quinta-feira, 23 de maio de 2013

A VELA QUE VOA

Não basta ser moleque, há que ser Moleque em seu grau maior de periculosidade infantil.
                  Os amiguinhos de molecagens amarram folhas de espada-de-São Jorge e as colocam no meio das plantas, puxando lentamente, uns, ou rapidamente, outros, assustando os passantes, que as supõem animais saídos do mato.
                  Molecagem pouca.
                  De pior gosto, há os que passam bosta de cachorro no barbante e o esticam, altura do peito do incauto, amarrado a duas árvores, uma de cada lado da rua, para nojo e revolta das vítimas.
                  Não basta. Previsível por repetitivo desde as gerações anteriores.
                  É preciso inovar, ainda que a partir daí, e executar coisa diferente e de maior impacto, de maneira que ninguém escape.
                  Abóboras cortadas e com uma vela dentro? Manjado.
                  Alguém coberto por lençol ou pano branco, correndo no quintal do vizinho mais medroso? Já foi feito.
                  Cruz de madeira e fita vermelha e preta, de máquina de escrever, flores e velas encostadas na porta da sala do mais covarde, uma providencial pedrada na porta provocando a visão inesperada e o desespero? Já esperado pela vítima, vacinada de sustos.
                  É preciso mais, bem mais, muito mais. E passo semana imaginando a próxima molecagem, examinando hipóteses, avaliando conseqüências, vivenciando por antecipação o prazer mórbido de gerar raiva e pânico.
                  O insight se dá comigo sentado na beira da calçada, na esquina, com os garotos sentados na tarde, num meio fio do bairro, esperando sorrisos, olhares promissores, analisando pernas, acompanhando cadências de passos, cabelos, ombros...
                  Reunidos todos no horário da saída do colégio estadual, as meninas, minissaias e meiões, com passagem obrigatória por nós atentos na rua passarela.
                  Sob o frondoso flamboyant que na primavera explode em florações cor de fogo, percebo que um dos galhos, o maior, atravessa a rua, bem no centro da encruzilhada, uma ferramenta para mais uma sacanagem.
                  Lembro-me da festa no sábado anterior, dois dias atrás, e procuro o ex-aniversariante: “o que é que a sua mãe fez com aqueles pratinhos de papelão?”
                  “Não sei, acho que jogou no lixo.”
                  Busca no lixo: copinhos de papelão babados, marcas de batom, papéis de bala, glacê, açúcar cristal, papel de presente... Está aqui!
                  Levo-o para casa. Limpo, com pano úmido. Onde coloquei o nanquim? Pinto de preto.
                  É preciso camuflar, esconder na escuridão da noite.
                  Agora o barbante. Melhor, linha de nylon, transparente, papai perguntando, dias depois, “onde meteram a minha linha de pescar?”
                  Três furinhos equidistantes no bordo do prato de papelão.
                  Amarro três pedaços da linha, longos o bastante para que o fogo não os incendeie ou o calor da chama não os derreta, de maneira a ficar como o prato daquelas balanças de travessão, pendurado.
                  Uma vela média, parcialmente usada.
                  Menor, risco de incendiar o prato. Maior, difícil de ficar equilibrada no prato.
                  Aguardo que todos durmam.
                  Raros são ainda os televisores, enormes, de imagem tremida, sem cores nem contrastes, caros.
                  Sem reality show e sem novela, ninguém abre mão de viver a própria vida para viver vida alheia, sem motivo para prolongar o dia, que termina com as cadeiras nas calçadas, a mulherada comentando “menina, você não sabe!” As crianças miúdas em volta.
                  Dormem logo e, acumpliciado com amigo de confiança, começo: faço uma marimba com a linha de nylon e lanço sobre a árvore.
                  Enquanto seguro uma das pontas, o cúmplice leva a outra até o jardim, quarenta ou cinqüenta metros distante. Ninguém pode nos ver ou ouvir.
                  Passo a linha sobre o galho que cruza a esquina e a amarro nas três linhas presas ao prato, como nos cabrestos das pipas.
                  Observamos se não há ninguém olhando, quase meia noite.
                  Coloco o prato no chão e fixo a vela. Acendo.
                  Caminho até o jardim. Seguro a ponta da linha e logo surge o primeiro que no dia seguinte não se cansará de descrever a mística experiência pela qual passou: “eu vinha distraído, juro que não bebi, e vi aquela macumba na esquina.
                  De repente a vela começou a subir. Eu corri, porra!”
                  Duas mulheres começam a gritar, histéricas, abraçadas, até que dão as costas e retornam apressadas.
                  Um certamente perdeu a namorada: correu, esquecendo-se de que estava acompanhado, a mulher atrás: “devagar que não consigo correr. Me espera, cagão.”
                  Retirei rapidamente prato e vela, arrebentando a linha, E. do outro lado, às gargalhadas de tirar fôlego, puxando. Guardamos.
                  No dia seguinte os comentários: “esquina mal assombrada, vela subindo”; “havia um diabo com tridente e tudo”; “a vela subiu até chegar nas nuvens, eu juro que vi”; uns debochando, outros fazendo o sinal da cruz; os evangélicos, poucos ainda, curvando-se a mais uma revelação, sinal do fim dos tempos.
                  Inspirado no meu personagem preferido, dei nome ao fenômeno: a vela que voa, todo mundo repetindo, comentando, dando pareceres, buscando explicações... Só um ou outro perto da verdade, isso é sacanagem de algum engraçadinho.
                  Noite seguinte. Movimento maior na esquina, os céticos esperando ver.
                  Demos folga.
                  Sexta-feira seguinte tudo de novo: “meu Deus, eu pensei que fosse mentira, invenção dessa gente, mas eu vi, juro”; “juro por Deus que é verdade, a vela subiu mesmo, acredite se quiser”; “é melhor chamar um padre pra benzer a esquina, isso é trabalho feito para algum morador”, as beatas da rua recorrendo a parecer do padre, “isso é besteira, Dona Maria”.
                  Onde chegávamos puxávamos o assunto, sadicamente alimentando especulações, com gente começando a evitar passar na esquina, mesmo de dia, o astral ali não é bom.
                  Terça-feira amanhecendo com um baita despacho, galinha, farofa, pipoca, fitas coloridas, velas, bebidas... Um banquete.
                  Desconfiaram de Dona Finoca alimentando o cão, para que ele fosse embora, diziam uns, ou para que ficasse, já que íntimo da Mãe de Santo, diziam outros, a dona afirmando que não foi ela, os búzios não mostraram nada, “isso é coisa dessas carolas fofoqueiras que vivem cheirando o rabo do padre, não têm uma roupa para lavar”.
                  O antigo guarda noturno sumiu, com apito e tudo, substituído por outro que pouco passou pela esquina, “cumpro o meu serviço normalmente e nunca vi nada, seu P., eu não acredito nessas coisas, só acredito em Deus, essa gente precisa orar mais”.
                  Vinte ou vinte e cinco dias depois, o assunto já moribundo, nas antecâmaras da morte, substituído por outro, a Fera da Penha, aquela monstro que matou a Taninha, coitada, vai virar santa, só porque o pai da garotinha não quis se separar da mulher para morar com ela, o que é que a filha do infiel tinha a ver com isso? Capricho e Sétimo Céu transformando a tragédia em fotonovela, todo mundo comprando, lendo, emprestando, pegando emprestado... E...
                  A vela que voa apareceu de novo, é o fim do mundo: assalto ao trem pagador, Bandido da Luz Vermelha, Fera da Penha, vela que voa...
                  É o fim do mundo, os mais corajosos periciando a esquina no dia seguinte, não há marca de nada, de nenhum despacho, nenhum cheiro, nada, mais alimentando a sobrenaturalidade do fenômeno, de Deus não pode ser.
                  Deus não brincaria de assustar os seus filhos. É coisa de satanás, no duro, se divertindo. Uma novena resolve.
                  Chego da escola, E. me esperando no portão, terror no rosto: “a minha mãe achou a vela que voa.”
                  “Como?”
                  “Eu escondi atrás do guarda roupa, ela arrastou para varrer atrás e achou.”
                  “Quê que você falou?”
                  “A verdade.”
                  “Falou que eu estava também?”
                  “Falei.”
                  “Vai dar merda.”
                  “Vai não. Ela prometeu que se a gente não fizer mais ela não conta pra ninguém, nem pro meu pai.”
                  “Cadê a vela?”
                  “Ela guardou. Embolou a linha do teu pai, rasgou o prato e guardou a vela pra quando faltar luz.”


In Não Haverá Mais Natais, romance autobiográfico.

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