No meio da multidão observo papéis picados lançados
pelas janelas dos prédios. Há um carro de som enorme, vozerio.
Vai
começar a assembléia, estamos em greve.
Meteoricamente
ascendi do anonimato à direção nacional do movimento, à direção do sindicato.
Foi
tudo instintivo, sem planejamento. Nunca desejei ou me programei. Nada fiz, com
a liderança chegando mansa e passiva, natural como a lua chegará logo mais.
Caminhões
das tropas de choque nos observam, uns poucos militares cúmplices, a maioria
alisando cassetetes como cães de dentes a mostra, só aguardando que os livrem
das guias para avançarem sobre nós.
Entre
os alvos preferenciais eu, um dos mais eloqüentes e agressivos no microfone, “modera que vão te prender, cara, vai leve”,
e observo três companheiros, mais porra-loucas que radicais, tentando remover
os cavaletes que desviam o trânsito, os três de um lado e dois policiais do
outro, num insólito e de alto risco cabo-de-guerra, o capitão observando,
pronto para atiçar a matilha, as pessoas nos prédios vaiando, torcendo para o
início do conflito, para contribuírem numa chuva de cinzeiros, pedras de gelo,
garrafas, copos, pesos para papéis arremessados indistintamente contra todos
aqui na calçada, neste sol da peste, é verão.
Alguém
pede a minha intervenção e passam o microfone, o botão de volume de som do
equipamento no limite máximo, e minha voz reverbera entre prédios e veículos,
penetra portas e janelas, vontades, consciências, determinações e, surpreendendo
a todos, mais suicídio que ousadia, dirijo o discurso à tropa mais que à
categoria, “que os policiais são
trabalhadores fardados, saem sem saber se voltam, mulher, mãe e filhos
esperando, que a exploração salarial é a mesma, um soldo de nada, mal satisfaz
as necessidades básicas, são instrumentos da classe dominante, que os amestram
e tratam enquanto são úteis, descartando depois, quando irão para as favelas,
conviver com os algozes da véspera, enquanto nos degladiamos aqui, sangue e
fúria gratuitos, a classe dominante empaturra as burras, enriquecendo cada vez
mais, que...”
Soando
como baixem as armas e juntem-se a nós, o capitão a custo escondendo a
contrariedade, sorrisos a meias bocas nos caminhões, trocas de olhares atentos
ao comandante, como a perguntar: “não vai
ordenar que ataquemos, não é, chefe?”
E,
fecho de ouro: entre palmas e urros, gritos nas calçadas e prédios, passageiros
curiosos nas janelas dos ônibus, trânsito engarrafado, guardas num polifônico
concerto de apitos, em vã tentativa de organizar o caos, buzinaço de motoristas
impacientes, dirijo-me ao capitão.
Ele
não tem como evitar a minha mão estendida.
Segura
de má vontade. Na verdade só roça, olhando para a tropa como a desculpar-se,
como se dissesse “a iniciativa foi dele”
e, olhando-o amistosamente bem dentro dos olhos, sorriso irônico, falo baixo,
quase balbucio, para que só ele escute: “segura
os teus gorilas que eu seguro os meus macaquinhos.”
Ninguém
entendeu porque rimos o sorriso amarelo do alívio.
Daqui
a quatro ou cinco anos, quando eu for sacar um cheque no Banco do Brasil nos
encontraremos na fila. Ele dirá “como vai
o senhor?” Responderei que “bem, e o
senhor?” E riremos o riso cúmplice.
In Não Haverá
Mais Natais, romance autobiográfico
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