quinta-feira, 23 de maio de 2013

O MILAGRE

Uma ouvinte, não lembro se por carta ou telefone, quis saber o posicionamento das ciências em relação aos milagres.
                Respondi que as ciências ainda não têm uma explicação para os milagres, mas acontecem e não são privilégio desta ou daquela religião, desta ou daquela denominação, sendo fato corrente desde os primórdios da humanidade, em todas as religiões, do xamanismo e da pajelança dos índios até os cristãos modernos, passando pelas religiões africanas e asiáticas.*.
                E alertei: embora existam, não acontecem em profusão, a torto e a direita, a toda hora e em todas as igrejas.
                Expliquei o efeito placebo, quando há um melhora temporária no quadro do doente, por autossugestão, mas sem cura, e alertei para as fraudes, bastante comuns.
                Encerrei com um comentário despretensioso, a título de curiosidade: a ciência registra praticamente a cura milagrosa de quase tudo, de paralisias e epilepsia ao câncer. Só não há registro ainda de cura da AIDS.
                Logo depois o telefone tocou. Um amigo de longa data, religioso ao extremo: “professor, em minha igreja há um caso de cura da AIDS! Um irmão está curado, pela graça do Senhor”.
                Cético, respondi: “você deve estar enganado, bicho. Acho isso muito difícil.”
                Ele retrucou: “levo o senhor lá. O senhor vai ver com os seus próprios olhos”.
                Fiz o desafio: “vamos. Se isso for verdade, dou o meu testemunho aqui no rádio, na sua igreja, em qualquer igreja, e depois o encaminho para a Universidade, para o Fundão. Será o primeiro caso no mundo”.
                Numa quarta-feira de muito sol, fomos.
                Acompanhados de um pastor, de outra denominação, para testemunhar, de maneira que não ficasse a minha palavra contra a dele, nos metemos numa Kombi e fui parar no interior de Itaguaí.
                Uma casa paupérrima no meio do mato, um bairro de miséria haitiana.
                Entramos e o rapaz estava dormindo. Foi acordado pela mãe, nos confidenciando que ele permanecia mais dormindo que acordado.
                A visão me chocou: deveria ter quase um metro e oitenta de altura e não mais de quarenta e cinco, cinquenta quilos, já tendo perdido boa parte dos cabelos, a pele tomada de formações perebóides, descamando, e manchas arroxeadas por todo o corpo.
                Sentou-se e deu o testemunho ao pastor e ao meu amigo, garantindo que estava curado.   
                Fui apresentado e começamos a conversar: fora quimiodependente de drogas injetáveis e era egresso do sistema penitenciário.
                Antes eu já havia percebido que era homossexual.
                Pedi para ver os resultados dos seus exames, a mãe me trouxe um catatau de papéis: resultados de exames, chapas de raios-X, receitas...
                Em todos os exames de sangue, no Elisa, o mesmo resultado: soropositivo.
                “Como é que você sabe que está curado?”
                “O meu Deus é maravilhoso, não abandona um filho. Eu era outro homem, vi a morte... O senhor precisava ver como eu estava... Deus me curou”, diante dos sorrisos de concordância dos meus dois acompanhantes.
                “Acredito, acredito... Você tem algum exame mostrando que está curado? Não estou duvidando de você, mas assim como a medicina atestou a sua contaminação tem que atestar a sua descontaminação, a sua cura. Tem?”
                “Tenho”
                “Pegue. Estou diante de uma possibilidade única de me converter. Me ajude. Pegue-o”
                O rapaz se desconcertou: “está com a minha médica. Ela guardou para mostrar aos incrédulos que estou curado”.         
                Por iniciativa do pastor, nos demos as mãos e fizemos uma oração, agradecendo a Deus pela graça alcançada pelo rapaz.
                Nos despedimos, e na vinda, na Kombi: “acredita agora, professor? Para Deus nada é impossível. Na semana que vem ele vai dar testemunho nas nossas igrejas”.
                “O quê? Vocês estão malucos? Não existe nenhum exame com resultado negativo. Essa conversa de que está com a minha médica é fiada. Aquelas manchas roxas que vocês viram se chama Sarcoma de Caposi, típica dos aidéticos. Ele não passou por quimioterapia e perdeu o cabelo, aquele monte de feridas... Ele mal consegue ficar em pé. Esse cara é terminal, não tem mais três meses de vida, querem apostar?”
                “O senhor está até dando prazo pro rapaz morrer. O senhor é Deus?” 
                “Não mas tenho uma noçãozinha de Biologia. Você viu as receitas? Ele está tomando um coquetel terrível de antibióticos e anti inflamatórios. Isso está detonando o organismo dele. Curado, a primeira providência dos médicos seria suspender, substituir por outros mais fracos... Ele continua tomando. Não deixa ele dar testemunho, vocês vão se desmoralizar.”
                Sorrisos de ironia e deboche, por troco.
                Perdi a paciência: “três meses de vida, no máximo, querem apostar?”
                “Não senhor. Aposta não é de Deus.”
                Na segunda-feira seguinte a secretária da escola chegou: “aquele moço que o senhor foi visitar deu testemunho na minha igreja. Foi muito bom”.
                Fiz um muxoxo e meneei a cabeça em negativa: “isso é um absurdo”.
                Logo depois chegou outra funcionária: “aquele rapaz que teve AIDS foi na minha igreja. Os irmãos gostaram a beça”.
                “Na sua também? Desse jeito vai acabar morrendo no Fantástico, em rede nacional.”
                Vinte e poucos dias depois uma delas chega na escola e... “Professor, sabe aquele rapaz que deu testemunho, aquele que o senhor foi visitar? Faleceu”.
                “É mesmo? Então fala pro seu marido que eu não sou Deus, mas conheço algumas leis de Deus, e não aprendi na igreja. Uma delas é que AIDS mata” (naquela época não havia ainda o AZT nem o coquetel anti-AIDS).
                No dia seguinte o marido dela apareceu, dedinho em riste: “ele não morreu de AIDS, foi complicação respiratória”.
                “Eu sei. O Cazuza e o Freddy Mercury também”, respondi.
                E expliquei: “a AIDS não mata, ela detona o sistema imunológico, deixando o soropositivo sem defesas no organismo, o que cria condições para micróbios oportunistas, às vezes micróbios bobos que numa pessoa sadia seriam destruídos imediatamente. Aí a pessoa morre.
                Nossos pulmões são os órgãos mais vulneráveis porque, através do ar respirado, está em contato direto com o meio ambiente. É como se fosse órgão externo, exposto. O sistema imunológico tem uma trabalheira enorme nos pulmões. Sem sistema imunológico... Pneumonia, bronquite, obstrução das vias respiratórias e blau-blau”.
                “Mas não foi AIDS”, me respondeu, sem graça.
                “Você não vai corrigir isso, conversar com os irmãos, dizer que foi um equívoco, um mal entendido?”
                “Não foi AIDS”, repetiu, agora querendo convencer mais a si próprio que a mim.
                E não desmentiu, e não esclareceu aos irmãos, todo mundo acreditando que Jesus curou um aidético.
               
* N.A.: Não pode haver terapias, seja convencional (alopática) ou homeopática, nem a ingestão de beberragens (pode haver algum princípio ativo desconhecido nas ervas e que realmente combata o mal).
                   Se o paciente estiver em terapia, que não esteja havendo resposta, comprovadamente.
                           Ir ao médico e ao pai de santo ou ir ao médico e orar não vale. O milagre será de são antibiótico ou da santa vacina, talvez do espírito soro.


In “Não Haverá Mais Natais”, romance autobiográfico.

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