quinta-feira, 23 de maio de 2013

VASELINANDO A POLÍCIA.

No meio da multidão observo papéis picados lançados pelas janelas dos prédios. Há um carro de som enorme, vozerio.
                  Vai começar a assembléia, estamos em greve.
                  Meteoricamente ascendi do anonimato à direção nacional do movimento, à direção do sindicato.
                  Foi tudo instintivo, sem planejamento. Nunca desejei ou me programei. Nada fiz, com a liderança chegando mansa e passiva, natural como a lua chegará logo mais.
                  Caminhões das tropas de choque nos observam, uns poucos militares cúmplices, a maioria alisando cassetetes como cães de dentes a mostra, só aguardando que os livrem das guias para avançarem sobre nós.
                  Entre os alvos preferenciais eu, um dos mais eloqüentes e agressivos no microfone, “modera que vão te prender, cara, vai leve”, e observo três companheiros, mais porra-loucas que radicais, tentando remover os cavaletes que desviam o trânsito, os três de um lado e dois policiais do outro, num insólito e de alto risco cabo-de-guerra, o capitão observando, pronto para atiçar a matilha, as pessoas nos prédios vaiando, torcendo para o início do conflito, para contribuírem numa chuva de cinzeiros, pedras de gelo, garrafas, copos, pesos para papéis arremessados indistintamente contra todos aqui na calçada, neste sol da peste, é verão.
                  Alguém pede a minha intervenção e passam o microfone, o botão de volume de som do equipamento no limite máximo, e minha voz reverbera entre prédios e veículos, penetra portas e janelas, vontades, consciências, determinações e, surpreendendo a todos, mais suicídio que ousadia, dirijo o discurso à tropa mais que à categoria, “que os policiais são trabalhadores fardados, saem sem saber se voltam, mulher, mãe e filhos esperando, que a exploração salarial é a mesma, um soldo de nada, mal satisfaz as necessidades básicas, são instrumentos da classe dominante, que os amestram e tratam enquanto são úteis, descartando depois, quando irão para as favelas, conviver com os algozes da véspera, enquanto nos degladiamos aqui, sangue e fúria gratuitos, a classe dominante empaturra as burras, enriquecendo cada vez mais, que...”
                  Soando como baixem as armas e juntem-se a nós, o capitão a custo escondendo a contrariedade, sorrisos a meias bocas nos caminhões, trocas de olhares atentos ao comandante, como a perguntar: “não vai ordenar que ataquemos, não é, chefe?”
                  E, fecho de ouro: entre palmas e urros, gritos nas calçadas e prédios, passageiros curiosos nas janelas dos ônibus, trânsito engarrafado, guardas num polifônico concerto de apitos, em vã tentativa de organizar o caos, buzinaço de motoristas impacientes, dirijo-me ao capitão.
                  Ele não tem como evitar a minha mão estendida.
                  Segura de má vontade. Na verdade só roça, olhando para a tropa como a desculpar-se, como se dissesse “a iniciativa foi dele” e, olhando-o amistosamente bem dentro dos olhos, sorriso irônico, falo baixo, quase balbucio, para que só ele escute: “segura os teus gorilas que eu seguro os meus macaquinhos.”
                  Ninguém entendeu porque rimos o sorriso amarelo do alívio.
                  Daqui a quatro ou cinco anos, quando eu for sacar um cheque no Banco do Brasil nos encontraremos na fila. Ele dirá “como vai o senhor?” Responderei que “bem, e o senhor?” E riremos o riso cúmplice.


In Não Haverá Mais Natais, romance autobiográfico

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