Não basta ser moleque, há que ser Moleque em seu grau
maior de periculosidade infantil.
Os
amiguinhos de molecagens amarram folhas de espada-de-São Jorge e as colocam no
meio das plantas, puxando lentamente, uns, ou rapidamente, outros, assustando
os passantes, que as supõem animais saídos do mato.
Molecagem
pouca.
De
pior gosto, há os que passam bosta de cachorro no barbante e o esticam, altura
do peito do incauto, amarrado a duas árvores, uma de cada lado da rua, para
nojo e revolta das vítimas.
Não
basta. Previsível por repetitivo desde as gerações anteriores.
É
preciso inovar, ainda que a partir daí, e executar coisa diferente e de maior
impacto, de maneira que ninguém escape.
Abóboras
cortadas e com uma vela dentro? Manjado.
Alguém
coberto por lençol ou pano branco, correndo no quintal do vizinho mais medroso?
Já foi feito.
Cruz
de madeira e fita vermelha e preta, de máquina de escrever, flores e velas
encostadas na porta da sala do mais covarde, uma providencial pedrada na porta
provocando a visão inesperada e o desespero? Já esperado pela vítima, vacinada
de sustos.
É
preciso mais, bem mais, muito mais. E passo semana imaginando a próxima
molecagem, examinando hipóteses, avaliando conseqüências, vivenciando por
antecipação o prazer mórbido de gerar raiva e pânico.
O
insight se dá comigo sentado na beira
da calçada, na esquina, com os garotos sentados na tarde, num meio fio do
bairro, esperando sorrisos, olhares promissores, analisando pernas,
acompanhando cadências de passos, cabelos, ombros...
Reunidos
todos no horário da saída do colégio estadual, as meninas, minissaias e meiões,
com passagem obrigatória por nós atentos na rua passarela.
Sob
o frondoso flamboyant que na
primavera explode em florações cor de fogo, percebo que um dos galhos, o maior,
atravessa a rua, bem no centro da encruzilhada, uma ferramenta para mais uma
sacanagem.
Lembro-me
da festa no sábado anterior, dois dias atrás, e procuro o ex-aniversariante: “o que é que a sua mãe fez com aqueles
pratinhos de papelão?”
“Não sei, acho que jogou no
lixo.”
Busca
no lixo: copinhos de papelão babados, marcas de batom, papéis de bala, glacê,
açúcar cristal, papel de presente... Está aqui!
Levo-o
para casa. Limpo, com pano úmido. Onde coloquei o nanquim? Pinto de preto.
É
preciso camuflar, esconder na escuridão da noite.
Agora
o barbante. Melhor, linha de nylon,
transparente, papai perguntando, dias depois, “onde meteram a minha linha de pescar?”
Três
furinhos equidistantes no bordo do prato de papelão.
Amarro
três pedaços da linha, longos o bastante para que o fogo não os incendeie ou o
calor da chama não os derreta, de maneira a ficar como o prato daquelas
balanças de travessão, pendurado.
Uma
vela média, parcialmente usada.
Menor,
risco de incendiar o prato. Maior, difícil de ficar equilibrada no prato.
Aguardo
que todos durmam.
Raros
são ainda os televisores, enormes, de imagem tremida, sem cores nem contrastes,
caros.
Sem
reality show e sem novela, ninguém
abre mão de viver a própria vida para viver vida alheia, sem motivo para
prolongar o dia, que termina com as cadeiras nas calçadas, a mulherada
comentando “menina, você não sabe!”
As crianças miúdas em volta.
Dormem
logo e, acumpliciado com amigo de confiança, começo: faço uma marimba com a
linha de nylon e lanço sobre a
árvore.
Enquanto
seguro uma das pontas, o cúmplice leva a outra até o jardim, quarenta ou
cinqüenta metros distante. Ninguém pode nos ver ou ouvir.
Passo
a linha sobre o galho que cruza a esquina e a amarro nas três linhas presas ao
prato, como nos cabrestos das pipas.
Observamos
se não há ninguém olhando, quase meia noite.
Coloco
o prato no chão e fixo a vela. Acendo.
Caminho
até o jardim. Seguro a ponta da linha e logo surge o primeiro que no dia
seguinte não se cansará de descrever a mística experiência pela qual passou: “eu vinha distraído, juro que não bebi, e vi
aquela macumba na esquina.
De repente a vela começou a
subir. Eu corri, porra!”
Duas
mulheres começam a gritar, histéricas, abraçadas, até que dão as costas e
retornam apressadas.
Um
certamente perdeu a namorada: correu, esquecendo-se de que estava acompanhado,
a mulher atrás: “devagar que não consigo
correr. Me espera, cagão.”
Retirei
rapidamente prato e vela, arrebentando a linha, E. do outro lado, às
gargalhadas de tirar fôlego, puxando. Guardamos.
No
dia seguinte os comentários: “esquina mal
assombrada, vela subindo”; “havia um
diabo com tridente e tudo”; “a vela
subiu até chegar nas nuvens, eu juro que vi”; uns debochando, outros
fazendo o sinal da cruz; os evangélicos, poucos ainda, curvando-se a mais uma
revelação, sinal do fim dos tempos.
Inspirado
no meu personagem preferido, dei nome ao fenômeno: a vela que voa, todo mundo
repetindo, comentando, dando pareceres, buscando explicações... Só um ou outro
perto da verdade, isso é sacanagem de algum engraçadinho.
Noite
seguinte. Movimento maior na esquina, os céticos esperando ver.
Demos
folga.
Sexta-feira
seguinte tudo de novo: “meu Deus, eu
pensei que fosse mentira, invenção dessa gente, mas eu vi, juro”; “juro por Deus que é verdade, a vela subiu
mesmo, acredite se quiser”; “é melhor
chamar um padre pra benzer a esquina, isso é trabalho feito para algum morador”,
as beatas da rua recorrendo a parecer do padre, “isso é besteira, Dona Maria”.
Onde
chegávamos puxávamos o assunto, sadicamente alimentando especulações, com gente
começando a evitar passar na esquina, mesmo de dia, o astral ali não é bom.
Terça-feira
amanhecendo com um baita despacho, galinha, farofa, pipoca, fitas coloridas,
velas, bebidas... Um banquete.
Desconfiaram
de Dona Finoca alimentando o cão, para que ele fosse embora, diziam uns, ou
para que ficasse, já que íntimo da Mãe de Santo, diziam outros, a dona
afirmando que não foi ela, os búzios não mostraram nada, “isso é coisa dessas carolas fofoqueiras que vivem cheirando o rabo do
padre, não têm uma roupa para lavar”.
O
antigo guarda noturno sumiu, com apito e tudo, substituído por outro que pouco
passou pela esquina, “cumpro o meu
serviço normalmente e nunca vi nada, seu P., eu não acredito nessas coisas, só
acredito em Deus, essa gente precisa orar mais”.
Vinte
ou vinte e cinco dias depois, o assunto já moribundo, nas antecâmaras da morte,
substituído por outro, a Fera da Penha, aquela monstro que matou a Taninha,
coitada, vai virar santa, só porque o pai da garotinha não quis se separar da
mulher para morar com ela, o que é que a filha do infiel tinha a ver com isso?
Capricho e Sétimo Céu transformando a tragédia em fotonovela, todo mundo
comprando, lendo, emprestando, pegando emprestado... E...
A
vela que voa apareceu de novo, é o fim do mundo: assalto ao trem pagador, Bandido
da Luz Vermelha, Fera da Penha, vela que voa...
É
o fim do mundo, os mais corajosos periciando a esquina no dia seguinte, não há
marca de nada, de nenhum despacho, nenhum cheiro, nada, mais alimentando a
sobrenaturalidade do fenômeno, de Deus não pode ser.
Deus
não brincaria de assustar os seus filhos. É coisa de satanás, no duro, se
divertindo. Uma novena resolve.
Chego
da escola, E. me esperando no portão, terror no rosto: “a minha mãe achou a vela que voa.”
“Como?”
“Eu escondi atrás do guarda
roupa, ela arrastou para varrer atrás e achou.”
“Quê que você falou?”
“A verdade.”
“Falou que eu estava também?”
“Falei.”
“Vai dar merda.”
“Vai não. Ela prometeu que se
a gente não fizer mais ela não conta pra ninguém, nem pro meu pai.”
“Cadê a vela?”
“Ela guardou. Embolou a linha
do teu pai, rasgou o prato e guardou a vela pra quando faltar luz.”
In Não Haverá
Mais Natais, romance autobiográfico.
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