Quando eu chegar ao início da velhice e me
reverenciarem pela experiência, inocentes de que continuarei a olhar tudo com
olhos de menino, certo de que a experiência é só o projeto de uma obra já
realizada, a leitura mais prazerosa será a de ridicularização da ditadura
militar, época em que cada homem fardado é um pequeno general, com todas as
decorrências da mediocridade imposta pela prepotência e, sozinho nas
madrugadas, rirei das minhas próprias peripécias para driblá-los na sacrossanta
imobilidade de zagueiros paraplégicos disputando a bola, as bolas que não
conseguirão recolher e para sempre correrão livres, de pé em pé, nos gramados
dos dias e das necessidades dos homens, em quadras e terrenos baldios,
esquinas, na criatividade do artista e nas palavras do líder, impunemente, sem
pudores e medos.
Hoje
vou encontrar L. no Aterro do Flamengo.
Ela
se atrasou e meus olhos bebem as formas da cidade: o relógio da Mesbla, que um
dia associarei a Sartre em um poema, os ângulos e vértices do Museu de Arte
Moderna, o Jardim de Burle Marx... Tudo lambido pelo mar nas pedras, na amurada
onde moram mariscos e tatuís.
L.
chega linda, vaporosa e apressada como essa noite estrelada de lua brincando
com o nevoeiro, o Pão de Açúcar vigiando a cidade, e começamos as bolinações,
nervosas, impacientes, cada vez mais ousadas, corpo moreno e doce assim, farto
na maciez de vinte e poucos anos, quente, reduzido a boca e dentes avançando
sobre mim.
Vai
adiantada a hora e não há risco de assaltos. Isso é ficção e possivelmente só
virá no futuro.
Sentamos
sob as palmeiras, seios cheios, fartos, de bicos rijos e negros, pequeninos
anunciando a madrugada debruçada no mar.
Deitamo-nos,
pernas entre pernas, arfando respirações e vertigens, o zíper machucando,
puxando pelos.
Solto
o cinto e desabotoo botão único, o da cintura, último obstáculo na cidadela da
precaução em delito, o dedo indicador no elástico da calcinha, forçando para
baixo, “não, aqui não, alguém pode ver, é
perigoso, não quero...”
Paciência.
Ainda não está no ponto em que os hormônios afogam a razão.
É
preciso paciência, mais carícias, prorrogação no jogo da sedução...
Permite-se,
e quedamo-nos entredevorando-nos vorazes na consecução dos minutos que, rápidos
e curtos, distendem-se na imensidão da eternidade anulando os nossos sentidos,
o prédio do museu escorrendo como lava cor de fogo, quente e melada a caminho
do mar, os letreiros luminosos se desfazendo, explodindo, espalhando cacos de
luzes e cores caindo sobre nós, clarões distantes de barcos devolutos girando,
girando, como ano novo em Copacabana, até que somos despertados por dois
cliques, clique-clique, em uníssono, quase juntos, para o meu desespero, “que porra é essa aí?”
A
lanterna, não a pequenininha dos lanterninhas de cinema, mas enorme, de caçar
guerrilheiros no Araguaia, como um holofote de aeroporto iluminando a minha
bunda, calças arriadas, L. ainda zonza e descabelada, minhas pernas bambas,
mais de tesão que de medo, e dois rifles engatilhados apontado para nós, dando
cobertura ao colega que nos inquire, “que
porra é essa aí? Levanta essa calça, meu chapa, vocês estão presos, os
documentos.”
Como
cães competentemente amestrados farejam os nossos documentos: “professor? Você não tem vergonha não, meu
chapa, não pensa nos seus alunos? E a senhora é secretária bilíngue, não é?”
Ao
que o outro milico maldosamente emenda: “deve
ser boa de língua mesmo, olha o estado do cara. Segue a gente e nada de
gracinha.”
Desespero-me
diante da perspectiva da delegacia. Serei indiciado, seremos indiciados.
Como
justificar para a minha mulher, em casa, um processo por atentado ao pudor,
como L. vai se justificar com o pai, como nos justificaremos com todos, pessoas
respeitáveis e imaculadas que todos teimamos em parecer?
Meu
desespero aumenta: os soldados tomam a direção oposta à da delegacia,
certamente tentarão estuprar a L..
Não
permitirei, ainda que isso custe a minha vida, com morte não tão inglória
assim.
Colocarão
uma arma na mão do meu cadáver e serei mais um comunista a morrer em troca de
tiros com os heróis do bravo exército brasileiro.
Mas
não vão comer a mulher que não vou deixar, e tenho que continuar vivo pra
contar, mas como?
Encará-los?
Três paraquedistas corpulentos, dois rifles e uma pistola contra o meu poder
físico de cinquenta e cinco quilos mal distribuídos em um metro e sessenta e
oito, nem pensar. Correr, na esperança de que não atirem? L. não acompanhará.
Surpresa!
Estamos entrando, eu e L., sempre seguidos pelos três, no Monumento dos Mortos
na Segunda Guerra.
Diante
dos olhares curiosos dos colegas, corpo da guarda, na entrada um deles afirma: “estavam fudendo na grama”.
Risadas.
Levam-nos
a uma sala no subsolo e perguntam pelo oficial de dia. Está dormindo e deixou
ordens para não acordá-lo.
Decresce
a minha importância, vem o sargento de dia. Examina nossos documentos, olha com
olhar inquiridor e duro, e sai, carregando os documentos, deixando-nos sós, eu
e L..
Antes
que fale alguma coisa aponto o teto e as paredes, o mobiliário, deixando claro
que deve haver aparelhos de escuta.
Querem
ouvir o que conversaremos, e me arrepio: daqui a pouco concluirão que estávamos
só disfarçando, observando-os antes do atentado terrorista que praticaríamos,
talvez dinamitando o monumento, nós dois sozinhos, possivelmente com a ajuda de
gente do partido.
Não
estranhe. Esse é um tempo de loucura desvairada.
Permanecemos
calados por aterrorizantes e infindáveis minutos, certos de que estão tentando
nos ouvir e, legítimo herdeiro, por genética e exemplos, de uma família de
jogadores de pôquer, resolvo blefar.
Falo,
quase grito, com convicção: “vovô vai
ficar puto, vai prender meia dúzia deles, acordar ele a essa hora...”
L.
entende, ensaia uma boa gargalhada, mas se contém a tempo e fica séria: “como ele vai saber que você está aqui?”
“Falei à mamãe que vinha ao
museu. Minha família sabe. Se acontecer alguma coisa foi aqui. Vou pedir pra
ligar pro vovô.”
Parco,
estreito tempo depois entram dois dos que nos prenderam.
Agora
mais cinco. Todos olham para L. como cachorros no cio. Fazem uma série de
perguntas e afirmações despropositadas. Cantam loas ao poder militar, e percebo
onde querem chegar.
É
imensa a minha dificuldade para conter o riso, as gargalhadas.
Controlo-me
para não dar cambalhotas e pulos na minha mal contida estupefação diante do
hilário no seu mais alto grau de aberração: não seremos enquadrados por
atentado ao pudor, mas na lei de segurança nacional: estávamos fazendo sexo em
área militar.
No
futuro dirão que sou mentiroso, exagerado na minha ânsia de desmoralizar os
gorilas.
Peço
para telefonar, preciso dar um telefonema.
Para
me intimidar, o mais corpulento afirma: “advogado?
Advogado aqui não vale. Você está numa seção militar, advogado é babá de civil,
aqui não vale nada.”
“É pra minha família que quero
ligar, quero falar com a minha família”.
Trocam
olhares preocupados, me dão a certeza de que escutaram.
Percebo
insegurança.
“Espera um pouquinho que o sargento vai
levar um lero com você”, a cara cínica de L. ameaçando rir e cagar tudo.
Entra
mais um, me chama, o sargento está esperando, “sente-se aí, o senhor tem algum militar na família?”
“Desculpe sargento, mas me
reservo ao direito de não responder, questão de segurança, só a um oficial
superior, é a ordem que tenho”, e
entra um dos que ficaram com L.
Cochicha
no ouvido do sargento, ar paternal, conciliador: “o senhor deveria ter mais precaução, vir namorar aqui no aterro a essa
hora, esses ripongas maconheiros, o senhor sabe, eles roubam os transeuntes
para comprar drogas, o nosso serviço é de repressão e proteção ao cidadão e...”
Lero-leros e tra-la-lás depois, “olha os
seus documentos e os da moça. Juízo, ouviu?”
Daqui
a pouco perguntarei a L. o que conversaram enquanto eu estava na sala do
sargento, “me perguntaram quem era o teu
avô.”
“E aí?”
“Eu disse que não sabia
exatamente, mas que o velho só circulava cercado de batedores de motocicletas,
que deveria ser o fodão do quartel general e eles começaram a me tratar por
senhora...”
Ah!
Então foi isso...
Falar
nisso, essa semana vou visitar o vovô. De tarde porque de manhã está
trabalhando, fiscalizando o comércio e averiguando as denúncias recebidas, ele
é fiscal da saúde pública.
In “Não Haverá Mais Natais”, romance
autobiográfico.
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