quinta-feira, 23 de maio de 2013

GOLS QUE PERDI

Há mulheres que possuem tamanha exuberância de forma que deveriam estar interditas aos homens, só se mostrando de modo indireto e democrático, em fotografias e pinturas, à disposição unicamente para a libido coletiva, desperdício para um amante só, sempre menos e menor do que merecem e querem.
                  Estou em plena aula, dissertando sobre terpenos e aminoácidos, redigindo cadeias de carbono no quadro, explicando transferências de elétrons e ela, ninfa seqüestrada de uma tela de Boticelli.
                  São polegadas exatas, precisos milímetros distribuídos em cada curva, canto, quina, gruta, ângulo; saliências e reentrâncias arregalando olhos, semeando erotismo, inundando tudo numa atmosfera de só ela e mais nada, sentada na terceira ou quarta fileira, compenetrada e alheia para mais infernizar na camurça morena da pele formando um vale, o decote propositalmente desabotoado, como me concentrar?
                  “Professor, por que o radical sumiu?”
                  “Não entendi. Repete?”
                  Entre os professores é chamada, em segredo, de hino nacional: todos cantaram ou cantam. Quem não cantou nem canta cantará.
                  Todos não, quase todos. A maldita e onipresente timidez.
                  Também um pouquinho de estratégia, desde a adolescência, e que só identifiquei pouco tempo atrás, num cursinho de vendas: “antes de tentar vender a água provoque a sede.”
                  Queixa minha a colega comum, “por que eu o único a não merecer palavras, a não partilhar seus sorrisos, a não orbitar, corpo estranho, em torno daquela estrela brilhando independente de sóis e luas? Por que só eu?”
                  E resposta surpreendente ativando cada célula, todos os meus átomos antevendo possibilidades insonhadas, superação de desempenho, longa viagem no colapso dos sentidos, milhões de anos de evolução só para aquele corpo flutuando no imaginário e na minha cama: “ela gosta de você, nunca percebeu?”
                  Agora driblar a secretária bilíngüe, toda língua e dedos, dentes miúdos mordendo graúdo, ciúme de mil olhos vigiando, e a mulher em casa, “aonde vai? Pensa que me engana, que não sei que viaja num mar de sirigaitas e vagabundas? Isso vai acabar, qualquer dia acabo contigo, miserável!”
                  “Deixa de ser boba, coisa da sua cabeça, eu trabalhando igual a um desgraçado, é curso, escolas, faculdade que mal tenho tempo pra respirar, pensa que o que trago cai do céu?”
                  Aproximar lento e pensado. Pressa espanta, precipitação atrapalha, “o meu noivo oficial do exército em missão no nordeste, casamento ano que vem, me sinto sozinha, pouco converso que todo mundo bobo, de papo pouco espirituoso, sem conteúdo, não tem problema vou sim, pode esperar.”
                  E a nudez exata. Afrodite ao meu alcance, Vênus sem a amputação dos braços, muito pelo contrário, eficientíssimos inaugurando o éden no quarto, quartos de exatas formas, matéria prima para a consecução do exatamente perfeito, a hino nacional toda estrofes e versos, acordes, afinado coral de desempenho, gen estranho, talvez de minhoca, talvez de rabo amputado de lagartixa, impondo movimentos inusitados, inesperado e surpreendente contorcionismo em heróicos brados, mas...
                  O herói cobrado deitado eternamente, o florão da América em berço esplêndido, iluminado sol apagado, meu São Eros, padroeiro dos adúlteros compulsivos, que ódio!
                  Aquela coisa murcha e encolhida, morta, com a textura de uma lagarta na horta, a gaveta da cabeceira pequena, insuficiente para eu me esconder, e a desculpa safada, esfarrapada, deslavada de humilhação e raiva no altar da infinita vergonha: “eu estava te escondendo, com medo de estragar tudo, uma dor de dente violenta, insuportável, desculpe...”
                  “Isso acontece, tem nada não”. E o retorno, caminho de volta antecipado, vestir as roupas, meu Deus, quero morrer.
                  Não desistiu, insinuou-se mais, recorrendo a vasto e variado repertório de sorrisos e trejeitos.
                  Não quero entender nada, desconverso, trauma apontando acontecer de novo, aí é muito, pedir demissão e sumir, jurar celibato e castidade por punição à espada maleável e macia, derretida diante de tanto calor exposto, miserável.
                  Pequenez tamanha, sentimento do nada só experimentarei novamente daqui a dois anos, pior ainda porque sem possibilidade de desculpa, dor de dente  ou luto pela morte de parente afastado, primo em oitavo grau ou tia que nunca vi, doeu mais, muito mais, como dizer independente da minha vontade? Coisa do imponderável montando acampamento no prazer, justamente no meu número, a minha pedra no bingo do fracasso.       
                  É técnica de análises clínicas, voluptuosas curvas e relevos esculpindo o uniforme branco impondo sonhos e desejos aos passantes, semeando torcicolos nos homens e masturbações nos meninos, inalcançável como uma nebulosa nos confins do tempo, lá aonde telescópio algum chega, e vê-la desnuda é mera opinião de quem só imagina, esperando que a oportunidade surja antes que a morte chegue.
                  Pois resolveu baixar, corpo, alma e insaciedade no meu corpo devoluto esperando ocupação, terrível vocação de amazona pronta para montar o mais xucro potro, indomáveis alazões, tenazes garanhões com a estranha e só dela capacidade de esconder o próprio peso, de pesar nada, flutuar concreta e dimensional entre a cama e o lustre do teto, eclipsando qualquer coisa que não fosse o seu corpo.
                  Oportunidade assim fadada à noite inteira, muitas horas de sequências e recomeços, experimentos e repetições distendendo o tempo e anulando o pensamento, alheio a tudo o que mais existe, reduzindo-me a simples planta plantada naquele corpo, morada e alimento, impossibilitado de mudar, mas...
                  A infindável noite de muitas horas terminou no quinto minuto, se tanto, num armagedon de final dos tempos, e com tal ímpeto e intensidade que depois só o sono e a vergonha, a necessidade de não existir, passar ao largo do espelho que pedido de perdão nenhum diluirá tanta frustração estampada na breve, brevíssima noite: ejaculação precoce.


In Não Haverá Mais Natais, romance autobiográfico.

Nenhum comentário:

Postar um comentário