autobiográfico.
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