quinta-feira, 23 de maio de 2013

VOVÔ GENERAL

Quando eu chegar ao início da velhice e me reverenciarem pela experiência, inocentes de que continuarei a olhar tudo com olhos de menino, certo de que a experiência é só o projeto de uma obra já realizada, a leitura mais prazerosa será a de ridicularização da ditadura militar, época em que cada homem fardado é um pequeno general, com todas as decorrências da mediocridade imposta pela prepotência e, sozinho nas madrugadas, rirei das minhas próprias peripécias para driblá-los na sacrossanta imobilidade de zagueiros paraplégicos disputando a bola, as bolas que não conseguirão recolher e para sempre correrão livres, de pé em pé, nos gramados dos dias e das necessidades dos homens, em quadras e terrenos baldios, esquinas, na criatividade do artista e nas palavras do líder, impunemente, sem pudores e medos.
                 
                  Hoje vou encontrar L. no Aterro do Flamengo.
                  Ela se atrasou e meus olhos bebem as formas da cidade: o relógio da Mesbla, que um dia associarei a Sartre em um poema, os ângulos e vértices do Museu de Arte Moderna, o Jardim de Burle Marx... Tudo lambido pelo mar nas pedras, na amurada onde moram mariscos e tatuís.
                  L. chega linda, vaporosa e apressada como essa noite estrelada de lua brincando com o nevoeiro, o Pão de Açúcar vigiando a cidade, e começamos as bolinações, nervosas, impacientes, cada vez mais ousadas, corpo moreno e doce assim, farto na maciez de vinte e poucos anos, quente, reduzido a boca e dentes avançando sobre mim.
                  Vai adiantada a hora e não há risco de assaltos. Isso é ficção e possivelmente só virá no futuro.
                  Sentamos sob as palmeiras, seios cheios, fartos, de bicos rijos e negros, pequeninos anunciando a madrugada debruçada no mar.
                  Deitamo-nos, pernas entre pernas, arfando respirações e vertigens, o zíper machucando, puxando pelos.
                  Solto o cinto e desabotoo botão único, o da cintura, último obstáculo na cidadela da precaução em delito, o dedo indicador no elástico da calcinha, forçando para baixo, “não, aqui não, alguém pode ver, é perigoso, não quero...”
                  Paciência. Ainda não está no ponto em que os hormônios afogam a razão.
                  É preciso paciência, mais carícias, prorrogação no jogo da sedução...
                  Permite-se, e quedamo-nos entredevorando-nos vorazes na consecução dos minutos que, rápidos e curtos, distendem-se na imensidão da eternidade anulando os nossos sentidos, o prédio do museu escorrendo como lava cor de fogo, quente e melada a caminho do mar, os letreiros luminosos se desfazendo, explodindo, espalhando cacos de luzes e cores caindo sobre nós, clarões distantes de barcos devolutos girando, girando, como ano novo em Copacabana, até que somos despertados por dois cliques, clique-clique, em uníssono, quase juntos, para o meu desespero, “que porra é essa aí?”
                  A lanterna, não a pequenininha dos lanterninhas de cinema, mas enorme, de caçar guerrilheiros no Araguaia, como um holofote de aeroporto iluminando a minha bunda, calças arriadas, L. ainda zonza e descabelada, minhas pernas bambas, mais de tesão que de medo, e dois rifles engatilhados apontado para nós, dando cobertura ao colega que nos inquire, “que porra é essa aí? Levanta essa calça, meu chapa, vocês estão presos, os documentos.”
                  Como cães competentemente amestrados farejam os nossos documentos: “professor? Você não tem vergonha não, meu chapa, não pensa nos seus alunos? E a senhora é secretária bilíngue, não é?”
                  Ao que o outro milico maldosamente emenda: “deve ser boa de língua mesmo, olha o estado do cara. Segue a gente e nada de gracinha.”
                  Desespero-me diante da perspectiva da delegacia. Serei indiciado, seremos indiciados.
                  Como justificar para a minha mulher, em casa, um processo por atentado ao pudor, como L. vai se justificar com o pai, como nos justificaremos com todos, pessoas respeitáveis e imaculadas que todos teimamos em parecer?
                  Meu desespero aumenta: os soldados tomam a direção oposta à da delegacia, certamente tentarão estuprar a L..
                  Não permitirei, ainda que isso custe a minha vida, com morte não tão inglória assim.
                  Colocarão uma arma na mão do meu cadáver e serei mais um comunista a morrer em troca de tiros com os heróis do bravo exército brasileiro.
                  Mas não vão comer a mulher que não vou deixar, e tenho que continuar vivo pra contar, mas como?
                  Encará-los? Três paraquedistas corpulentos, dois rifles e uma pistola contra o meu poder físico de cinquenta e cinco quilos mal distribuídos em um metro e sessenta e oito, nem pensar. Correr, na esperança de que não atirem? L. não acompanhará.
                  Surpresa! Estamos entrando, eu e L., sempre seguidos pelos três, no Monumento dos Mortos na Segunda Guerra.
                  Diante dos olhares curiosos dos colegas, corpo da guarda, na entrada um deles afirma: “estavam fudendo na grama”.
                  Risadas.
                  Levam-nos a uma sala no subsolo e perguntam pelo oficial de dia. Está dormindo e deixou ordens para não acordá-lo.
                  Decresce a minha importância, vem o sargento de dia. Examina nossos documentos, olha com olhar inquiridor e duro, e sai, carregando os documentos, deixando-nos sós, eu e L..
                  Antes que fale alguma coisa aponto o teto e as paredes, o mobiliário, deixando claro que deve haver aparelhos de escuta.
                  Querem ouvir o que conversaremos, e me arrepio: daqui a pouco concluirão que estávamos só disfarçando, observando-os antes do atentado terrorista que praticaríamos, talvez dinamitando o monumento, nós dois sozinhos, possivelmente com a ajuda de gente do partido.
                  Não estranhe. Esse é um tempo de loucura desvairada.
                  Permanecemos calados por aterrorizantes e infindáveis minutos, certos de que estão tentando nos ouvir e, legítimo herdeiro, por genética e exemplos, de uma família de jogadores de pôquer, resolvo blefar.
                  Falo, quase grito, com convicção: “vovô vai ficar puto, vai prender meia dúzia deles, acordar ele a essa hora...”
                  L. entende, ensaia uma boa gargalhada, mas se contém a tempo e fica séria: “como ele vai saber que você está aqui?”
                  “Falei à mamãe que vinha ao museu. Minha família sabe. Se acontecer alguma coisa foi aqui. Vou pedir pra ligar pro vovô.”   
                  Parco, estreito tempo depois entram dois dos que nos prenderam.
                  Agora mais cinco. Todos olham para L. como cachorros no cio. Fazem uma série de perguntas e afirmações despropositadas. Cantam loas ao poder militar, e percebo onde querem chegar.
                  É imensa a minha dificuldade para conter o riso, as gargalhadas.
                  Controlo-me para não dar cambalhotas e pulos na minha mal contida estupefação diante do hilário no seu mais alto grau de aberração: não seremos enquadrados por atentado ao pudor, mas na lei de segurança nacional: estávamos fazendo sexo em área militar.
                  No futuro dirão que sou mentiroso, exagerado na minha ânsia de desmoralizar os gorilas.
                  Peço para telefonar, preciso dar um telefonema.
                  Para me intimidar, o mais corpulento afirma: “advogado? Advogado aqui não vale. Você está numa seção militar, advogado é babá de civil, aqui não vale nada.”
                  “É pra minha família que quero ligar, quero falar com a minha família”.
                  Trocam olhares preocupados, me dão a certeza de que escutaram.
                  Percebo insegurança.
                  “Espera um pouquinho que o sargento vai levar um lero com você”, a cara cínica de L. ameaçando rir e cagar tudo.
                  Entra mais um, me chama, o sargento está esperando, “sente-se aí, o senhor tem algum militar na família?”
                  “Desculpe sargento, mas me reservo ao direito de não responder, questão de segurança, só a um oficial superior, é a ordem que tenho”, e entra um dos que ficaram com L.
                  Cochicha no ouvido do sargento, ar paternal, conciliador: “o senhor deveria ter mais precaução, vir namorar aqui no aterro a essa hora, esses ripongas maconheiros, o senhor sabe, eles roubam os transeuntes para comprar drogas, o nosso serviço é de repressão e proteção ao cidadão e...” Lero-leros e tra-la-lás depois, “olha os seus documentos e os da moça. Juízo, ouviu?”   
                  Daqui a pouco perguntarei a L. o que conversaram enquanto eu estava na sala do sargento, “me perguntaram quem era o teu avô.”
                  “E aí?”
                  “Eu disse que não sabia exatamente, mas que o velho só circulava cercado de batedores de motocicletas, que deveria ser o fodão do quartel general e eles começaram a me tratar por senhora...”
                  Ah! Então foi isso...
                  Falar nisso, essa semana vou visitar o vovô. De tarde porque de manhã está trabalhando, fiscalizando o comércio e averiguando as denúncias recebidas, ele é fiscal da saúde pública.


In “Não Haverá Mais Natais”, romance autobiográfico.

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