quinta-feira, 23 de maio de 2013

ÚLCERA NA CÓRNEA

Meu filho caçula, do primeiro casamento, amanheceu com o olhinho direito inchado, lacrimejando muito.
Está só com quatro anos, e o levo ao pediatra que receita um colírio.
                  Os dias passam. O inchaço e o lacrimejamento não cedem, persistem, o menino coçando muito o olho, em permanente reclamação.
                  Lembro de um primo, bioquímico, que trabalha em um grande hospital.
                  Procuro-o e somos encaminhados para o setor de oftalmologia. A consulta é marcada.
                  Após exames de rotina, novo colírio. Nada.
                  Troca de colírio. Nada.
                  Dos colírios às pomadas. Nada.
                  Exame minucioso: ulceração da córnea, possibilidade de cegueira, perda do olho direito.
                  Desespero-me.
                  Agora a aplicação de iodo diretamente no olho, uma choradeira do cão e posso imaginar a dor e o incômodo, sinto junto.
                  Aplicações diárias, que nos obrigam a uma viagem de quarenta minutos em ônibus lotado. Quarenta para ir e quarenta para voltar.
                  Nada.
                  Partem para a cortisona e o menino incha, fica com a carinha redonda, mãos e pés redondos, uma sonolência danada, e começo a acreditar que a cegueira seria melhor.
                  Morro aos poucos.
                  Quase dois meses nessa agonia e eis-nos, eu e ele, no setor de oftalmologia, mais uma vez.
                  O médico, que já se tornara íntimo como amigo de longa data, anuncia: “estamos com sorte. Está aí um ex-professor meu. É o papa da oftalmologia. Se ele não der um parecer final, ninguém dará.”
                  Manda alguém chamar.
                  Entra um ancião de terno preto e bengala, o corpo curvado sob o peso de muitas décadas na corcunda.
                  Alheio a toda parafernália eletrônica e ao supra-sumo da Ótica Aplicada, abre a maletinha e tira uma simples, tosca lupa, como outras quaisquer, nas mãos de entomólogos, filatelistas e joalheiros.
                  Olha, torna a olhar e com um sorrisinho maroto se dirige a mim: “o senhor cria passarinhos? Tem passarinhos em casa?”
                  Sinto-me seviciado por profundo remorso, sentindo-me o último dos últimos: zoonose. Um dos meus pássaros contaminou o garoto. Ficará cego por minha culpa.
                  “Sim senhor. Tenho vários.”
                  Sempre apoiado na bengalinha, se afastou, mandando que chamassem todos os oftalmologistas de plantão e mais os estagiários.
                  Logo o meu filho sumiu num mar de cabeças, transformado em mera peça anatômica perscrutada atentamente, o velhinho falando sem parar.
                  Se há motivo para tanta discussão, tanta avaliação, deve ser coisa grave, o garoto está desgraçado, pensei.
                  Logo os prontuários do pacientinho assustado corriam de mãos em mãos, sob olhares atentos, até que pude ouvir a voz do velhinho: “tragam um chumaço de algodão e uma pinça!”.
                  Pediu que se afastassem, enxugou o olho do menino e, com a lupa na mão esquerda e a pinça na direita, fez um pequeno movimento, tirando alguma coisa.
                  Está removendo a úlcera pensei ou... Pior, meu Deus, está coletando material para uma biópsia.
                  Mostrou o coletado aos circundantes e percebi sorrisos em todos.
                  Afastou-se, sumindo no corredor.
                  Aguardei alguns minutos, até que voltasse, acompanhado pelo médico que viera acompanhando o caso até aqui.
                  Muito sério, se aproximou: “o que aconteceu com o seu filho é coisa rara, muito difícil de acontecer. Uma casquinha de alpiste, com o diâmetro muito próximo do diâmetro do olhinho dele, aderiu. É como se fosse uma lente de contato, uma ventosa. Ele deve ter coçado e pressionou a casquinha contra o olho.
                  Pode levar ele. Só pingue esse colírio, mais nada. Daqui a dois dias ele não estará sentindo nada.”
                  Agradeci, apertando calorosamente a mão do velho.
                  O médico, que eu já tratava com a intimidade dos amigos, e que empaturrou o menino de colírios, iodo, pomadas, cortisona, ameaçando raspagem do globo ocular e acenando com a possibilidade de cegueira, se aproximou, rindo, aliviado, e me estendeu a mão.
                  Apertei, controlando-me muito para não mandá-lo à puta que o pariu.


In Não Haverá Mais Natais, romance autobiográfico

Nenhum comentário:

Postar um comentário