quinta-feira, 23 de maio de 2013

RECUERDOS DE LA DICTADURA

“Temos uma missão para logo mais, determinação do Comitê Central, incluíram você, fazer pichação no Cemitério do Caju, ALENCAR FURTADO VOCÊ HOJE ESTÁ SENDO LEMBRADO.”
                  Hoje véspera de finados, amanhã muita gente no cemitério, depois de amanhã eleições, mídia, querendo ou não vai aparecer.
                  Alencar, político paranaense, feroz opositor da ditadura, morreu dias atrás... Os gorilas vão se enfurecer.
                  Chego um pouco mais cedo e fico encostado no poste, mãos nos bolsos, cigarro no canto da boca.
                  Venta e o meu cabelo insiste em visitar os olhos, o companheiro na calçada em frente, o conheço de vista, me olha, mas ainda não passou a senha.
                  Há um outro mais adiante, não o conheço, mas é bom não ficar olhando. Pode não ser do partido, mas um agente na espreita só esperando o mole pra gatunhar.
                  Melhor esperar a senha, a contra-senha: “amanhã é finados, por isso esse movimento todo no cemitério.”
                  O mais afastado, nunca o vi, passa por mim, fala baixo, “está um movimento danado”, respondo “amanhã é finados, por isso esse movimento todo no cemitério.”
                  Ele continua andando, atravessa a rua, disfarça, perambula e se aproxima do companheiro. Fala alguma coisa e fica atento à resposta.
                  Chega a kombi, mais dois, trazendo tubos de collor-jet preto e vermelho, “rápido que está cheio de meganhas na esquina da Avenida Brasil. Quanto mais perto do portão principal melhor, as câmeras de televisão vão enquadrar, não vai ter jeito de evitar.”
                  Duas caixas de papelão lacradas, vinte e quatro tubos, caramba, é pra pichar ou pintar o muro todo?
                  Rápido, sem dar mole não, com preocupação dupla: letras grandes e bem legíveis, e concentração, cuidado pra não pintar os dedos, sujar as unhas, as pontas dos dedos.
                  Isso é bandeira, cana na hora com prova em cima.
                  O segredo é manter o dedo na ponta do pino e o tubo exatamente na vertical. Cuidado com o borrifo na roupa!
                  Dois picham, dois vigiam, o quinto toma conta da kombi.
                  Eu pinto. Letra de professor, bem desenhada, e que orgulho quando passo e me reconheço nas paredes, tapumes e muros, uma vontade louca de gritar “fui eu que sacaneei a ditadura”, e a freada brusca, uma joaninha, fusca da polícia militar: “parado onde estão”.
                  Descem dois policiais. Nos colocam, os quatro, de cara para o muro, mãos espalmadas no muro, um com o trinta e oito na mão e o outro no rádio da viatura, pedindo reforços “que são muitos, bem que a gente sabia, esses subversivos, comunistas, iam aparecer, chega logo que são muitos.”
                  A segunda viatura, terceira... Correndo como loucos, freando inesperadamente sem necessidade, as sirenes abertas, luzes piscando, um monte de curiosos começando a juntar, “devem ter pego uma quadrilha de assaltantes se preparando para agir amanhã, os pobres coitados que virão visitar os mortos. Não respeitam nada, ainda bem que a polícia pegou.”
                  Levam-nos, os quatro, um em cada viatura, até a delegacia.
                  Surpresa! O que ficou na kombi já estava lá, nos esperando.
                  Dirá depois: “pegaram quando eu ia saindo, agente da ditadura infiltrado, disfarçado de funcionário do cemitério ou vendedor de cachorro-quente. Sacaram a gente o tempo todo, o polícia deu e ainda chamou a gente de otários, o filho da puta.”
                  Interrogatório. Vândalos não são. A pichação seria outra, aqueles rabiscos babacas, não tinha nome de político, e de esquerda.
                  “Vão abrindo o jogo: vocês são do partido comunista!”
                  “Não senhor, a gente só estava de sacanagem, se divertindo...”
                  “Vou falar a verdade, doutor: amanhã é finados, depois de amanhã tem eleições, a gente recebeu uma grana pra fazer propaganda, foram os candidatos do partido do falecido”.
                  E a dúvida, vandalismo ou crime eleitoral, na voz áspera, profunda, manzorra que um soco mata: “está querendo tirar a paciência de quem? Vai logo falando a verdade, aquela merda que vocês escreveram era alguma senha, o que é que vocês pretendiam fazer? Não vão abrir?”
                  Somos transferidos para o DOPS, Praça Mauá, e recebidos como líderes de um perigoso movimento armado pronto para tomar o poder, com ameaça de tortura, porrada, fuzilamento sumário...
                  Um dia acharei engraçado mas agora é de cagar nas calças, aqui, diante da elite do extermínio e da tortura, selecionados a dedo os que não têm alma nem coração, só ódio e dedos íntimos de gatilhos.
                  Olham pra nós como pit-bulls diante de gatos vira-latas, mãe do céu, que eu morra logo, não tenha que padecer na pimentinha e no pau-de-arara*.
                  Nos apertam e não arrancam nada, nada concluindo.
                  Como pronunciar a sigla MR-8 e sair impune, com vida? Nem pensar! Melhor perder dentes e ovos.
                  E resolvem passar a batata quente adiante. Mandam que estendamos as mãos, juntas, como em preces, e vão nos amarrando os punhos com fios elétricos, desses de tomadas...
                  Vão nos levar para uma sessão de choques.
                  Melhor pau-de-arara**, palmatória no saco, afogamento no balde d’água, asfixia no saco plástico... Tudo menos choque. Só a possibilidade já é tortura.
                  Saem e, a sós, certamente estão nos gravando, murmuro para o companheiro ao lado, “vamos para os choques”.
                  Ouço “choque é o cacete, usaram os fios como cordas, acho que vão nos pendurar”.
                  Entram cinco meganhas: “vambora!”
                  Cada um segura a ponta de um fio e começam a nos puxar para fora da cela, do corredor, do prédio... Ué, pra rua?
                  Na calçada mais dois esperam, acintosamente armados. Darão cobertura aos que vão nos puxar, como jumentos, cavalos puxados pela rua, todo mundo olhando.
                  Sorte ser noite senão platéia imensa, aplausos de uns, censura de outros, tratar gente como bicho, diante da exótica fauna noturna do cais do porto: marinheiros, estivadores, putas, viados, cafetões, narcotraficantes, narcoviciados, mendigos, menores abandonados, camelôs de última hora, inferninhos de letreiros luminosos, boates de última categoria, puteiros, pensões de breves encontros, quartos para solteiros, música infernal de gosto a lastimar até o final dos tempos...
                  E aqueles cinco homens puxados como jumentos a caminho do eito, o primeiro grito: “pega ladrão!” Mais outro: “pega!”
                  Um viadinho ridículo na porta da boate: “enfia o cassetete no cu deles”, os policiais achando engraçadíssimo.
                  Se resolvem linchar, deixam.
                  Tudo só porque estávamos fazendo uma pichaçãozinha de nada, risco zero para a ditadura e crime eleitoral pra gente.
                  Não dá cana, só multa. Mas nada faz sentido agora, é uma suruba ideológica só, a gente se expondo, sacrificando a juventude pra defender esse povo gritando pega ladrão, mandando os agentes da ditadura enfiar o cassetete no nosso cu...
                  Se me livrar dessa quero mais saber de política?
                  Querem macumba e maracanã, carnaval e igreja. Eu vou é tirar o time, tratar de mim e da minha família, pra onde estão nos levando?
                  Alguém ousa perguntar a um dos dois que dão cobertura, “estamos indo pra onde?”
                  “Polícia Federal. Vocês vão ver o que é bom. Vão até desejar trocar os carinhos que vão ganhar pelo que o viadinho mandou a gente fazer.”
                  Entramos.
                  Já nos esperam e nada perguntam, encaminhando-nos direto para a cela, os cinco numa cela só, incomunicáveis. Como os nossos parentes e os companheiros de partido vão saber que estamos presos?
                  Chocadeira. Ficaremos aqui até a transferência para um quartel do exército.
                  Talvez nos coloquem num helicóptero da marinha e nos joguem no mar. Já está habitual, não é mais segredo.
                  Saudade de casa. Na hora em que saí a mulher alertou que o leite em pó da caçula estava acabando. Deve ter se virado com algum parente.
                  O clima tenso vai se esvaindo, e começamos conversa reservada, falando baixo, descontraindo-nos aos poucos, conversa normal, trivialidades, coisas do dia a dia porque de política alto risco.
                  Embora não tivesse lugar para por microfones, só paredes e grade, chão frio pra cacete, nunca se sabe.
                  Dormir, uma quase impossibilidade, em turnos, um sempre acordado, para avisar se viesse covardia, até o dia amanhecer, mais um dia inteiro nessa situação, um almoço que cruz credo, arroz e caldo ralo de carne com batata, meio sopa meio ensopado, e se estiver envenenado?
                  Fome maior, um mais atrevido experimenta, não cai, todos comem que de novo só amanhã.
                  Direitos humanos só para humanos. Somos cães comunistas.
                  Outra noite, amanhecer, mais um dia, a mesma sopa-ensopado já de tarde, e um carcereiro mais indiscreto, o primeiro a falar conosco: são “cagados, o Miro Teixeira está aí negociando, habeas corpus. O governador ficou sabendo mandou o garoto dele, vocês vão de rua”.
                  Fim da incomunicabilidade, ligar pra casa, “que vagabunda nada, filha, eu estava preso, chegar aí te conto, já estou indo.”
                  Recepção a extraterreno dando-se à mostra, notícia ruim se espalha rápido, a vizinhança toda me esperando, uma vila de trinta e cinco casas, fofoqueiros às pencas, em cardumes, bandos, matilhas, uma fofocada do cão, “eu não disse, ele tem uma língua enorme, falando mal do governo, fosse eu cuidava da minha vida, três filhos, e deixava esse negócio de política pra lá, ele é maluco”, só um ou outro dizendo coragem, preocupação com o próximo, consciência política, compromisso social.


(In “Não Haverá Mais Natais”, romance autobiográfico)

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