“Temos uma
missão para logo mais, determinação do Comitê Central, incluíram você, fazer
pichação no Cemitério do Caju, ALENCAR FURTADO VOCÊ HOJE ESTÁ SENDO LEMBRADO.”
Hoje
véspera de finados, amanhã muita gente no cemitério, depois de amanhã eleições,
mídia, querendo ou não vai aparecer.
Alencar,
político paranaense, feroz opositor da ditadura, morreu dias atrás... Os
gorilas vão se enfurecer.
Chego
um pouco mais cedo e fico encostado no poste, mãos nos bolsos, cigarro no canto
da boca.
Venta
e o meu cabelo insiste em visitar os olhos, o companheiro na calçada em frente,
o conheço de vista, me olha, mas ainda não passou a senha.
Há
um outro mais adiante, não o conheço, mas é bom não ficar olhando. Pode não ser
do partido, mas um agente na espreita só esperando o mole pra gatunhar.
Melhor
esperar a senha, a contra-senha: “amanhã
é finados, por isso esse movimento todo no cemitério.”
O
mais afastado, nunca o vi, passa por mim, fala baixo, “está um movimento danado”, respondo “amanhã é finados, por isso esse movimento todo no cemitério.”
Ele
continua andando, atravessa a rua, disfarça, perambula e se aproxima do
companheiro. Fala alguma coisa e fica atento à resposta.
Chega
a kombi, mais dois, trazendo tubos de collor-jet preto e vermelho, “rápido que está cheio de meganhas na
esquina da Avenida Brasil. Quanto mais perto do portão principal melhor, as
câmeras de televisão vão enquadrar, não vai ter jeito de evitar.”
Duas
caixas de papelão lacradas, vinte e quatro tubos, caramba, é pra pichar ou
pintar o muro todo?
Rápido,
sem dar mole não, com preocupação dupla: letras grandes e bem legíveis, e
concentração, cuidado pra não pintar os dedos, sujar as unhas, as pontas dos
dedos.
Isso
é bandeira, cana na hora com prova em cima.
O
segredo é manter o dedo na ponta do pino e o tubo exatamente na vertical.
Cuidado com o borrifo na roupa!
Dois
picham, dois vigiam, o quinto toma conta da kombi.
Eu
pinto. Letra de professor, bem desenhada, e que orgulho quando passo e me
reconheço nas paredes, tapumes e muros, uma vontade louca de gritar “fui eu que sacaneei a ditadura”, e a
freada brusca, uma joaninha, fusca da polícia militar: “parado onde estão”.
Descem
dois policiais. Nos colocam, os quatro, de cara para o muro, mãos espalmadas no
muro, um com o trinta e oito na mão e o outro no rádio da viatura, pedindo
reforços “que são muitos, bem que a gente
sabia, esses subversivos, comunistas, iam aparecer, chega logo que são muitos.”
A
segunda viatura, terceira... Correndo como loucos, freando inesperadamente sem
necessidade, as sirenes abertas, luzes piscando, um monte de curiosos começando
a juntar, “devem ter pego uma quadrilha
de assaltantes se preparando para agir amanhã, os pobres coitados que virão
visitar os mortos. Não respeitam nada, ainda bem que a polícia pegou.”
Levam-nos,
os quatro, um em cada viatura, até a delegacia.
Surpresa!
O que ficou na kombi já estava lá, nos esperando.
Dirá
depois: “pegaram quando eu ia saindo,
agente da ditadura infiltrado, disfarçado de funcionário do cemitério ou
vendedor de cachorro-quente. Sacaram a gente o tempo todo, o polícia deu e
ainda chamou a gente de otários, o filho da puta.”
Interrogatório.
Vândalos não são. A pichação seria outra, aqueles rabiscos babacas, não tinha nome
de político, e de esquerda.
“Vão abrindo o jogo: vocês são do partido
comunista!”
“Não senhor, a gente só estava
de sacanagem, se divertindo...”
“Vou falar a verdade, doutor:
amanhã é finados, depois de amanhã tem eleições, a gente recebeu uma grana pra
fazer propaganda, foram os candidatos do partido do falecido”.
E a dúvida, vandalismo ou crime eleitoral, na voz
áspera, profunda, manzorra que um soco mata: “está querendo tirar a paciência de quem? Vai logo falando a verdade,
aquela merda que vocês escreveram era alguma senha, o que é que vocês
pretendiam fazer? Não vão abrir?”
Somos
transferidos para o DOPS, Praça Mauá, e recebidos como líderes de um perigoso
movimento armado pronto para tomar o poder, com ameaça de tortura, porrada,
fuzilamento sumário...
Um
dia acharei engraçado mas agora é de cagar nas calças, aqui, diante da elite do
extermínio e da tortura, selecionados a dedo os que não têm alma nem coração,
só ódio e dedos íntimos de gatilhos.
Olham
pra nós como pit-bulls diante de gatos vira-latas, mãe do céu, que eu morra
logo, não tenha que padecer na pimentinha e no pau-de-arara*.
Nos
apertam e não arrancam nada, nada concluindo.
Como
pronunciar a sigla MR-8 e sair impune, com vida? Nem pensar! Melhor perder
dentes e ovos.
E resolvem passar a batata
quente adiante. Mandam que estendamos as mãos, juntas, como em preces, e vão
nos amarrando os punhos com fios elétricos, desses de tomadas...
Vão
nos levar para uma sessão de choques.
Melhor
pau-de-arara**, palmatória no saco, afogamento no balde d’água, asfixia no saco
plástico... Tudo menos choque. Só a possibilidade já é tortura.
Saem
e, a sós, certamente estão nos gravando, murmuro para o companheiro ao lado, “vamos para os choques”.
Ouço
“choque é o cacete, usaram os fios como cordas,
acho que vão nos pendurar”.
Entram
cinco meganhas: “vambora!”
Cada
um segura a ponta de um fio e começam a nos puxar para fora da cela, do
corredor, do prédio... Ué, pra rua?
Na
calçada mais dois esperam, acintosamente armados. Darão cobertura aos que vão
nos puxar, como jumentos, cavalos puxados pela rua, todo mundo olhando.
Sorte
ser noite senão platéia imensa, aplausos de uns, censura de outros, tratar
gente como bicho, diante da exótica fauna noturna do cais do porto:
marinheiros, estivadores, putas, viados, cafetões, narcotraficantes,
narcoviciados, mendigos, menores abandonados, camelôs de última hora,
inferninhos de letreiros luminosos, boates de última categoria, puteiros,
pensões de breves encontros, quartos para solteiros, música infernal de gosto a
lastimar até o final dos tempos...
E
aqueles cinco homens puxados como jumentos a caminho do eito, o primeiro grito:
“pega ladrão!” Mais outro: “pega!”
Um
viadinho ridículo na porta da boate: “enfia
o cassetete no cu deles”, os policiais achando engraçadíssimo.
Se
resolvem linchar, deixam.
Tudo
só porque estávamos fazendo uma pichaçãozinha de nada, risco zero para a
ditadura e crime eleitoral pra gente.
Não
dá cana, só multa. Mas nada faz sentido agora, é uma suruba ideológica só, a
gente se expondo, sacrificando a juventude pra defender esse povo gritando pega
ladrão, mandando os agentes da ditadura enfiar o cassetete no nosso cu...
Se
me livrar dessa quero mais saber de política?
Querem
macumba e maracanã, carnaval e igreja. Eu vou é tirar o time, tratar de mim e
da minha família, pra onde estão nos levando?
Alguém
ousa perguntar a um dos dois que dão cobertura, “estamos indo pra onde?”
“Polícia Federal. Vocês vão ver o que é bom.
Vão até desejar trocar os carinhos que vão ganhar pelo que o viadinho mandou a
gente fazer.”
Entramos.
Já
nos esperam e nada perguntam, encaminhando-nos direto para a cela, os cinco
numa cela só, incomunicáveis. Como os nossos parentes e os companheiros de
partido vão saber que estamos presos?
Chocadeira. Ficaremos aqui até
a transferência para um quartel do exército.
Talvez
nos coloquem num helicóptero da marinha e nos joguem no mar. Já está habitual,
não é mais segredo.
Saudade
de casa. Na hora em que saí a mulher alertou que o leite em pó da caçula estava
acabando. Deve ter se virado com algum parente.
O
clima tenso vai se esvaindo, e começamos conversa reservada, falando baixo,
descontraindo-nos aos poucos, conversa normal, trivialidades, coisas do dia a
dia porque de política alto risco.
Embora
não tivesse lugar para por microfones, só paredes e grade, chão frio pra
cacete, nunca se sabe.
Dormir,
uma quase impossibilidade, em turnos, um sempre acordado, para avisar se viesse
covardia, até o dia amanhecer, mais um dia inteiro nessa situação, um almoço
que cruz credo, arroz e caldo ralo de carne com batata, meio sopa meio
ensopado, e se estiver envenenado?
Fome
maior, um mais atrevido experimenta, não cai, todos comem que de novo só
amanhã.
Direitos
humanos só para humanos. Somos cães comunistas.
Outra
noite, amanhecer, mais um dia, a mesma sopa-ensopado já de tarde, e um
carcereiro mais indiscreto, o primeiro a falar conosco: são “cagados, o Miro Teixeira está aí
negociando, habeas corpus. O governador ficou sabendo mandou o garoto dele, vocês
vão de rua”.
Fim da incomunicabilidade, ligar pra casa, “que vagabunda nada, filha, eu estava preso,
chegar aí te conto, já estou indo.”
Recepção
a extraterreno dando-se à mostra, notícia ruim se espalha rápido, a vizinhança
toda me esperando, uma vila de trinta e cinco casas, fofoqueiros às pencas, em
cardumes, bandos, matilhas, uma fofocada do cão, “eu não disse, ele tem uma língua enorme, falando mal do governo, fosse
eu cuidava da minha vida, três filhos, e deixava esse negócio de política pra lá,
ele é maluco”, só um ou outro dizendo coragem, preocupação com o próximo,
consciência política, compromisso social.
(In “Não Haverá Mais Natais”, romance autobiográfico)
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