Meu filho caçula, do primeiro casamento, amanheceu com
o olhinho direito inchado, lacrimejando muito.
Está só com quatro anos, e o levo ao
pediatra que receita um colírio.
Os
dias passam. O inchaço e o lacrimejamento não cedem, persistem, o menino
coçando muito o olho, em permanente reclamação.
Lembro
de um primo, bioquímico, que trabalha em um grande hospital.
Procuro-o
e somos encaminhados para o setor de oftalmologia. A consulta é marcada.
Após
exames de rotina, novo colírio. Nada.
Troca
de colírio. Nada.
Dos
colírios às pomadas. Nada.
Exame
minucioso: ulceração da córnea, possibilidade de cegueira, perda do olho
direito.
Desespero-me.
Agora
a aplicação de iodo diretamente no olho, uma choradeira do cão e posso imaginar
a dor e o incômodo, sinto junto.
Aplicações
diárias, que nos obrigam a uma viagem de quarenta minutos em ônibus lotado.
Quarenta para ir e quarenta para voltar.
Nada.
Partem
para a cortisona e o menino incha, fica com a carinha redonda, mãos e pés
redondos, uma sonolência danada, e começo a acreditar que a cegueira seria
melhor.
Morro
aos poucos.
Quase
dois meses nessa agonia e eis-nos, eu e ele, no setor de oftalmologia, mais uma
vez.
O
médico, que já se tornara íntimo como amigo de longa data, anuncia: “estamos com sorte. Está aí um ex-professor
meu. É o papa da oftalmologia. Se ele não der um parecer final, ninguém dará.”
Manda
alguém chamar.
Entra
um ancião de terno preto e bengala, o corpo curvado sob o peso de muitas
décadas na corcunda.
Alheio
a toda parafernália eletrônica e ao supra-sumo da Ótica Aplicada, abre a
maletinha e tira uma simples, tosca lupa, como outras quaisquer, nas mãos de
entomólogos, filatelistas e joalheiros.
Olha,
torna a olhar e com um sorrisinho maroto se dirige a mim: “o senhor cria passarinhos? Tem passarinhos em casa?”
Sinto-me
seviciado por profundo remorso, sentindo-me o último dos últimos: zoonose. Um
dos meus pássaros contaminou o garoto. Ficará cego por minha culpa.
“Sim senhor. Tenho vários.”
Sempre
apoiado na bengalinha, se afastou, mandando que chamassem todos os
oftalmologistas de plantão e mais os estagiários.
Logo
o meu filho sumiu num mar de cabeças, transformado em mera peça anatômica
perscrutada atentamente, o velhinho falando sem parar.
Se
há motivo para tanta discussão, tanta avaliação, deve ser coisa grave, o garoto
está desgraçado, pensei.
Logo
os prontuários do pacientinho assustado corriam de mãos em mãos, sob olhares
atentos, até que pude ouvir a voz do velhinho: “tragam um chumaço de algodão e uma pinça!”.
Pediu
que se afastassem, enxugou o olho do menino e, com a lupa na mão esquerda e a
pinça na direita, fez um pequeno movimento, tirando alguma coisa.
Está
removendo a úlcera pensei ou... Pior, meu Deus, está coletando material para
uma biópsia.
Mostrou
o coletado aos circundantes e percebi sorrisos em todos.
Afastou-se,
sumindo no corredor.
Aguardei
alguns minutos, até que voltasse, acompanhado pelo médico que viera
acompanhando o caso até aqui.
Muito
sério, se aproximou: “o que aconteceu com
o seu filho é coisa rara, muito difícil de acontecer. Uma casquinha de alpiste,
com o diâmetro muito próximo do diâmetro do olhinho dele, aderiu. É como se
fosse uma lente de contato, uma ventosa. Ele deve ter coçado e pressionou a
casquinha contra o olho.
Pode levar ele. Só pingue esse
colírio, mais nada. Daqui a dois dias ele não estará sentindo nada.”
Agradeci,
apertando calorosamente a mão do velho.
O
médico, que eu já tratava com a intimidade dos amigos, e que empaturrou o
menino de colírios, iodo, pomadas, cortisona, ameaçando raspagem do globo
ocular e acenando com a possibilidade de cegueira, se aproximou, rindo, aliviado,
e me estendeu a mão.
Apertei,
controlando-me muito para não mandá-lo à puta que o pariu.
In Não Haverá Mais Natais, romance
autobiográfico
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