quarta-feira, 22 de maio de 2013

ENTREVISTA COM O AUTOR DO LIVRO "GARIMPO NA GAVETA" 09/07/08

"ENTREVISTA CONCEDIDA EM 09/07/08, NA SEMANA DE LANÇAMENTO DO LIVRO “GARIMPO NA GAVETA”.
SENTAMOS COM O FRANCISCO COSTA, OU COM O PROFESSOR, COMO AS PESSOAS CARINHOSAMENTE O CHAMAM, NA SUA CASA, ATELIER, ESCRITÓRIO E ESTÚDIO, JÁ QUE ELE JUNTOU TUDO EM SEU SÍTIO, EM GUARATIBA, DE ONDE PASSOU A SAIR POUCO.
O ARGUMENTO FOI QUE UMA ENTREVISTA ALAVANCARIA A VENDA DO LIVRO E ABRIRIA AS PORTAS DAS GALERIAS.
COMBINAMOS QUE SÓ PERGUNTARÍAMOS SOBRE O SEU TRABALHO, UMA VEZ QUE O POETA E ARTISTA PLÁSTICO EVITA FALAR DE SI E DA FAMÍLIA, PRINCIPALMENTE DE TRÊS OU QUATRO ANOS PARA CÁ.
ESSA POSTURA, MUITO PESSOAL, FAZ PARTE DE UMA INTELIGENTE ESTRATÉGIA: POR SER MULTIMÍDIA (FAZ PRODUÇÃO E APRESENTAÇÃO DE VARIADOS PROGRAMAS NO RÁDIO, ESCREVE, PINTA, DÁ AULAS E PALESTRAS...), NÃO FALAR DE SI É DAR ASAS À IMAGINAÇÃO DE QUEM O OUVE OU VÊ, PESSOALMENTE OU ATRAVÉS DO SEU TRABALHO.
MAS ELE NOS DEU MOLE. SENTAMOS E... CONVERSAR COM ELE É APRENDER. SEMPRE.
APROVEITEM O PAPO, NA ÍNTEGRA."
(Os Editores)
G- Antes de qualquer coisa, o que eu quero registrar é a dificuldade de conversar com você. Numa olhada rápida nos originais dos seus livros, eu contei mais de setenta citações, além de você ser um cara muito articulado para falar. Você se considera um intelectual?
F – O que é que você entende por intelectual? Se for um cara que pensa permanentemente a vida, o mundo, as pessoas, sim, talvez. Agora, se for aquele cara que sabe tudo, o erudito, o que tem a solução pra tudo, aí não.
Sou normal, comum, vulgar como qualquer outra pessoa preocupada com as coisas práticas e imediatas, com o dia-a-dia.

G – Fala um pouco da sua infância, das suas origens.
F – Sou filho de família pobre, bem pobre, mas não miserável. Sou de um tempo em que havia ricos, remediados, pobres e miseráveis. Agora acabou o pobre. Você é rico, é classe média ou está na miséria, dependendo do bolsa-família, vendo os filhos marginalizarem-se.
Tive, o que considero uma grande vantagem, a felicidade de ter nascido antes do computador e da televisão, o que me obrigou, como a todos da minha geração, a ter um cérebro funcional, não no sentido da inteligência, mas da criatividade e da necessidade de não ser solitário, auto-suficiente.
Não tive a oportunidade de ser telespectador compulsivo nem periférico de computador, o que me obrigou a fazer amigos e a criar os meus próprios brinquedos e brincadeiras, e ler muito.
Aliás, o maior estrago que a televisão e o computador fazem é roubar o tempo dos sonhos, das viagens mentais, aqueles momentos em que ficamos sozinhos, privados, refletindo o mundo.

G- Você não acha que o computador é uma ferramenta preciosa?
F- Se você considerar só uma ferramenta, sim. Se você gastar com o computador o mesmo tempo que gasta com outras ferramentas: alicate, martelo, caneta, pincel, lápis, vassoura, instrumentos musicais, enxada... Sim. Mas quando você gasta metade do seu tempo com tela e teclado, e do tempo restante você tira a maior parte para dormir e comer você está abrindo mão de viver a realidade real, tanto material e psicológica quanto afetiva e espiritual, para viver uma realidade virtual, de mentira, alheia.
É o cérebro eletrônico substituindo o seu, só que ele vem sem coração.

G- Vê televisão?
F- Vejo.

G- O que é que você vê?
F- Tenho tevê por assinatura, então raramente assisto os canais abertos: Globo, Band, SBT...

G- Sim, mas que tipo de programação?
F- Vejo muitos documentários, entrevistas, musicais...

G- Novelas.
F- A das oito, às vezes. É tanta gente comentando, tanto espaço desperdiçado nos jornais e revistas que acabo me interessando; aí, de vez em quando assisto.
Eu durmo muito cedo e acordo também muito cedo. Quando a novela das oito acaba, pra mim já é madrugada, já estou no último sono.

G- Filme de sacanagem.
F- De vez em quando vejo.

G- Pra aprender?
F- Não. Pra não esquecer.

G- Mas esses programas são as duas, duas e meia da manhã.
F- É a hora em que acordo. Às vezes acordo e ainda está dando o Jô.

G- E o que é que você fica fazendo, cara?
F- Moro sozinho e, para melhorar, num sítio retirado, de maneira que não tenho preocupações com iluminação e barulho, não há risco de incomodar ninguém. Então vivo normalmente de madrugada: desenho, escrevo, leio, ouço música, cuido das plantas, vejo televisão, penso... Vida normal.

G- E o serviço doméstico: varrer, tirar o pó...
F- Eu tenho uma secretária, que faz a faxina duas vezes por semana... O serviço doméstico não é bicho de sete cabeças, eu mesmo dou conta. Mas... Peraí, vocês vieram falar do meu trabalho e estão curiosos é em relação a mim...

G- Você está com uma série de exposições agendadas e está de livro novo. Começamos pelo escritor ou pelo artista plástico?
F- Vocês é que sabem. Ultimamente tenho me dedicado mais às artes plásticas, se bem que o sítio tem me tomado muito tempo.
Retira essa série de exposições aí, não estou com essa bola toda não.

G- Pelo que a gente pode observar são artes plásticas mesmo, no plural.
F- É, sou muito irrequieto, tenho horror à rotina, então não consigo ficar preso a uma técnica ou a um material. Pinto com acrílica, aquarela, guache, P.V.C.... Desenho com grafite, carvão, bico de pena, pastel, cera, lápis de cor... Faço colagens... Gravuras, grafitagem, o que não quer dizer que domino todas as técnicas, sou aprendiz em tudo.
Sou muito irrequieto. Começo, paro, passo para outro trabalho, volto para o anterior...
Ultimamente tenho pintado pouco. A pintura toma muito tempo e, não sei se é por causa da idade, tenho trabalhado com muita urgência, com pressa, com vontade de fazer muito e muito rápido, então tenho pintado pouco.

G- Tem se dedicado mais a quê, ultimamente?
F- Colagem e gravuras grafitadas. Nas colagens eu só usava papel especial, próprio pra colagem e decoupage, e filme plástico. Agora tenho incorporado outros materiais: palitos, pedras, vidros, areia, material de bijuteria, P.V.C., madeira, papel de embrulho, juta, papelão... Tudo o que encontro. Tenho incorporado também técnicas de artesanato: decoupage, pátina, satiné, craquelé...
É um desafio você trazer as técnicas do artesanato para a arte sem ficar no artesanato.

G- Explica melhor essa distinção entre arte e artesanato.
F- No artesanato você tem uma técnica aprendida e repetida quase automaticamente. Na arte cada trabalho é um aprendizado, um desafio, uma superação, tanto técnica quanto de concepção.
O artesanato é quase industrial, não é pensado. Mas quando o artesão se propõe a fazer cada vez melhor e diferente, ele ultrapassa a condição de artesão e chega à de artista. Já o artista, quando domina uma determinada técnica e começa a se repetir, torna-se artesão.
O artesão repete a mesma peça mil vezes, um artista, por mais que tente, não repete o já feito, é impossível. Ninguém pintará uma outra Mona Lisa e Leonardo Da Vinci também não a repetiria.

G- O que é inspiração?
F- Não sei. Nunca ninguém respondeu a essa pergunta. Talvez seja um impulso interior, um estado alterado do cérebro ou do espírito... Não sei.

G- Desde quando você mexe com artes plásticas?
F- Desde sempre. Por causa da pobreza, ainda molequinho eu aproveitava o papel pardo que embrulhava os pães para desenhar, fazia montagens com pedras, pedaços de pau, catava coisas nas ruas...

G- Do jeito que você é versátil, ou irrequieto, como você diz, nunca tentou a escultura ou a modelagem?
F- Nunca trabalhei com modelagem, nem experimentei. De vez em quando penso em trabalhar com resina de poliéster ou fibra de vidro, acho bonito. E trabalhar com cimento, madeira e papel machê, esculpir...
Tenho trabalhado com texturas, relevos, que é quase escultura, mas nunca sobra tempo. Mal termino uma gravura ou uma colagem e já tem outra na cabeça, me desafiando, e as esculturas vão ficando para depois.
Também tenho vontade de trabalhar com material reciclado, restos de papel e sucata, ferro velho, mas tenho que prender a soldar.

G- Quais são os seus artistas preferidos, os que te influenciaram?
F- Muitos. Gosto do Salvador Dali, do Picasso, Rafael Sanzio, Modigliani, Van Gogh... Mas que não me influenciaram ou, melhor, me influenciaram, mas não ao meu trabalho, que segue outra linha.
Os que me influenciaram no trabalho foram Mondrian, Paul Klee, Kandinski e Vazareli.

G- Ninguém brasileiro?
F- Sim, lógico: Amílcar de Castro, Ivan Serpa, Hércules Barsoti, Lizárraga, Volpi, Iberê Camargo, Hélio Oiticica, Pancetti, o próprio Burle Marx, que é mais conhecido como paisagista e botânico do que como pintor... E o Portinari, claro.
Atualmente duas mulheres me fascinam: Tomie Otake e Beatriz Milhazes.
A Tomie é japonesa, mas veio para o Brasil ainda menina. Tem muita gente mais.

G- E na literatura, como é que você começou a escrever?
F – No dia em que a minha mãe foi ter a minha irmã, a que vem logo abaixo de mim, um ano e pouco mais nova, a mulher de um poeta, J. G. de Araújo Jorge, também estava internada na mesma maternidade, e o J. G. autografou um livro para a minha irmã, Meu Céu Interior, que existia até pouco tempo atrás, não sei que fim levou.
Eu fui alfabetizado pela minha mãe, entrei na escola pública já na segunda-série. Não entrei na terceira porque a direção da escola achou que eu era muito pequenininho, muito esmirradinho, aí me sacanearam.
Ao mesmo tempo em que eu ia sendo alfabetizado, eu lia o livro do J. G..
Claro que eu não entendia bem, era um livro romântico pra caramba, em alguns momentos erótico, piegas, e eu só tinha cinco, seis anos, mas o ritmo, a sonoridade das palavras, as rimas... Me seduziram para sempre.
Depois fui morar com os meus avós, que trabalhavam fora e eu ficava sozinho, com três alternativas: ler, desenhar ou brincar sozinho, escutando rádio, e eu lia, incentivado pelo meu avô, que comprava revistinhas infantis: Tico-tico, Mundo Infantil, Mundo Juvenil, Luluzinha, Bolinha, Pato Donald, Fantasma, Dick Tracy,Flash Gordon, Mandrake, A Vida dos Santos Católicos... Revistinhas de passatempos, depois livros mesmo: O Tesouro da Juventude, Enciclopédia do Estudante, Monteiro Lobato, Júlio Verne, Irmãos Grimm, Andersen, as fábulas de La Fontaine e Esopo, que até hoje amo e leio com olhos infantis...
Aí me tornei leitor compulsivo, lendo de catecismos católicos a revistinhas de sacanagem, de letreiros e prospectos a bulas de remédios, tudo o que passava na minha frente, me viciei.
Eu dedicava às revistas e aos livros o mesmo tempo e o mesmo interesse que hoje as crianças e adolescentes dedicam ao computador, aos games.
Minhas Lan Houses foram as bibliotecas, com a vantagem de que os livros eu podia trazer para casa e eles não podem trazer os computadores.
Um negócio bonito e interessante: o meu primeiro voto para Deputado Federal foi para o candidato J. G. de Araújo Jorge, não por causa do livro, mas porque era do então chamado MDB Autêntico, corajoso opositor da Ditadura Militar. Bonito, não?
J. G. já morreu.

G- Eu queria saber duas coisas: primeiro: como, de onde surgem as idéias, e, segundo: como é o seu método de trabalho?
F- Não existe uma fórmula, uma regra. Pode ser a partir do trabalho de outro. Você vai a uma galeria, a uma exposição, ou assiste a um documentário na tevê, vê uma revista especializada e pensa: eu faria assim, teria feito assim, e acaba tentando, modificando. Às vezes uma ilustração, um desenho, uma foto...
Às vezes é a partir de nada. A idéia vem, a gente esboça, pensa e executa. E às vezes nem idéia tem, só a vontade, o impulso.
A gente fica olhando o material, a tela, as tintas... E o material olhando pra gente, desafiando. Aí começa.
Nesse caso a gente não consegue imaginar o resultado final, é inesperado, e a gente vira assim meio espectador, como se fosse obra de outro. É muito gostoso.
Pra simplificar: as obras de arte têm personalidade, elas se impõem, não só ao artista como ao espectador, isso é que fascina.
Você coloca uma forma, uma cor no papel, na tela, qualquer superfície, e essa forma ou essa cor começa a te sugerir outras, a exigir outras, você atende ou contraria, e se estabelece o diálogo entre o artista e a obra.
Com a música também é assim, uma frase musical exige outra, uma linha melódica se recusa a uma determinada pausa num momento e impõe a pausa em outro, é um diálogo, uma discussão entre o compositor e a obra.
Também não há método. Se está com vontade, faz; se não está, não faz. O que há é uma espécie de necessidade.
A gente sabe da necessidade de pintar ou de colar, que material e técnica escolher, como sabe da diferença entre a sede e a fome, é instintivo, não é racional.
É como se fosse um impulso que te dominasse. O mesmo para escrever.
Acredito que na música também seja assim.

G- Como você explica a diferença entre os artistas e as pessoas ditas “normais”?
F- O talento, que acho ser uma coisa de fundo espiritual, e a adaptação cerebral em direcionar os sentidos para um determinado tipo de percepção, o trabalhar de maneira diferenciada as informações recebidas.
O talento é inato e o uso do cérebro e dos sentidos é aprendizado, prática, insistência, repetição.

G- Vamos falar do talento depois. O cerebral e o sensorial...
F- A todos os sentidos estão ligados sempre dois verbos: olhar e ver, escutar e ouvir, cheirar e sentir o cheiro, falar e dizer, pegar e segurar... Repare que um é ativo e o outro é passivo. O passivo fica no próprio sentido, não é processado pelo cérebro. O ativo é. Isso é uma defesa do nosso organismo.
Recebemos milhões de informações por segundo. Ainda que o cérebro tivesse capacidade de processar consciente ou inconscientemente todas essas informações, enlouqueceríamos ou não daríamos conta do dispêndio de tanta energia para o processamento, teríamos que almoçar muitos quilos de comida todos os dias, ou absorver energia diretamente pela pele.
Assim, olhamos tudo o que nos rodeia. Nesse momento você está prestando a atenção em mim, está com o olhar na minha direção, e o que você está olhando? O meu rosto, a minha blusa, a poltrona onde estou sentado, o meu cabelo, a parede atrás de mim, os meus movimentos, as expressões faciais, a claridade da janela... Mas você só tomou consciência disso porque eu disse, antes você só estava prestando atenção no meu rosto, quer dizer, você estava olhando tudo, mas só estava vendo a mim.
O mesmo para o som. No momento em que você me entrevista você escuta a minha voz, um carro que passa, um cão que ladra, vozes de outras pessoas, um objeto que cai, um telefone que toca, um avião passando, mas só ouve a minha voz.
O cérebro funciona assim, só registra o que é do nosso interesse, da nossa vontade ou da nossa necessidade. O resto é deletado, vai para a lixeira, no subconsciente, para usar um vocabulário atual.
No artista o uso desses verbos ativos, a quantidade de registros no cérebro, conscientemente, é maior, bem maior, do que nos que você chamou de “normais”.
Um músico escuta todos os sons que escutamos, mas ouve muito mais sons que nós, na intensidade, na quantidade e na diversidade. Um artista plástico olha tudo o que nós olhamos, mas vê muito mais, enxerga mais cores, esmiúça mais as formas... Acho que é isso, pelo menos é o que deduzo.
É o mesmo mundo para todos, a mesma realidade, mas percebida de maneiras diferentes.
É como se fosse um banquete de mesmo cardápio para todos, só que uns comem mais e outros comem menos, na quantidade e na variedade. Mas é o mesmo banquete e o mesmo cardápio, não há privilégios nem privilegiados.

G- Uma afirmação que quase todos os artistas fazem é de que começar uma obra é fácil, o difícil é terminá-la. Quando é que você considera que terminou um trabalho?
F- Considero um trabalho acabado quando me desinteresso por ele. Se estiver bom, assino. Se estiver faltando alguma coisa ou eu não considerá-lo pelo menos razoável, encosto, até o interesse voltar.
Às vezes é o contrário, há excessos. Aí você tem que sair podando.

G- Dando bicada em tudo que é canto, a pergunta óbvia: já tentou a música?
F- Tentei. Quando criança, tentei aprender flauta e requinta, depois violão. O meu talento para a música é zero. Não tenho o menor ritmo, não tenho memória musical. Eu aprendia uma música, executava e no dia seguinte não me lembrava, não conseguia nem dar a primeira nota.
Com muita dificuldade consigo ler uma partitura, só em clave de sol, mas se mandar executar não sai nada e, para piorar, sou estupidamente desafinado, de voz ridícula.
Quem me ouve no rádio, aquele vozeirão, deve imaginar que canto bem. Se soubessem... Sou desafinado até para tocar campainha no portão dos outros.

G- O que é requinta?
F- É um instrumento semelhante ao clarinete, só que menor e de som mais agudo.

G- Você se depreciou tanto em relação à música que serei indiscreto: frustrado?
F- Mais ou menos. Eu não gostaria de ser um cantor ou um músico profissional, não gostaria de compor, mas dedilhar um violão ou um teclado, sim. Tanto que tenho uma flauta, um teclado e um violão, mas não toco nada.
É frustrante sim. Só consigo algum ritmo e alguma sonoridade escrevendo poesia.

G- Você realiza praticamente tudo o que quer: pinta, desenha, escreve... E no entanto se confessa absolutamente cego para música. Eu te pergunto: o que é talento e de onde vem, é genético? Na sua opinião o talento é inato ou adquirido? Depende de quê?
F- O talento é inato, você nasce com ele ou não. Não é genético também não. Compare o Edinho com o pai, o Pelé. Nada a ver. O filho do Portinari é só o curador do museu com as obras do pai.
Vê só, eu tenho um irmão, quer dizer, a mesma origem, a mesma carga genética, que toca diversos instrumentos, rege, faz arranjos, compõe, lê partituras como a gente lê textos... Brinca, faz o que quer com a música, e no entanto é absolutamente incompetente para desenhar um círculo a mão livre, enquanto eu tenho alguma facilidade de trabalhar com as mãos e sou um a nulidade absoluta para a música, não identifico uma única nota de ouvido.
A minha experiência de educador – são quase quarenta anos dentro de escolas, me provou que já no prezinho, aos quatro ou cinco anos de idade, a criança mostra a que veio: umas são profundamente musicais, outras têm uma enorme facilidade para o manuseio do lápis, para o desenho, outras são bem falantes, ainda outras comunicam-se pessimamente por quaisquer meios mas tem corpos bem conformados e aptidão para a prática de esportes, há as que naturalmente lideram e as que, também naturalmente, acompanham... Ninguém fica artista, intelectual ou atleta, nasce.
O aprendizado também não forma talentos. Desenvolve, dá as ferramentas para o talento se exercer plenamente, mas não cria talentos.
Se você pegar um cara ruim de bola e colocá-lo numa boa faculdade de educação física, se depois ele fizer mestrado, doutorado, pós doutorado, certamente ele se tornará um expert em futebol, mas jamais será um Romário, um Zico, um Maradona.
Esses caras já nasceram craques, seriam os mesmos craques ainda que nunca jogassem num grande clube.
Isso nos mostra dois crimes.
O primeiro é deixar crianças abandonadas, fora das escolas. Quantos talentos perdidos, ou você acha que gerenciar uma boca-de-fumo ou chefiar uma quadrilha é mais fácil que gerenciar uma empresa ou chefiar uma equipe de trabalho ou de estudos? Acho até que é mais difícil.
E o segundo é o modelo da escola que temos no Brasil, no terceiro mundo, que privilegia o mercado de trabalho, que só alfabetiza, amestra, ao invés de fornecer as ferramentas que permitirão o desenvolvimento da criança, a transformação daquela criança num homem pleno, integral, senhor de todas as suas potencialidades.
É uma lástima, um crime.

G- O aprendizado sem talento leva a algum lugar?
F- Leva, mas só até um determinado ponto, daí não passa. Um sujeito que não tenha talento para o futebol, mas que gosta de jogar e está sempre jogando, poderá se tornar o craque no clube do bairro, no time da escola, mas jamais jogará numa Copa do Mundo. Um corredor sem talento, mas com técnica desenvolvida, poderá ganhar alguma notoriedade e conquistar alguns títulos, mas jamais baterá recordes ou correrá numa Olimpíada.
O mesmo com os artistas, o cara até pode compor uns pagodinhos, uns fanquinhos, mas jamais chegará à música erudita, seja um rock ou uma sinfonia.
Um artista plástico poderá vender as suas obras em algumas feiras de arte e artesanato, até em algumas galerias, mas certamente não estará numa Bienal Internacional.
É assim pra tudo. Tem mulher que faz comida com um amor, um carinho, uma dedicação... E não fica gostosa. Tem mulher que não está nem aí, chega na cozinha, vai misturando os ingredientes no olho, quase que automaticamente, e não erra nunca, faz uma comida deliciosa.
É assim mesmo, cada macaco no seu galho. Provavelmente essa boa cozinheira é uma péssima lavadeira e essa má cozinheira é uma excelente mãe. É uma questão de talento, de aptidão. O que seria do azul se tudo fosse verde?

G- E o talento sem aprendizado, sem prática?
F- É um desperdício. Você já imaginou que somos quase duzentos milhões de brasileiros... Quantos Robertos Carlos, quantos Romários, Danieles e Diegos Hipólitos, Gugas, Chicos Buarques, Lulas, Portinaris, Carlos Drumonds nasceram, viveram e morreram no anonimato? Quantos estão no anonimato? Não tiveram chance, oportunidade.
Como estamos falando de artes, preste atenção: no Brasil há quase nove milhões de artesãos. Observando as obras de boa parte deles, você percebe que são mais que artesãos, são artistas, têm obras que em nada ficam a dever aos maiores artistas internacionais, consagrados, mas o que é que acontece? Criam uma ou duas obras de arte, para atender as suas necessidades pessoais, e durante o resto do tempo produzem objetos utilitários, terrinas, tigelas, alguidás, moringas de barro, ou tornam-se santeiros, esculpem ou modelam santos, para atender o mercado, para sobreviverem. É um genocídio cultural.

G- Voltando à questão anterior, que não me parece esgotada: entramos num beco sem saída: se o talento não é genético mas é inato...
F- Sei onde você quer chegar. Tem saída sim. Sou convictamente reencarnacionista. Acredito em Deus, claro, mas seria mais fácil eu negar a existência de Deus do que a necessidade da reencarnação. É a única maneira de explicar o Universo e a manifestação da vida. Não há outra saída...
A inteligência se desenvolve na matéria como a concebemos, mas está fora da matéria. Não aceitar isso é ser materialista. Como não está na matéria, tem que existir antes da organização do nosso organismo e, pelo mesmo motivo, não pode sumir com a desorganização do nosso organismo.
Você é o somatório de todas as suas experiências, nesta e em outras existências terrenas. O aprendizado não parte do nada, mas de onde você parou.
Como Deus seria justo dando talento a uns e a outros não? Isso fere o senso de justiça. Talento é conquista.

G- Mas não é o que a ciência e as religiões aceitam...
F- Isso é um equívoco, uma inverdade. Cada vez mais a ciência pesquisa a manifestação da inteligência após o que convencionamos chamar de morte, sem entrar no mérito de reencarnar ou não, claro, e as evidências da continuidade da consciência são cada vez maiores e melhor aceitas.
Entre as chamadas ciências de ponta, o que mais se pesquisa é a origem e a estrutura do Universo, a hereditariedade, a possibilidade de vida em outros planetas e a continuidade da consciência após a morte.
Não estou falando de religiões nem de religiosos. Estou falando de cientistas, boa parte deles materialistas, ateus.
Quem saca a ciência para negar ou desconhece o que está sendo pesquisado ou está de má fé.

G- Tem também a questão da tradição. A gente...
F- Questão econômica. Quem domina a economia domina todo o resto, toda a cultura.
Quais são as religiões nos países dominantes? Cristianismo, Judaísmo e Islamismo, as três únicas religiões monoteístas e não reencarnacionistas, e de origem comum, os manuscritos do Antigo Testamento.
Isso sem contar com a história dos países do terceiro mundo, todos colonizados por ingleses, holandeses, franceses, espanhóis e portugueses, todos países de maioria cristã, e que impuseram, pela educação ou a ponta de faca, o monoteísmo não encarnacionista.
A religião, como todo o resto, é uma questão cultural, imposta pelo colonizador.
Os americanos nos impuseram, junto com os dólares, muitas palavras no vocabulário, a calça jeans, o chicletes, os shoppings, o hot-dog, o rock, a música gospel e o protestantismo renovado, tanto quanto os portugueses nos impuseram bacalhoada, tamancos, idioma e catolicismo.
Os países colonizados pelo Japão são todos de maioria Budista. Será acaso?
Então nos passam essa herança cultural como verdade absoluta. Agora, se nos despirmos dos preconceitos e examinarmos as demais religiões, veremos que mais de dois terços – isso mesmo, dois terços da humanidade é reencarnacionista, aceita a reencarnação.
Para fundamentar mais ainda, deveríamos buscar as religiões puras, as que não sofreram interferência dos colonizadores.
Se estudarmos as religiões dos aborígenes australianos, dos índios brasileiros ainda não aculturados, das mais diversas tribos africanas, dos esquimós, dos polinésios espalhados nas mais longínquas e oceânicas ilhas... Veremos que são todos reencarnacionistas. Será acaso?
E para encerrar de vez o assunto: se examinarmos os manuscritos contemporâneos dos primeiros cristãos veremos que eram todos reencarnacionistas. Constantino é que impôs as idéias hoje imperiais, inclusive exterminando os gnósticos e os essênios, que eram reencarnacionistas, sem contar que diversas denominações cristãs, islamitas e judias são reencarnacionistas.
São dois terços da humanidade acreditando que não somos daqui, estamos aqui e provavelmente retornaremos.
Releia a Bíblia procurando analisar por este ângulo e veja quantas passagens mostram isso.
Os caras, que estão ganhando muito dinheiro, diga-se, fazem tanto exercício para disfarçar o óbvio que chegam a pregar o que não faz o menor sentido e até contradiz o texto.
É muito desconhecimento, muito fanatismo, que cega e emburrece.

G- O cara se esquentou.
F- Não, não me esquentei não. Todo mundo tem o direito de crer em um, nenhum ou vários deuses. Todo mundo tem o direito de acreditar em santos ou não. Todo mundo tem o direito de acreditar na reencarnação ou não. Só que, ao se manifestar, deve afirmar “esta é a minha convicção pessoal”, “sou assim porque os meus pais eram”, “acredito que seja assim”, ou porque “o padre falou”, “o rabino falou”, “o pastor falou”...
Só não pode é sacar pra mim “esta é a verdade e quem não a aceita é um jumento ou está a serviço do diabo”.
O cara lê um versículo, interpreta de acordo com a orientação do seu líder religioso, nem sempre alfabetizado, e se acredita proprietário da verdade absoluta.

G- Como você imagina Deus?
F- Não imagino, é perda de tempo. Sou muito pequenininho, muito limitado em todos os aspectos, não faço a menor idéia.
Respeito, cultuo e sou grato, mas sem questionar ou procurar conhecer, senão vou cair na tentação de faze-lO à minha imagem e semelhança.
Se as formigas acreditarem em Deus, certamente O imaginarão um formigão poderoso. Os elefantes O acreditarão o criador de todas as manadas de elefantes do universo, o de tromba mais bela e poderosa... E aí, quando eu falar de Deus usarei expressões do tipo “as mãos de Deus”, “o olhar de Deus”, o “hálito de Deus”, materializando Deus, transformando-o num Francisco Costa melhorado.
Deus é Deus e pronto, longe da minha simples concepção de homem, como afirmei em um de meus poemas.

G- E Jesus, como você imagina Jesus?
F- Jesus é a mais bem acabada forma humana, o protótipo do homem perfeito, não degenerado, a antítese de cada um de nós, cofres pensantes.

G- Não, eu estou falando fisicamente.
G- Fisicamente? Como um homem igual a mim ou a qualquer outro, sem buscar feições, altura...
Só temos em nossas cabeças o que já passou pelos nossos sentidos.
O que não vimos, ouvimos, cheiramos, colocamos na boca ou apalpamos não existe, não conseguimos imaginar, a menos que tenha sido descrito por outra pessoa que tenha tido esses contatos. É o conhecimento indireto.
Como as religiões vivem de tradições, as informações são todas indiretas, salvo nas ditas esotéricas, onde há experimentação.
Quer ver? A nossa imagem de Jesus é a de um homem grande, forte, de cabelos longos, sedosos, castanhos, lisos, olhos azuis, pele morena clara...
Vá na Rua da Alfândega e observe um judeu, um árabe... São assim? Jesus era semita, judeu: estatura mediana, pele bem queimada pelo sol do deserto, olhos castanhos ou negros, pouca altura, cabelos grossos, encaracolados, para proteger do sol, e secos, por causa da desidratação; nem muito longos, para evitar o acúmulo de areia e poeira, nem muito curtos, para proteger do sol...
Olha um árabe, olha um judeu!
A imagem que temos de Jesus é a imagem criada pelos pintores da Idade Média, que o retrataram imaginando um homem fisicamente bonito, tentando associar a perfeição física à perfeição espiritual, e isso passou a ser uma espécie de consciência coletiva, de memória coletiva, o que necessariamente não quer dizer verdadeira.
É inclusive uma imagem preconceituosa, racista: por que associar a beleza e a perfeição física e espiritual aos brancos?
Por isso foram, na época, e um pouco menos hoje, impiedosos com os negros e os índios... Não eram brancos como Jesus e eles próprios, então eram inferiores.
A Igreja Católica tinha Bulas Papais esclarecendo aos fiéis que não era pecado escravizar os negros porque, por serem negros, não tinham alma.
Em religião tudo é assim, tradição, hábito, repetição sem questionamento.
Quer um outro exemplo? Em todo lar católico há uma imagem da última ceia de Jesus... Em estampas, metal fundido, em calendários, folhinhas, panfletos... É uma imagem sagrada, um ícone cristão, mas, se você observar, há colunas, cortinas, o cômodo é enorme, ladrilhado, a mesa, imensa... O que não condiz com os hábitos e os ambientes freqüentados por Cristo, simples.
O que a gente vê na Santa Ceia é um cômodo de um palácio medieval, europeu, com todo o luxo da época.
Repare que não há ninguém de costas, está todo mundo sentado em um mesmo lado da mesa, como se estivessem posando para uma fotografia, e Jesus não está na cabeceira, como seria óbvio.
E não poderia ser diferente. A Santa Ceia é a reprodução do quadro de mesmo nome, de Leonardo da Vinci, pintado mil e tantos anos depois da passagem de Jesus pela Terra. É a simples concepção artística do fato, mais nada.
Aí, se você questionar é herege, ateu, diabólico...
Como Deus não colocou um aparelho de CD na minha cabeça, para que eu reproduzisse o que fosse programado... Questiono, até porque se isso fosse pecado Jesus não teria questionado o Antigo Testamento, as suas tradições, o que lhe ensinaram como verdades.
Vamos mudar o rumo da prosa?

G- Você lê muito. Do que é que você gosta, o que é que faz a sua cabeça?
F- Já li mais, bem mais. Gosto da chamada ciência de ponta, do que estão investigando agora e só será vulgarizado daqui a dez, vinte anos e só será matéria curricular daqui a trinta, quarenta anos.

G- Mas... Que assuntos?
F- Esses que eu já falei: a origem e a estrutura do Universo, Genética, Evolução, sobrevivência da consciência após a morte, possibilidade de vida em outros corpos siderais, Geologia, Paleontologia... Interesso-me muito por Ecologia também... Gosto de assistir documentários sobre fauna e flora. Gosto muito também da História das Religiões. É isso. No mais é livro, revista, catálogo sobre artes plásticas.
Já li mais do que leio hoje. O cavalete, a prancheta e a bancada me ocupam mais. Além do sítio, que me consome muito tempo e esforço físico.

G- Não lê ficção?
F- Leio, muito pouco ultimamente. Já devorei livros, no passado. Os clássicos nacionais, universais, os gregos... Li muito. Eu era viciado.

G- Os livros da sua vida.
F- É difícil. Foram tantas boas histórias... Talvez tenha sido O Velho e o Mar, do Hemingway, Dialética da Natureza, do Engels, e Cem Anos de Solidão, do Gabriel Garcia Marques.
O Velho e o Mar porque o li quando tinha treze, quatorze anos, e encantando pensei: eu também vou escrever histórias. Foi o livro que destronou Júlio Verne e Monteiro Lobato, que me deu maturidade nas preferências literárias.
A Dialética da Natureza porque foi o livro que me permitiu iniciar uma visão holística da natureza, a não separar, compartimentalizar as coisas, a perceber a dinâmica de tudo, a impossibilidade de se estabelecer categorias absolutas, funções determinadas às coisas, tanto vivas quanto minerais, tanto terrestres quanto siderais...
E o realismo mágico do Gabo é fantástico, maravilhoso. Não foi por outro motivo que Cem Anos de Solidão levou o Nobel de Literatura. É um livro maravilhoso, uma síntese histórica da América Latina.

G- Explica melhor essa “visão holística”.
F- Quando a gente define, a gente isola: bicho, planta, homem, mulher, planetas, morro, estrelas... Cria matérias especializadas, específicas: língua, história, geografia, matemática, química, arqueologia... Quando qualquer coisa é uma diferente manifestação do mesmo, da mesma coisa, o universo. Há uma unidade em tudo, nada é isolado.
Esse papo de ele é artista, cientista, religioso, filósofo... É uma compartimentalização do homem.
Para o médico o mundo é um grande pasto de doenças, para o engenheiro é algo a ser transformado arquitetonicamente, para o economista é algo a ser transformado em bens, para o matemático é um conjunto de equações, para o químico é um bem arranjado conjunto de átomos...
O mundo é isso tudo e mais, tudo o que conhecemos dele e o que ainda vamos conhecer.
Fugir disso é se diminuir e diminuir o mundo.
No dia em que o homem se souber só uma pequena, frágil e limitada parte do todo é provável que melhore e cresça.

G- Vai mais fundo que isso é interessante.
F- O Isaac Asimov ou Arthur Clarke, acho que o Arthur, afirmou que somos poeira de estrelas.
Se você considerar que de original só existe os átomos de Hidrogênio, que todos os demais elementos: carbono, oxigênio, ferro, zinco, nitrogênio... São formados no interior das estrelas, e que o seu corpo é formado por esses elementos, você é poeira de estrelas, o que há em você foi parte de uma estrela um dia.
Como todo sistema energético é de compensação, toda movimentação de energia é uma ação que gera uma reação, não há uma única folha que caia de uma árvore sem que não gere uma alteração em algum lugar. Nossas palavras retumbam por todo o universo.
Isso chega a ser bíblico, tem versículos que afirmam mais ou menos isso.
O ser humano é que não tem essa visão abrangente das coisas. Vê, analisa e entende por etapas, sem criar uma idéia do todo, sem ter uma compreensão holística da realidade, da natureza, do universo.
E aí a gente se separa do resto, não percebe que tudo o que nos rodeia, aqui, a metros, a centímetros, e além, a bilhões de anos luz, tudo, é continuação de nós mesmos, parte de nós, porque somos só uma infinitesimal parte de todo o resto.

G- E poesia. Somos tão pobres de poesia...
F- Como diria o Juvenal Antena, epa, epa, epa. A gente começa em Castro Alves, passa por Bilac, Casemiro de Abreu, e chega até Cecília, Quintana, Ledo Ivo, Bandeira, João Cabral, Drummond, Vinícius e você diz que a gente é pobre.

G- Não é no sentido de poucos ou maus poetas, mas de livros publicados, da quantidade de leitores.
F- O homem moderno tem pressa, a gente trocou o almoço em grupo pelo fast food , o sanduíche. A gente não ama, faz amor. A gente não conquista ou é conquistado, a gente fica. É tudo muito rápido, e poesia não dá para ler na hora do almoço, entre uma garfada e outra, ou vendo televisão.
Poesia é para ser sentida, analisada. É um negócio assim meio mediúnico, a gente tem que viver, vivenciar o poema.
O homem moderno perdeu tempo para a poesia porque perdeu tempo para si mesmo.
O negócio é notícia superficial, imprópria para a reflexão, de preferência não escrita, lida pelo cara do telejornal.
É aquilo que eu falei dos verbos: o homem moderno não ouve, escuta; olha mas não vê, fala e não diz.

G- E a sua literatura?
F- Minha literatura não, que não chega a tanto. Das coisas que escrevo.

G- Você faz poesia, contos, novelas...
F- Não, só poesia e conto. Novela não. Romance então...

G- Vamos repetir perguntas: como é que nasce, seu método de trabalho...
F- Vale tudo o que eu já disse: alguma coisa que alguém fale, uma situação, um estado de espírito...
Às vezes um poema vem inteiro, às vezes só vem o último verso, às vezes o primeiro, às vezes uma estrofe, às vezes você parte de outro poema que outra pessoa escreveu, às vezes nem tem nada na cabeça, fica olhando pro papel, pra tela do computador, o papel e a tela olhando pra você, aquela situação angustiante... E você desenvolve.
No conto já é diferente, você cria ou toma conhecimento de uma situação e começa. Aí a própria história, os personagens se emancipam e te guiam.
É isso, um impulso, que o pessoal chama de inspiração, e trabalho, nada demais.

G- E quando vem esse impulso, essa inspiração?
F- Não tem quando. De manhã, de tarde, de noite, de madrugada, no ônibus, no volante, na sala de aulas, na cama, em qualquer lugar ou a qualquer momento.
Vem, a gente anota num papelzinho e vê se aproveita ou não, depois.

G- Vamos então falar do seu livro. Por que só agora, com mais de cinqüenta anos você resolveu publicar um livro, e que critérios você usou para selecionar os poemas? Pelo que a gente sabe, você tem material para já ter publicado pelo menos uns dez livros.
F- Dez não, é exagero. Estão todos prontinhos, inclusive ilustrados, em disco. É só aparecer algum editor.
Os critérios foram de gosto pessoal, foi uma garimpada na gaveta mesmo: isso é pepita, isso é pedra comum, isso tem algum valor, isso não vale nada. E o grande motivo foi o meu bebê.
Você sabe que eu tenho um filhinho de um ano. Não irei vê-lo adulto, como estou vendo os outros quatro, dificilmente o verei adolescente e, não sei se por vaidade, orgulho ou amor, quero que ele saiba do que pensei, soube e fiz, o que eu fui, e nada melhor que a poesia, que é quando a gente se abre incondicionalmente, sem mentiras, sem medo de se expor e, principalmente, sem nenhuma intenção que não a de se livrar de sentimentos ou situações incômodas, que mostram a sua maneira de ser.
Esse livro é um recado - e espero que esteja longe, póstumo, para o meu filho, o Leone.
Os outros assistiram in vivo.

G- Quer dizer que não pretende publicar outros livros?
F- Pretendo publicar um de contos: Samaritana, no início do ano que vem, outro de poesia, que está com título provisório: Cancioneiro da Terceira Idade, um sobre drogas, dirigido aos pais e um romance meio livro de memórias, que está com o título provisório de UM MENDIGO NO SOPPING, uma biografia meio imaginária.
Também pretendo colocar toda a minha obra na rede, na Internet.
Esses são os meus planos editoriais no momento. No mais é expor, estou com muita fome de formas e cores.

G- Fala um pouco do Cancioneiro...
F- Você sabe que eu estou chegando na terceira idade, embora eu só me lembre disso quando me olho no espelho ou alguma mulher alvo de cobiça me chama de senhor ou, pior, de tio, porque o espírito, imortal, não tem idade.
As experiências mudam a nossa conduta e a maneira de agir e opinar, nos dão maturidade, nos disciplinam, mas, não importa a idade, continuamos olhando o mundo com olhos de meninos.
Se eu não estiver diante do espelho e ninguém me chamar de senhor eu não me toco que tenho mais de meio século de idade.
As preocupações é que mudam: a morte passa a ser uma coisa concreta e próxima, começa a angústia do que nos espera depois, as saudades antecipadas dos que vão continuar as jornadas por aqui...
A sensibilidade e o posicionamento poético se ampliam e escrevendo a gente reflete isso.
Vai ser um livro para os meus companheirinhos das filas de idosos.

G- Embora você diga que garimpou a gaveta, a gente pode separar os seus trabalhos em lotes e perceber a proximidade temática, estilística e, conseqüentemente, cronológica...
F- Claro.

G- Os trabalhos que me parecem ser os mais recentes falam muito de morte, de idade, de fim, urgência, falta de tempo... Conversando com você, a gente ouve e está ouvindo muito as palavras morte, minha idade, velho... Você teme a morte? Como é que você se posiciona em relação a isso?
F- Quem me conhece sabe que não estou mentindo: não temo a morte, não tenho medo de morrer.
O meu medo é de como vou morrer.
Primeiro porque tenho horror, pavor da dor física. Uma simples dor de dentes, para mim, é pior que a morte.
Segundo, por causa da minha vaidade. Não consigo imaginar alguém me dando banho ou limpando a minha bunda. É muito humilhante.
Então não tenho medo de morrer, mas de como vou morrer.
Claro que, como em todo ser vivo, o meu instinto de sobrevivência é muito grande... Enquanto eu puder protelar esse momento não tenha dúvida que protelarei.

G- Você se acha corajoso?
F- Não, senão não teria medo da dor física, do sofrimento. Sou realista e racional, mesmo nos momentos de ceticismo.
Isso está muito presente nos meus últimos poemas, nos que tenho escrito mais recentemente.
Veja, temos duas opções: a continuidade da consciência ou não.
Se a morte for o fim absoluto do indivíduo, não há o que temer, não haverá consciência, será um dormir eterno, sem sonhos, pesadelos e sem amanhecer.
Não haverá consciência, individualidade... Será o nada. Temer o quê?
Se houver a continuidade da consciência, o simples fato de você continuar existindo, ainda que em situação adversa, já será uma bênção. Você não acabou, você não morreu.
Eu não aceito esse negócio de céu, inferno, paraíso, purgatório, Deus no trono, julgando... Acredito na evolução.
Se a evolução for local, material e por acaso, só na Terra, há realmente a possibilidade de que a morte seja o fim do indivíduo, corpo e consciência.
Agora, se a evolução for uma lei universal, como parece ser o caso, criada e comandada por uma inteligência superior, que a gente convencionou chamar de Deus, aí a consciência em evolução não poderia se deter, sob pena de estar ferindo a lei, interrompendo a evolução. Aí você tem que continuar, independente do que venha a acontecer com você e que não sabemos, só especulamos, pela fé, nas religiões, e pela razão, nas ciências.

G- Ainda com relação à análise dos seus trabalhos, a gente percebe uma modificação enorme. Eu gostaria que você falasse sobre isso.
F- No trabalho plástico ou na escrita?

G- Nos dois.
F- Eu sempre fui verborrágico, tanto para falar quanto para escrever. Falei muito a vida toda: em salas de aula e auditórios, palanques, entre amigos, em casa, no rádio... Eu falava pra caramba e também ouvia muito.
Como mais da metade da minha vida vivi numa ditadura militar, toda a oportunidade que tive usei para resistir intelectualmente, falando, escrevendo ou pintando. Então o meu discurso, tanto falado quanto escrito, era duro, ríspido, seco, e a minha pintura era figurativa e de cores meio mórbidas: marrons, ocres, azuis fechados, verdes escuros...
Cheguei a pintar um quadro chamado Jedel, mistura de Jesus e Fidel, que era Jesus Cristo de jaqueta e calça jeans discursando na porta de uma fábrica.
Depois, talvez com o amadurecimento ou com o arrefecimento da repressão, não sei, me concentrei mais e a minha pintura descambou para o geométrico, um negócio bem racional.
Interessante - e só agora estou me dando conta disso, é que com a morte da minha mulher, passei a falar pouco, muito pouco, e perdi a paciência de ouvir.
Tenho escrito muito pouco, quase nada, falado também. A energia que eu empregava na boca e nos ouvidos parece que passou para os olhos e as mãos. A minha pintura tomou formas orgânicas e muito coloridas, como se eu só pudesse sorrir com os olhos e as mãos.
Acho que é isso, acho.

G- Onde está esse quadro?
F- Se perdeu, uma inundação acabou com ele. Como era óleo sobre compensado, encharcou, se deformou, não pude restaurá-lo. Se fosse tela daria. Aí a minha mulher jogou fora, pensou que eu não quisesse mais.
Naquela época eu não tinha dinheiro para comprar telas, então pintava sobre compensado e sobre eucatex usados, que eu ia conseguindo por aí.
Uma coisa que está passando e não está esclarecida: só recentemente eu passei a me dedicar à escrita e aos quadros em regime full time. Antes era uma atividade ocasional e complementar.
Para criar os meus filhos eu trabalhei em tudo, fiz de tudo no mercado de trabalho, ao lado das aulas, desde os dezenove, vinte anos, que foi a coisa mais constante, mais permanente na minha vida.

G- E as mulheres, elas estão muito presentes na sua poesia.
F- Antes, de maneira erótica, carnal, orgásmica. Hoje, sensual, sentimental.
Antes eu via o corpo como a ferramenta de manipular o amor, agora vejo o amor como a ferramenta de manipular os corpos.
Como não conseguimos sair amando por aí no atacado, ficou uma poesia mais contida, mais bem comportada.

G- Muitas mulheres?
F- Menos, bem menos do que falam e mais do que mereci.

G- Mas a sua fama é de pegador...
F- Ah, é verdade! Quando criança peguei caxumba, sarampo, catapora, gripes e resfriados, piolho... Depois peguei hepatite... Aí peguei pneumonia duas vezes. Agora peguei uma cardiopatia.
Sou, realmente, um grande pegador.
Mas, sem brincadeira: isso é besteira. Como durante anos fiz programas românticos no rádio, essa facilidade de falar e mexer com artes... Aí veio esse papo, mas é só um estereótipo.
Se cada poema romântico fosse para uma mulher diferente todo compositor e todo escritor seria um colecionador de mulheres e a gente sabe que não é isso.

G- Isso que as pessoas chamam de inspiração é freqüente?
F- O trabalho sim, a inspiração não. Agora, por exemplo, estou na entressafra, não estou escrevendo nada, até dá vontade, mas não sai nada que preste. De repente pinta. No início eu ficava angustiado, achando que não conseguiria mais, mas agora já sei que é sazonal, já me acomodei.

G- A idade realmente prejudica a memória?
F- E muito, mas a memória recente, a antiga se consolida. Repara que todo velhinho esclerosado só fala de fatos que ocorreram a muito tempo, e falam com tal intensidade e com tanta riqueza de detalhes que as pessoas pensam que ele está mentindo, que é invenção. Já a recente fica muito prejudicada.
Eu passei a anotar o que tenho que fazer, senão não só não faço como brigo com quem disser que eu sabia o que tinha de fazer.
O pior é que as pessoas pensam que o teu esquecimento é por desinteresse, pouco caso, egoísmo.

G- Quais são as suas lembranças mais antigas? Sua memória é fora de série...
F- Já foi melhor... Está rateando... Olha, eu vou passar por mentiroso, mas a minha mãe ainda está viva e lúcida e pode confirmar.
Eu tinha aí por volta dos oito ou nove anos e meu avô nos prometeu, a mim e aos meus irmãos e primos maiorezinhos, que nos levaria ao Cristo Redentor.
Foi uma alegria geral e, para surpresa de todos, principalmente dos adultos, eu afirmei: “eu já fui lá”.
Começaram a me chamar de mentiroso, a dizerem que eu estava de conversa fiada, até que a minha avó lembrou aos adultos que, quando eu tinha aproximadamente uns dez meses, realmente a família havia ido ao Corcovado e o único neto nascido era eu.
Discutiram se eu estava no colo do meu avô ou da minha avó, porque a minha mãe estava grávida da minha irmã.
Descrevi imagens que suponho serem do Hotel das Paineiras. Bateu e concluíram que eu devia ter visto fotografias. Só que me lembrei não só do bondinho como da mata passando na janela, de todos os movimentos, dos rostos desconhecidos dos outros passageiros... Só meu avô acreditou em mim, como sempre.
Respeito tanto este momento que, para não quebrar o encanto, o único ponto turístico do Rio que nunca fui, ou só fui bebê, é o Cristo Redentor. Nem irei.
Esclareço que não são memórias intelectuais, racionais... Não lembro de nada do que foi dito, conversado... Só das imagens.

G- Perdoa o que eu vou dizer e me corrija se eu estiver errada, mas... Por trás desse aparente liberalismo, dessa cabeça aberta pra tudo, eu percebo ranços de nostalgia e conservadorismo. Você concorda?
F- Nostalgia? Talvez, por causa da idade. Todo velhinho é nostálgico... Conservador, sou - e muito, principalmente no meu trabalho de educador.

G- Claro que a gente não poderia deixar de falar do educador. Primeiro: você vê diferença entre professor e educador?
F- Claro, a mesma que existe entre um jogador de futebol profissional e um atleta.
O jogador treina e no dia do jogo joga. Ponto final. O atleta é atleta vinte e quatro horas por dia: controla a própria alimentação, as horas de sono, a própria cabeça... Faz do que faz o seu modo de vida.
O professor é aquele cara que profissionalmente tem informações e, através de um vínculo empregatício como outro qualquer, vende essas informações. Ponto final.
Vende informações como venderia verduras, Avon, plano de saúde, calcinhas...
O educador vive para, além de passar informações, modelar as pessoas, incentivá-las, incitá-las a serem partícipes do seu tempo, a engajarem-se num projeto de melhoria da realidade, do mundo em que vivem...
Mais que com os alunos, com o próximo, o compromisso do educador é consigo mesmo, é o seu modo de vida.

G- Por exemplo... Tome-se por exemplo.
F- Você já me viu de shorts e sem camisa pelas ruas? Nunca. Você já me viu bebendo numa birosca? Nunca. Já me viu dando carona a uma aluna ou mãe de aluna? Só se for vizinha, íntima da minha família. É uma questão de postura, de exemplo, de confiabilidade...
E não é moralismo não, porque, tabagista, erradamente fumo na frente dos alunos e, durante as aulas, no ensino médio e superior, xingo palavrões.
Em conversas informais ou no rádio estou sempre passando informações úteis, necessárias, pondo os ouvintes para pensar, mesmo que o programa seja romântico.
Eu tenho essa necessidade vital de passar para adiante as informações que tenho, então me julgo educador, mais que professor.

G- Me lembrei do lance do negro, no rádio...
Eu não ouvi, fala aí.
F- Foi no dia de Zumbi, da Consciência Negra, ou da Abolição da Escravatura, já não lembro. Se eu não me lembrar direito me corrija.

G- Zumbi.
F- Foi num sábado. Como fazia sempre, li um dos meus poemas. Como a data pedia, procurei uma canção de protesto, contra o racismo. Coloquei a música do Stevie Wonder e do Paul MacCartney, Ebony and Ivory, que é ébano, uma madeira preta, e marfim, que é branco, materiais com que se faz as teclas do piano, e, após, comecei a tecer comentários sobre o tema, mostrando da necessidade de se usar todas as teclas para executar uma música, mostrando que não há inferioridade ou superioridade apoiada na cor, que a tecla branca pode gerar uma nota que dure um segundo num momento, enquanto a negra dure meio segundo e, num momento seguinte, a situação se inverter, com a negra durando um segundo e a branca, meio, que a superioridade é sempre circunstancial, relativa, quando o telefone tocou.
Coloquei os comerciais para tocar e atendi. Um engraçadinho, pra me sacanear, afirmou: - mas preto fede!
Para assustá-lo prometi responder no ar. E imaginei a cara do infeliz com medo de eu identificá-lo, o que não fiz, claro, mas assustei.
Terminado os comerciais, retornei: - um engraçadinho me ligou e afirmou que preto fede. O que é que você acha disso?
E, com certeza surpreendendo a todos os ouvintes, continuei: - eu concordo.
Também acho que preto fede, e sorri sozinho no estúdio, imaginando a cara dos ouvintes, principalmente os negros.
- Imagine que eu tenha um encontro com uma mulher, a mulher dos meus sonhos: o que farei? Tomarei um bom e demorado banho, farei a barba, colocarei loção após barba, desodorante, perfume, escovarei os dentes... Resumindo, tratarei de esconder o meu cheiro.
Não se esqueça de que, enquanto isso, a mulher estará fazendo a mesma coisa na casa dela, escondendo o próprio cheiro.
Dei um segundinho para os ouvintes pensarem e continuei: - qual é a área maior nos supermercados, a que ocupa mais espaço e tem maior variedade de produtos? Comida. E a segunda? Higiene pessoal: sabonetes, cremes dentais, loções, desodorantes, perfumes... O que nos mostra que o mais essencial para nós é comer e, segundo, esconder o próprio cheiro.
Entendem agora porque concordo com o engraçadinho? Ele é engraçadinho não pelo que disse, que é uma verdade, mas pela conotação com que disse, pelo preconceito.
Preto fede tanto quanto branco, índio ou oriental. Preto fede porque preto é humano.
E não parei: - agora você vai me perguntar porque essa fama de que preto fede. Deve ter uma explicação, claro.
Você já entrou num vestiário depois de um jogo de futebol, depois da aula de Educação Física? É um fedor desgraçado.
E as mulheres não me venham dizer que é cheiro de homem, que homem é que fede. O vestiário das meninas é tão fedorento quanto. Entra num vestiário depois de uma partida de vôlei feminino, é igual aos vestiários do Maracanã, uma inhaca do cão.
Agora imagina uma senzala com cinqüenta, cem pessoas sem tomar banho a uma semana, não porque fossem porcos, mas porque os senhores de engenho não deixavam, era perda de tempo, diminuía a produtividade na lavoura escravista. Imagina só o cheiro, a fedentina.
Só que a escravidão terminou a mais de um século, não há mais senzalas e os negros freqüentam os supermercados tanto quanto os brancos, e ficou a má fama, mas só para os ignorantes.
E concluí: - mais uma lição, a última: todo e qualquer preconceito é manifestação de ignorância, de desconhecimento.
O preconceituoso, e seja que preconceito for, é um papagaio que repete o que ouviu sem saber o que nem porque.
E soltei mais uma música.

G- O que surpreende é que você falou isso num programa mela cuecas no sábado à noite. A galera namorando, nas boates, bares... Ouvindo. Eu acho isso...
E tome audiência!
F- Principalmente no verão, por causa das praias, da galera que vai namorar nos carros e nas pracinhas, nos quiosques. Graças a Deus, a audiência era realmente grande, recordista de telefonemas com oferecimento de músicas e pedidos de homenagens.
Teve muita festa, muito churrasco com o programa sendo a trilha sonora.
As vezes as pessoas ligavam antes do programa começar para dizer os nomes dos presentes nas festinhas, para eu citar.
Era muito legal, muito gratificante.

G- A escola. Quero que você fale da escola brasileira hoje. A educação brasileira tem melhorado?
F- Para os teóricos do que está aí soarei como profundamente conservador, mas não perderei a oportunidade.
Vamos nos lembrar da escola antiga, pública principalmente, já que sempre estudei em escolas públicas: os indisciplinados, malcriados, desatentos, vadios, desonestos eram suspensos das aulas, escreviam castigo, que a gente chamava de vezes, ficavam na escola depois da hora da saída, de castigo, os pais eram chamados na escola... Se dissessem que não iam sair de sala, o inspetor tirava à força...
Agora suspender os alunos das aulas é crime contra a economia popular, o pai está pagando.
Escrever vezes: “não devo...” é tortura, tratamento degradante. Deixar de castigo, depois da hora, é cárcere privado. Chamar os pais na escola pouco adianta. Não vêm e a criança não pode ficar impedida de assistir às aulas. Se sumir um objeto em sala de aula nenhuma mochila pode ser revistada porque é constrangimento, quem furtou tem a garantia de não ser descoberto. Se o inspetor ou o professor tentar tirar da sala a força um que tenha dito que não sai... Nossa! É agressão, violência contra o menor, gera processo, indenização, o diabo.
Na época da escola antiga, “degradante e autoritária”, uma ocorrência policial envolvendo menor de idade acontecia a cada seis meses. Agora, com a escola moderna e liberal, um a cada seis minutos. Melhorou?
Aí você abre o jornal e quase todos os dias tem notícia de professor agredido por aluno, ameaçado por aluno.
Em quase todas as escolas já está se tornando normal aluno mandar o professor ir à merda, se fuder. Aonde a educação?
O segundo é a motivação. A escola antiga tinha bandinha de música, aula de Educação Artística, grêmio estudantil, grupo de teatro... Era dinâmica, as crianças gostavam de estar lá. Agora...

G- Vamos falar da violência depois. Continua na educação que eu acho que é a sua praia. Onde nós, a sociedade como um todo, estamos falhando?
F- A escola não é um departamento fora da sociedade, ela faz parte da sociedade, e como tal reflete todas as práticas sociais, todo o comportamento, os valores da sociedade em que está inserida, as mesmas mazelas, mas deveria ser um local de resistência, de contraposição ao status quo, e não é o que acontece.
O brasileiro viveu três décadas de ditadura militar, uma época em que um cara fardado qualquer mexia com a sua mulher, você ia tomar satisfações e era preso por desacato à autoridade, era torturado, tomava porrada.
Não estou inventando isso, eu vi.
A ditadura militar passou e, talvez para compensar, fomos ao extremo oposto, a liberalidade ao extremo, a impunidade, a falta de responsabilização e a conseqüência mais imediata foi a institucionalização da corrupção em todas as suas variantes: econômica, financeira, moral, ética... De valores...
A corrupção é a instituição mais forte no Brasil hoje. E tudo isso está na escola, dentro da escola, na forma teórica e prática.
É o sistema se reproduzindo na geração seguinte, para haver continuidade.

G- Corrupção como?
F- A gente associa a palavra corrupção à propina e ao roubo, o que não é tudo. Corromper é modificar para pior.
Quando um aluno manda o professor se fuder e não há mecanismos de punição o sistema está corrompido. Quando o professor é pouco mais que um analfabeto, mas pagou os carnês da Faculdade em dia e está diplomado, desorientando os filhos dos outros, o sistema está corrompido. Quando a escola particular é uma loja de negócios, as escolas pobres, ou um shopping cultural, as escolas ricas, o sistema está corrompido. Quando a preocupação primeira nas escolas públicas é com a merenda escolar, o sistema está corrompido. Quando as famílias, por terem os seus membros adultos que trabalhar ou por outro motivo, jogam as crianças na escola como se fosse um armário, um depósito de crianças, sem nenhum envolvimento, o sistema está corrompido. Quando aparece alguém com coragem suficiente para dizer o que estou dizendo e as autoridades escolares o consideram radical e ultrapassado, ou um sonhador, os outros donos de escolas, o sistema está corrompido.

G- Esclarece duas coisas que não entendi bem: a questão da merenda escolar e das escolas serem lojas de negócios.
F- Dar de comer a quem tem fome é um negócio tão óbvio que não mereceria maiores comentários, mas tornou-se bandeira de campanha política, como se fosse favor: vou votar nesse porque vai botar mortadela no pão das crianças, naquele porque disse que vai botar queijo. Ridículo.
Merenda escolar farta, variada e nutritiva deveria ser algo totalmente consolidado e irrelevante para discussão. A razão da discussão deve ser o aprendizado, o que fazer para tirar a escola pública da lama em que está.
O povão, induzido pelo sistema, continua discutindo se vai mortadela ou queijo. As autoridades também.
Candidato rico, vindo da Barra da Tijuca, de Ipanema, que discute merenda escolar está dando tratamento clientelista aos pobres, tratando-os como pobres coitados.
Infelizmente se elegem.
Quanto à escola particular ter virado balcão de negócios, começa pela legislação: da escola particular são cobrados os mesmos impostos das outras atividades, o mesmo que pagam os motéis, boates, postos de gasolina, parques de diversões, lojas de roupas... E que tem que ser repassado para o valor das anuidades, achatando os salários dos professores e não deixando um lucro capaz de modernizar a escola, que fica sem capital de giro, de maneira a aumentar o número de alunos bolsistas, e baratear as anuidades, alijando uma quantidade enorme de gente da escola particular, porque os pais e responsáveis não podem pagar, aumentando a demanda por escolas públicas.
Esse é o primeiro problema. O segundo é que boa parte dos proprietários de escolas nada têm a ver com a educação, são empresários que se aventuram, na esperança de ganhar dinheiro.
Para essas pessoas educação é um negócio como outro qualquer. É por isso que muitas escolas duram pouco, fecham logo. O cara vê que vender peixe dá mais grana que ter escola, fecha a escola e abre uma peixaria.
E o terceiro é o tipo de escola que temos, padrão norte-americano, business: lanchonetes e lojas de roupas, livrarias, papelaria... Tudo no interior da escola, onde ocasionalmente se assiste às aulas.

G- Ainda tem o problema da inadimplência...
F- Aí é outra história. O malfadado Fernando Henrique Cardoso, em vã tentativa de fazer o seu sucessor, de eleger o Serra, criou esta lei de que quem deve a escola é o pai ou o responsável pelo aluno e não o aluno, para fazer média com os eleitores.
Como é filho de general, nunca morou em subúrbio, nunca estudou em escola pública ou escola particular pobre, deu às escolas da Zona Oeste do Rio de Janeiro, da Baixada Fluminense, dos alagados suburbanos da Amazônia, da Zona da Mata Nordestina o mesmo tratamento dado às escolas de Ipanema, Barra da Tijuca ou Morumbi, em São Paulo.
Só que no Morumbi e na Barra não há inadimplência e, ainda que houvesse, a mensalidade de um aluno paga o professor e a de outro paga os impostos. Numa turma de vinte alunos um inadimplente é nada.
Nas escolas pobres, suburbanas, oito, dez alunos pagam o professor e cinco ou seis pagam os impostos. Um inadimplente quase inviabiliza tudo.
E o desgraçado é sociólogo, imagina se não fosse.
Acho que deveria ter sido coerente, obrigando todas as clínicas pediátricas a atender as crianças, qualquer criança, e depois cobrar dos pais na justiça.
Pobre também tem que se divertir. Então toda criança deveria poder entrar nos cinemas, teatros e parques de diversões e só depois os pais serem cobrados na justiça.
Com fome, deveriam poder saquear supermercados, depois os pais pagariam. Por que só a escola particular?
Todo mundo acha essa lei absurda, está devastando a rede privada de ensino, mas de olho no próprio carreirismo político, com medo de perder votos, ninguém propõe a alteração.
Nos últimos cinco anos, segundo o Sindicato dos Proprietários de Escolas Particulares, mais de seiscentas já fecharam, uma média de cento e vinte por ano. As falanges e comandos agradecem, a criminalidade agradece.

G- Pode cobrar na justiça?
F- Pode mas não cobra. Um advogado cobra quinze, vinte por cento de honorários. Como na escola suburbana a mensalidade raramente ultrapassa cem, cento e vinte reais, qual é o advogado que vai pegar uma causa, redigir processo, assistir a audiências, para ganhar oitenta reais?
Os pais sabem disso. Então matriculam os filhos na escola e somem, nem na reunião de pais e responsáveis vêm.

G- Só pagam a matrícula.
F- Nem a matrícula, é proibido cobrar matrícula. Aí quando os sem terra invadiram a fazenda do Fernando Henrique, uma fazenda que até hoje ele não justificou como comprou, já que, segundo a Receita Federal, seus bens são incompatíveis com a renda, ele mandou a polícia baixar a porrada.
Por que não cobrou dos responsáveis pelas crianças que estavam lá, por que não expulsou os adultos e deixou as crianças? Eram carentes.
É muita demagogia, parceiro.

G- Um dia desses eu estava assistindo a um debate, acho que na tevê Educativa, sobre o distanciamento das famílias da escola. Fale sobre isso.
Foi no Globo Educação, eu também vi.
F- Esse capitalismo louco, neoliberal, incorporou a mulher no mercado de trabalho. Umas por vocação, vontade, personalidade, mas a maioria por necessidade de levar pão para casa, para complementar a renda familiar, os ganhos do marido, aí as crianças passaram a ficar com os avós, com vizinhos, irmãos maiores e até sozinhos, como tem vários na minha escola.
Isso altera tudo. Criança foi feita para brincar sob o olhar vigilante dos pais.
Agora tem que assumir responsabilidades: esquentar, ou até fazer a própria comida, tomar banho na hora certa, vir para a escola na hora certa, se virar para fazer os deveres de casa sozinha, escolher a programação na televisão, se vai assistir a programação infantil ou filmes com sexo e violência, decidir se vai fazer o que os pais determinaram ou contrariar as ordens, já que ficarão impunes, por falta de testemunho...
Como essas crianças irão crescer? Vai faltar referência.
As referências das crianças, em todas as sociedades do mundo, são os pais.
Só que as atribuições paternas foram passadas para a escola, que não tem como administrar isso.
Como é que um professor vai dar assistência educacional, cultural, moral e afetiva a trinta crianças ao mesmo tempo?
Supondo que seja uma profissional vocacionada e responsável até consegue parcialmente, no primeiro segmento, mas no segundo, quando são vários professores, cada qual de uma matéria, com interesses, personalidades e comportamentos diferentes, como é que fica?
Isso sem contar que não temos mecanismos de compensação: aumentar a mesada, dar um passeio na casa de amigos ou parentes, dar um brinquedo, uma roupa nova... Nem de punição: cortar a Internet por uns dias, cortar mesada, deixar sem ir à rua brincar... Até dar uns catiripapos mesmo, se necessário.
A escola não tem como fazer isso, então a criança fica solta, para o bem e para o mal.
Aí quando dá errado cobram das escolas o que não é atribuição das escolas.
Antes as escolas tutelavam, agora têm que adotar. Não dá.
Tem um monte de crianças que nem conhecemos os pais e responsáveis, só vieram à escola para fazer a matrícula, até o dinheirinho da mensalidade as crianças trazem embrulhadinho numa folha de caderno, dentro da mochila, junto com o carnê.

G- Agora a corrupção na educação... Não esqueci.
F- Se afirmei que a corrupção é uma instituição nacional, a mais forte, por que na educação ficaria de fora?
Todos sabemos que quando prendem um policial corrupto sobram cem impunes. Todos sabemos que quando prendem um fiscal corrupto sobram cem impunes. Todos sabemos que quando cassam um político corrupto sobram cem impunes, e mesmo assim é porque o cassado contrariou interesses, normalmente da quadrilha rival, da que não está com a chave do cofre, e que chamamos de oposição. Por que na educação seria diferente?
É a mesma sociedade, o mesmo sistema, o mesmo comportamento. Para cada diretor que desvia dinheiro da merenda escolar sobram cem. Para cada diretor que superfatura obras e é pego com a mão na botija sobram cem. Para cada um que apresenta notas fiscais falsas sobram cem impunes, é a regra, minha filha.
O trato com o dinheiro público é um negócio sério.

G- Você já foi vítima de corrupção na escola?
F- Não, de grana não, mas já fui vítima de uma grande sacanagem.

G- Conta, conta, conta!
F- Eu quis colocar cursos supletivo e de ensino médio, a noite, já que a escola estava vazia, ociosa nesse horário. Fui orientado, pela Secretaria de Educação, para que entrasse com o processo e iniciasse as aulas, o que fiz.
O processo durou dois, quase três anos, tramitando.
Um belo dia apareceu uma comissão da Secretaria de Educação, para avaliar as instalações, ver se podiam ser usadas para o fim proposto, alojar adultos e adolescentes do ensino médio, último passo para a conclusão do processo.
Comecei o horário noturno com doze alunos e quando esta comissão chegou eu já estava com mais de duzentos, muitos deles que estudavam em Campo Grande, por falta de curso similar no bairro, e pediram transferência assim que comecei o curso.
A primeira coisa que estranhei foi que todos os membros da comissão eram proprietários ou diretores de escolas de ensino médio em Campo Grande, todos meus concorrentes.
Resultado: concluíram que o prédio não atendia à finalidade proposta, alojar adultos e adolescentes, e indeferiram o meu processo, deixando-me com uma batata quente nas mãos, regularizar a vida escolar de um montão de alunos, além de ter que pagar um monte de indenizações trabalhistas dos professores.
Quase fali, segurei um monte de ações trabalhistas e ainda ganhei fama de mal pagador, caloteiro, de dar volta nos professores e nos alunos, e que demorou anos para sumir.
E aí vem o final da história: desanimado, parei com as obras, não coloquei mais nenhum tijolo e, um ano depois, uma nova comissão da Secretaria de Educação veio ao prédio e... O alugou... Para adultos e adolescentes do ensino médio.
Atualmente tem mais de mil adultos e adolescentes, alunos do Estado, ocupando o prédio que a comissão de donos de escolas, a serviço do Estado, concluiu ser inadequado para esse fim.
Chega ou quer mais?

G- É muita corrupção!
F- Em todos os níveis. Ocasionalmente eu assisto às sessões plenárias, tanto do Senado quanto da Câmara dos Deputados, principalmente quando tem matéria polêmica...
Quem tem Sky, a Tevê Câmara é canal 113, e a Senado, 118.
Constantemente você vê um cara insinuar ilícitos em relação a outro, em aparte ou discurso, e o acusado, que deveria se sentir ultrajado, muda o discurso, intimidado. Isso acontece a toda hora, é tudo rabo preso.
Se todos os políticos que exercem mandato e têm processo por improbidade administrativa, diga-se roubo do dinheiro público, tramitando ou tramitado em julgado, perdessem o mandato, quantos restariam para organizar as próximas eleições?
Todas as casas legislativas, no Brasil, são balcões de negócios. Negociam-se cargos, obras, convênios, fornecimento de material e mão-de-obra terceirizada, orçamentos... Todos têm empresas em nome de laranjas que se beneficiam nas tetas públicas, não os laranjas, as empresas. Todos estão ligados a ONGs, empreiteiras, agentes financeiros, latifundiários, desmatadores, contrabandistas...
Com esses exemplos, como dizer à garotada que a honestidade vale a pena? Como impedir que cheguem cedo às armas, para ter o que a publicidade os incita a ter, ou às drogas, para fugir dessa realidade?

G- E aí a violência.
F- A discussão sobre a violência é a mais hipócrita que conheço. A violência brasileira é cultural e econômica, não é ocasional.

G- Cultural?
F- Olhe a quantidade de peças de teatro versando sobre o tema, o número de filmes, cenas na televisão, jornais especializados em sado-masoquismo social.
Quais foram os filmes mais assistidos nos últimos tempos? Cidade de Deus, Carandiru, Tropa de Elite... Os jornais populares se especializaram nisso, diversos programas de tevê.
Há uma indústria cultural apoiada na violência urbana.
Corra os canais de televisão, em qualquer horário, e tente encontrar um único filme que não tem tiros ou porradas. Não tem.
Até os desenhos animados, esses mangás japoneses, é porradaria pura.
Nos acostumamos à violência, achamos normal matar e morrer.
Cadáveres nas vias públicas já não mudam a rotina dos bairros, é como se não estivessem ali, a polícia não apura mais os homicídios, a não ser que o defunto seja da elite da sociedade ou tenha provocado comoção pública.
Policial virou ponta de lança de um exército e bandido virou guerrilheiro, é só ver o aparato bélico, as armas, a quantidade de homens e as operações de confronto. Isso dentro das cidades.
A questão é cultural mesmo, nos acostumamos.
Não se iluda: se o Fernandinho Beira Mar lançar um livro com a sua biografia será best- seller, ficará por muito tempo na lista dos livros mais vendidos.
O brasileiro perdeu a capacidade de se indignar, seja por que motivo for.
A dois ou três anos mataram dois caras aqui perto, na Pedra, era carnaval. Colocaram um plástico preto em cima e os blocos continuaram passando, com os foliões desviando dos cadáveres, como se fosse cocô de cachorro ou uma poça de lama, um monte de lixo, sem nenhuma alteração de emoção ou do humor, de ninguém, todo mundo pulando e cantando.
Nem em romance de realismo mágico, em texto surreal você encontra cenas assim. Só no Brasil.
No ano passado foram sessenta mil homicídios por armas de fogo no Brasil, uma média de um a cada onze minutos. Onde é a guerra, no Iraque, na Palestina ou aqui?
Você liga o Jornal Nacional, a vaselina do sistema, e escuta o Bonner e a Fátima dizerem: - atentado terrorista mata trinta no Iraque, com caras de indignação, sem dizer que no Brasil são duzentos a cada dia, todo dia, um a cada onze minutos, esses mesmos trinta em cinco horas e meia.

G- Você disse que era cultural e econômica.
F- Observe o exército de seguranças particulares que a violência gera, uma maneira de dar ocupação a parte da mão-de-obra não qualificada, aquela impossibilitada, por falta de educação, de pegar na caneta ou no lápis; o volume de dinheiro em forma de propinas e doações para a segurança pública, a indústria de artefatos: cercas elétricas, sistemas de alarme, fechaduras especiais, aluguéis de cofres em bancos, verbas de campanha política... O tráfico de armas e munição...
É muita grana! Nem todos estão interessados no fim da violência.
Até agora falei da violência armada, mas tem a violência silenciosa: falta de merenda escolar, filas imensas nos postos de saúde e hospitais públicos, com gente morrendo nas filas, sede no nordeste, com crianças morrendo a poucos metros de um poço artesiano, separado delas por uma cerca e seguranças armados, poço construído com o dinheiro público para matar a sede do gado do coronel.
Esse tipo de violência não entra nas estatísticas.

G- Você...
F – Deixa eu acrescentar uma coisa porque parece que sou pessimista, alarmista: apesar disso tudo o povo brasileiro é maravilhoso, dono de uma inteligência, de uma coragem, de um empreendedorismo sem igual.
Na segunda guerra mundial os nossos soldados eram tidos como loucos, pela coragem. Nossos pilotos, voando em aviões sucateados, fornecidos pelos Estados Unidos, foram considerados os melhores pilotos do mundo.
A nossa aviação civil é a quarta do mundo em segurança, somos o maior produtor do mundo de frangos, carne bovina, soja, laranja, café... Já somos auto-suficientes em petróleo... Exportamos alta tecnologia: aviões, navios, equipamentos eletrônicos, armas automáticas, automóveis...
Aqui o cara trabalha uns meses como servente de pedreiro, se intitula pedreiro, e levanta uma casa de dois, três andares, sozinho, sem arquiteto, projetista, calculista, engenheiro, e a casa se mantém de pé para sempre.
Diariamente inventos e descobertas saem das nossas universidades e institutos de pesquisas, mesmo sem haver verbas, grana para as pesquisas.
Por unanimidade internacional estamos cotados para, junto com a China e a Índia, estarmos entre as maiores potências econômicas do planeta, ainda neste século.
Olha o programa do álcool, do etanol... Do biodiesel.
Quem prega que o brasileiro é burro, indolente, preguiçoso é a classe dominante, tentando jogar nas costas do povo a responsabilidade por tudo o que está aí.
Formo no bloco de Câmara Cascudo, Gilberto Freire, Sérgio Buarque, Darcy Ribeiro... No bloco dos que acreditam no povo brasileiro.
Se com um bando de cafetões do tipo Antonio Carlos Magalhães, Fernando Henrique, Sarney... Nos pondo arreios, freios, âncoras, lastros chegamos até aqui, imagina no dia em que ganharmos consciência e fizermos justiça.

G- O que é que você acha do sistema de cotas nas universidades?
F- Totalmente contra, sob todos os aspectos. É de um populismo, de uma demagogia...

G- Você não acha que é uma compensação histórica?
F- Existe isso? Quer dizer que se o meu avô foi acusado injustamente de ter cometido um homicídio e, mesmo sem ter matado ninguém cumpriu pena, eu tenho o direito de matar alguém impunemente porque o meu avô já pagou por mim?
Você sabe como funciona uma panela de pressão?
Você coloca água para ferver. Essa água, ao se aquecer, aumenta de volume, se dilata, e se não houver espaço ou saída, a panela explode.
Essa saída é a válvula que, regulada para uma determinada pressão, permite que uma parte da água saia, na forma de vapor, para que a pressão interna permaneça tal que a panela não exploda.
Essa válvula aí é a política de cotas: você tem milhões de negros fervendo na miséria, sem alternativas porque o sistema educacional oferecido aos pobres é uma desgraça, e, para diminuir a pressão social, deixa meia dúzia deles escapar pela válvula da cota, e o resto que se dane.
É isso aí, sem contar outros motivos.

G- Quais, por exemplo?
F- A nossa sociedade é racista, não ver isso é hipocrisia, mas existe racismo e racismo.
O preconceito racial é uma coisa, o ódio racial, outra.
O ódio racial não existe no Brasil.
Agora, quando brancos se esforçam e conseguem pontos para entrar na universidade e não entram porque teve gente, com muito menos pontos, que passou na frente pelo único e exclusivo fato de ter a pele de cor diferente, estamos alimentando o ódio racial, estamos criando o ódio racial, além da verticalização do racismo.
A gente entra no hospital e não está nem aí se o médico que vai nos atender é branco ou negro, sabemos que têm a mesma formação, a mesma competência, mas, na medida em que for aumentando o número de cotistas formados, passaremos a discriminar os negros formados na cota, julgando-os profissionalmente inferiores, menos competentes, o que não será verdade, mas irá alimentar o racismo.
Isso para todas as profissões: engenheiros, advogados, psicólogos, professores, arquitetos...
Por enquanto temos universitários por competência e universitários filhos da cota... Mais tarde, por generalização – você sabe que agimos assim, todo profissional negro será considerado um filho da cota, e será discriminado.
No Brasil o negro é socialmente inferior? Sim.
Qual é a relação numérica entre brancos e negros residentes na Zona Sul, na Barra, e a mesma relação na Favela da Maré, do Jacarezinho ou em qualquer bairro pobre da Baixada Fluminense?
O negro é inferior por causa da cor da pele? Não.
A inferioridade social do negro é a mesma inferioridade social do branco, do caboclo, do índio migrados do nordeste, vindos do interior do país...
Todos fervem na mesma caldeira, a da miséria, a da desassistência do Estado, dos bandidos oficiais, substituídos pelos bandidos sem mandatos e cargos, divididos em falanges e comandos, ou pelos bandidos oficiosos, divididos em milícias e líderes comunitários cooptados, uma forma cruel de terceirização do Estado.
A realidade é essa. Aí coloca-se uma válvula, a das cotas, para segurar a onda.
É abrir a tampa da panela, para que todos saiam, ganhem o espaço social, ou fechar e deixar sem a válvula, para que a merda exploda e todos ganhem o espaço na marra.
Politicamente falando, em termos de mudança social, de evolução social, o neoliberalismo ainda é pior que o capitalismo selvagem.

G- Caramba, que discurso revolucionário...
F- Que infelizmente é o discurso de poucos.

G- É isso aí! Acho que chega, né? Mais alguma coisa que você gostaria de acrescentar?
F – Acho que não. Quando vocês se afastaram da linha inicial da entrevista e focaram o pessoal, me assustei, mas ficou legal. Nunca me abri tanto, nunca fui tão sincero numa entrevista.

G- Você fala de religião, como de tudo, com muita convicção, com muita veemência...
F- Olha, rapaz, a minha vida foi muito rica de experiências. Também me considero um agraciado, um abençoado. Tive e tenho tudo o que desejei e desejo.
Se mais não tive nem tenho é porque mais não desejei. Sou muito grato a Deus e a meus próximos por isso, embora tenha muita dificuldade para demonstrar, sou muito seco nas demonstrações afetivas, principalmente em relação à minha família, talvez por jogar as minhas emoções na tela e no papel.

G- Já está sem espaço mas fala um pouquinho dessa sua evolução religiosa. É instigante esse seu modo de pensar.
F- Fui criado em família católica, como afirmei. Tenho todos os sacramentos: batismo, comunhão, crisma, consagração, casamento... Falta a extremunção.
Como a ordenação no meu caso não conta, tenho praticamente todos os sacramentos. Fui, inclusive, consagrado à Senhora de Aparecida na própria Basílica de Aparecida, no prédio antigo porque agora é catedral e eu nunca mais voltei lá, não conheço.
Com treze, catorze anos, percebi que o catolicismo não estava respondendo a todas as minhas questões, e me voltei para o esoterismo, li muito, quase todos os livros da Editora Pensamento, os livros de Lobsang Rampa, Madame Blavatsky, Krishnamurty, livros budistas e hindus, Ramatis, O Livro dos Mortos, Bagvah Gita, Cabala... Que me marcaram muito até hoje.
Veio a ditadura militar, comecei a militar na resistência, ainda que indiretamente, nunca tomei parte de movimentos armados, essas paradas, tive contato com os comunistas e passei para a literatura marxista, para o materialismo dialético.
Li Hegel, Engels, Marx, Lênin, Marcuse, Rosa de Luxemburgo, Fromm, Althusser, Adorno, Benjamin... A Escola de Frankfurt.
Neguei Deus e vi na evolução da matéria toda a explicação para a realidade, mas logo concluí que o materialismo puro, seja mecanicista ou dialético, é tão insuficiente quanto o fanatismo religioso, cega e corrompe a compreensão da realidade.
Fiquei um tempo perdido, namorando uma religião, namorando outra, lendo, conversando, até que conheci a literatura kardecista.
O negócio fez sentido, até porque apareceu na hora certa, como uma ponte entre o misticismo puro e o materialismo, incorporando conceitos das duas escolas que, pelo ângulo dessa corrente de pensamento, não são opostas nem se negam reciprocamente.
Fiquei. Hoje não aceito integralmente essa doutrina, algumas coisas não se encaixam na minha cabeça, mas é a que mais se aproxima do que penso e creio.
Posso dizer que hoje sou um livre-pensador cristão.

G- O que é ser um “livre pensador cristão”?
F- Eu me situo nos delicados e estreitos limites da Física e da Metafísica, entre o cientificismo e a fé religiosa, entre o materialismo e a crença na existência de uma realidade espiritual.
Depois que chegamos à relatividade, à Física Quântica e passamos a entender, ou pelo menos especular os mecanismos cósmicos e da vida, percebemos que não há dualidade nem contradição entre os textos religiosos e os enunciados científicos.
Os mitos, do tipo “Dança de Shiva”, “Caixa de Pandora”, podem muito bem descrever a intimidade da matéria, o caos inicial e a evolução com surpreendente grau de veracidade.
As aparentemente ininteligíveis imagens descritas na Bíblia também.
Gosto muito de um escritor e cientista hindu, naturalizado norte-americano, que escreveu um livro notável, que balançou a cabeça dos cientistas materialistas e dos religiosos: “O Tao da Física”.
O nome do cara é Fridjol Capra. É uma pena que o livro exija um razoável conhecimento prévio de Física e Química. Deveria ser o livro de cabeceira de todos nós. Ficaríamos mais próximos da verdade, do entendimento da criação e do Criador.
O que acontece é que vivemos numa cultura, numa sociedade onde se mitificou o superficial, o pueril: você não ouve a riqueza de uma sinfonia, de um concerto. A música que ouvimos tem um ou dois acordes, no máximo, e uma letra curta e absolutamente explícita, de vocabulário pobre, para dispensar o pensamento.
Desprezamos a pintura abstrata, porque exige análise, por uma paisagem, que observamos como se tivéssemos aberto a janela, sem pensar, ou um retrato, que é como uma foto.
Mesmo o ritmo da música não admite variações, é aquele bate-estacas monótono do princípio ao fim, automatizando quem dança.
Numa cultura assim claro que a religião tinha que ser igual, tinha que estar inserida. Então, no processo religioso, que é um processo de religação com a divindade, impossibilitados de crescermos para nos aproximarmos da divindade, nós a diminuímos, para que fique do nosso tamanho.
Deus, agora, ajuda o atleta a fazer gols, toma partido em brigas de vizinhos, dá cola nas provas dos estudantes... Chegam a dizer e a escrever que “Deus é fiel”, esquecendo-se que fidelidade implica em cumplicidade, a ajudar até nos erros. Eu é que tenho que ser fiel, para não errar e crescer.
Vivemos um tempo de mediocridade. Os professores só ensinam o que vai na prova, até porque a maioria não sabe mais que isso. Os alunos só estudam o que vai cair na prova. E a escola se tornou um estágio preparatório para a inserção na sociedade de consumo.
Não preparamos o aluno para ser, mas para ter, não para ser cidadão, mas para ser consumidor.
Claro que para esse modelo de civilização, a divindade tem que ser reduzida, tem que ter o tamanho da mediocridade geral e generalizada.
Como não me enquadro, considero-me um livre pensador.

G- Você consegue ver saída ou o futuro é negro?
F- Marx deixou bem claro que as sociedades trazem em si as próprias contradições, e que, no embate desses contrários, se transforma, melhorando-se.
Se você observar a economia internacional, a quantidade de dinheiro virtual é muitas vezes maior que a quantidade de dinheiro real, ancorado na riqueza, na produção de bens. Com a Internet, a circulação desse dinheiro virtual virou coisa de louco.
Claro que a produção, a demanda e os preços estão controlados artificialmente, formando uma bolha que vai estourar, com certeza.
Muito dinheiro e pouca riqueza tem nome: inflação. Dinheiro de mentira, virtual, sem uma âncora material, não pode pagar o que não é virtual. Isso tem nome: calote.
Não demora e teremos uma crise econômica a nível global, o que vai obrigar a espécie humana a reconsiderar as besteiras que está fazendo, a buscar alternativas que privilegiem o homem e o meio ambiente, reaprendendo a viver de maneira natural, comendo, morando, estudando, bebendo, excretando e morrendo, e não acumulando bens desnecessários e fortunas imensas que as suas próximas gerações não conseguirão gastar.
Não há outra saída. O modelo norte-americano, imposto ao mundo, faliu, está com os dias contados.
Já tivemos o escambo, a escravidão, o feudalismo, o colonialismo, o imperialismo... Falta pouco para dizermos “tivemos o capitalismo”.
Não vai ser uma transição rápida, imediata, mas já começou. Aguarde (N.E.: Francisco nos deu esta entrevista em julho. Em setembro a crise internacional estourou).

G- E a igreja evangélica?
F- Qual? São tantas! Sem contar esse monte de seitas. O protestantismo é a outra face da moeda romana. De um lado catolicismo, do outro o protestantismo. Lutero não discordou da teologia católica, discordou do clero católico, ficou na metade do caminho.
Agora é uma espécie de fla-flu religioso, uma disputa por fiéis e seus donativos, estou fora, sem contar os problemas de fundo, de concepção mesmo e sobre os quais não há aqui como me alongar.
A teologia católica se apoiou no maniqueísmo de Tomás de Aquino, e a protestante, na visão Paulina, de Paulo, que era o único romano, o único ocidentalizado, cesariano entre os evangelistas.
É preciso ler a Bíblia com os próprios olhos, sem intermediários, como apontou Lutero.
É preciso ler os Evangelhos Apócrifos, é preciso ler os textos primitivos, os textos escritos pelos contemporâneos dos fatos, considerar as condições históricas e geográficas em que se deram os fatos narrados, buscar os erros de sucessivas traduções, as adulterações de textos, por conveniência ou acaso, ver as contradições gritantes, ver se o estilo de vida dos líderes religiosos bate com o que pregam, ler sobre outras religiões, para entender o próximo, que professa religiões diferentes da nossa, lavar-se dos preconceitos e checar as nossas próprias crenças.
Não agindo assim seremos meros papagaios repetidores do que é conveniente para alguns.
As religiões são conservadoras, mantêm, sustentam toda essa realidade horrorosa que está aí.

G- O que é que faz a tua cabeça e o que te enche o saco?
F- O que faz a minha cabeça? Um bom papo, um dia no Jardim Botânico, uma visita a uma exposição de artes plásticas, o contato com as plantas e os animais, a leitura de um bom livro, uma boa música, o contato com a terra: carpir, semear, colher... Escrever...
O que os alunos consideram um sacrifício, quase uma tortura, pra mim é um prazer enorme... Como afirmei na contracapa do livro, pra mim escrever é uma atitude quase que de sensualidade.
E ensinar.
Como vocês mesmos disseram, tenho alguma facilidade para vulgarizar informações, então me sinto muito feliz quando percebo que alguém está aprendendo comigo.
Adoro passar informações, lançar sementes de idéias.
Não há nada melhor que um bom papo, sadio, interessante, descompromissado.

G- Tem também aqueles programas de índio. Você estava conversando com a gente uma vez, na secretaria da escola...
F- Não é programa de índio. Programa de índio é não separar trabalho, arte, religião, sentimentos, criação dos filhos e respeito à natureza. É viver integralmente.
Nós, considerados civilizados, somos absolutamente incompetentes para os programas de índio.

G- Sim, mas aqueles programinhas estranhos que você nos contou.
F- Tem uns programas estranhos sim, só que pra mim não são.
Eu gosto de passear de barca, por exemplo. Eu pegava a barca na Praça XV e ia até Niterói, depois voltava... Teve dia de ir três vezes: ia e voltava, ia e voltava...
O vento na cara, o cheiro do mar, a paisagem, o balanço da barca... Não é programa de índio.
Também gosto de feira. Os cheiros: as frutas, churrasco, sarapatel, chouriço, condimentos, suor de gente... Tudo misturado. Fumaça. As cores, as formas das frutas, dos legumes... O vozerio, gente falando alto, pechinchando... Já fui camelô na feira, depois barraqueiro... Isso ficou, então gosto de passear na feira sim, qual é o problema?
A CEASA é um outro ponto turístico pra mim: aquele montão de caminhões carregando e descarregando, gente comprando, gente vendendo, os cheiros, o vozerio, todo mundo com pressa...

G- E as igrejas?
F- Não são as igrejas, eu sou homem de pouca fé, são os sons do órgão e do sino.
Sou fascinado pelo som do órgão, mas não desses órgãos eletrônicos, dos teclados que o Tom Jobim chamava de aporrinholas.
Gosto daqueles órgãos de verdade, imensos, dos séculos anteriores.
Então eu corria as igrejas, às vezes para ficar ouvindo os ensaios, às vezes nas cerimônias, só para ouvir o órgão.
Assisti a muitos casamentos de estranhos, na cidade, só para ouvir a marcha nupcial no órgão, adoro.
O melhor é o da Catedral Presbiteriana, na Praça Tiradentes, se bem que o da Candelária também é muito bom, eloqüente.
O repertório renascentista mexe muito comigo: Haendel, Mendelson, Bach, Mozart...
Quem não gosta desses caras não merece o paraíso. A trilha sonora do paraíso foi composta por eles.
E pensar que tem gente que escuta esses pagodinhos gospel e acredita que têm alguma coisa a ver com o divino...
Esses louvores que escuto por aí estão para Mozart como os desenhos das crianças estão para um Picasso ou um Leonardo da Vinci.

G- Os sinos.
F – Ah! É.
O meu primeiro emprego na cidade, aí por volta dos dezesseis, dezessete anos, foi na Rua da Quitanda, ofice boy de um agiota.
Eu saía às cinco horas, descia pela Rio Branco e vinha até a Candelária, só para ouvir os sinos, às seis, e a Ave Maria, de Gonot. Todo dia.
Até hoje se tocar o sino em alguma igreja eu paro e fico ouvindo.

G- E o que te enche o saco?
F- Os papagaios, os monoideístas, os invejosos, os descompromissados e os violentos.

G- Defina cada um.
F- O papagaio é aquela pessoa que não fala, palra.
Não lê nada, não pensa em quase nada, não sabe de nada, mas fala de tudo, prega sobre tudo, teoriza tudo, de maneira louca, surreal, sem respaldo na realidade.
Parece que o que ouvem não chega no cérebro, fica só nos ouvidos.
Ouvir papagaios é horrível, principalmente quando estão bêbados.
Monoideístas são aquelas pessoas de idéia única, de assunto único.
São aqueles que só discutem futebol. Para eles o mundo é um grande estádio e a vida, um campeonato. Só falam disso.
Outros só pensam e falam em dinheiro. Para esses viver é comprar e vender, e a vida, um grande shopping.
Tem também os fanáticos religiosos: se tropeçam numa pedra o diabo empurrou, se evitam a pedra, Deus mostrou. A vida deles se resume nisso, mediar a rivalidade entre Deus e o diabo.
Só falam nisso, só falam disso, são uns chatos de galocha, uns pentelhos de chinelos... São terríveis de suportar.
Os invejosos são os piores. Chega a ser bíblico: “a inveja apodrece até os ossos”.
Se você ler a Bíblia com atenção, o que motivou a rebeldia de satanás foi a inveja.
A dualidade entre Deus e o maligno, segundo a tradição das igrejas ocidentais, se apóia na inveja do mal sobre o bem.
A característica primeira do diabo é ser invejoso, querer ser igual a Deus, ter a adoração dos homens, não é mesmo?
A cobiça sobre controle é até sadia: eu quero ter o que você tem, eu quero saber o que você sabe, eu quero fazer o que você faz. Então eu corro atrás, tento aprender, a conquistar coisas, a fazer coisas.
Já o invejoso não quer isso, ele quer ser você, ele é frustrado por não ser igual a você, ele é doente e, como todo doente, é limitado. Então, impossibilitado de ser você, sabedor de que é menor, ele tenta te destruir: faz fofocas, denigre a tua imagem, desqualifica o que você faz... Em inútil tentativa de fazê-lo do tamanho dele.
Muitos homicídios têm origem na inveja. É terrível.

G- Falta os descompromissados e os violentos.
F- O descompromissado é o inconseqüente: sai destruindo árvores e não está nem aí para o futuro do planeta, sem se preocupar com o que vai deixar para os filhos e os netos, sai devastando. Mete o pé no acelerador e nem se lembra que pode aparecer um defeito mecânico no veículo, matando inocentes. Entre a cerveja e um brinquedo para o filho, ou uma guloseima, ele não titubeia, toma a cerveja. Livra-se do esgoto jogando para a casa do vizinho, depreda monumentos públicos, suja as ruas, não tem escrúpulos em passar alguém para trás...
Não tem compromisso nem com ele mesmo, senão teria vergonha do que faz. É o alienado.
Por fim, os violentos.
Engraçado é que quando a gente fala do violento, imagina logo um moleque desses, falangista, com um rifle nas mãos e touca ninja na cara.
O policial que mete o pé na porta de um barraco e barbariza humildes não é menos violento. O cara que chega em casa e dá uma surra na mulher, aterroriza os filhos, não é menos violento. O cara que te dá uma fechada no trânsito, propositalmente, sem se importar se você vai perder a direção, não é menos violento. O cara que atropela um cachorro e sai rindo, como presenciei um dia desses, não é menos violento.
Todos os violentos são iguais, o que muda é a ousadia e a oportunidade, as circunstâncias em que eles podem agir.
Violência é como virgindade e honestidade, não admite gradações, ou se é ou não.
Assim como não existe meio virgem nem meio honesto, não existe meio violento. Ou é ou não é.
Não estou falando do instinto de defesa, que é natural em todos os seres vivos, mas de violência gratuita, fortuita, por uma questão de caráter e personalidade.
Interessante é que a vida me mostrou que todos os violentos são covardes, medrosos, frouxos.
Em situação de superioridade, armados, fisicamente mais fortes ou acompanhados, fazem e acontecem. Em situação de igualdade ou de inferioridade...
Trabalhei na cadeia e vi muito machão, cheio de homicídios nas costas, com medo de tomar uma porrada do agente penitenciário, com medo de extrair um dente... É só ver como, depois de presos, se comportam.
Talvez a postura de violência seja uma maneira de esconder a fragilidade, o medo, a covardia.
Repara que quanto mais frouxo um cara, mais idealiza situações violentas, mais fala em matar, bater, fazer justiça com as próprias mãos. Mais vibra com as ações dos violentos.
Agora, a tragédia das tragédias, é quando esses cinco tipos coabitam num indivíduo só, o que não é raro. São os embaixadores do inferno aqui na Terra.

G- Você é feliz, Chico?
F- Estou com Sartre. Em matéria de sentimentos sou meio existencialista: a felicidade plena não existe, o que existe são momentos felizes.
Aliás, ele tem uma frase, que fecha a peça Entre Quatro Paredes, que acho fantástica: “o inferno são os outros”.
Vivemos num mundo altamente competitivo. Embora tenhamos a cabeça nas estrelas, continuamos com um corpo animal, exatamente como o de qualquer outro animal, com fome, sede, dor, tesão, envelhecimento, doenças... O que nos faz sofrer.
Como todos os animais, competimos por espaço, comida, água, domínio sobre os demais membros do grupo, a nível familiar, comunitário e global. Nem sempre concordamos, quase sempre somos contrariados, dentro da família, na comunidade e no mundo. As tragédias e os dramas que nos chegavam de maneira vaga e imprecisa, com atraso, depois da revolução tecnológica, das telecomunicações, nos faz testemunhas: gente que morre na China, biomas destruídos na Amazônia, guerras no Oriente Médio, corrupção em Brasília e aqui, miséria em tudo que é canto, a violência como regra e a puerilidade como norma... Com a nossa cumplicidade, por ação ou omissão, uma vez que somos todos testemunhas dos fatos. Dá pra ser feliz?

G- E aí?
F- E aí uma outra santíssima trindade: ciência, arte e religião. Não uma das três isoladamente, de maneira alienante, capaz de nos fazer alheios e egoístas.
Não de maneira cega, que nos faz abrir mão do que somos para vivermos preconceituosamente de idéia única.
De preferência as três juntas, ciência, arte e religião, de maneira equilibrada que é para o tripé não ficar manco, aleijado, com um pé maior que o outro, nos dando tombos.
É desenvolver a inteligência e a razão, pela ciência; a sensibilidade e a disciplina, pela arte; a fé, a solidariedade e a esperança, pela religião.
O mais já estava aqui quando chegamos e ficará quando nos formos, é só cenário para o papel que interpretamos.

G- Antes de terminarmos, duas perguntas que não podem ficar de fora: volta pro rádio? Vem candidato?
F – Rádio não sei, perdi a vontade. Candidato, nunquinha. Em todas as eleições me perguntam isso.
Tive a chance quando dirigi um sindicato forte, fui bem popular, estive na mídia, inclusive no chamado horário nobre, e teria muitos votos. Convites não faltaram, mas resisti.
A política está criminalizada, os homens de bem fugiram dessa atividade. Os candidatos, agora, são representantes do ilícito, do ilegal, do crime: falanges, milícias, grileiros, corruptos, mafiosos... A maioria busca o enriquecimento ilícito ou a imunidade, para fortalecer a impunidade.
As páginas políticas dos jornais têm me dado mais enjôo que as páginas policiais. Estou fora, mas ainda há uns poucos honestos, é garimpar antes de dar o voto.

G- Você estava receoso de dar a entrevista. Valeu?
F- O acordo foi de que vocês só perguntariam sobre o meu trabalho, acabaram me enrolando.

G- A gente veio entrevistar o artista, mas você se assumiu educador, o que realmente é, aí a gente abriu o leque.
F- E eu embarquei. Acho que foi uma das entrevistas mais longas que já dei. Vocês vão editar ou lançar fascículos? Publicar na íntegra, nem pensar, vai dar um livro, mais de vinte laudas, se não passar de trinta.

G- Tem que editar, mas você revisa.
F- Então só coloca o que falei de artes, e me dá uma cópia da conversa completa, quero guardar.

G- Valeu?
F- Vocês foram generosos... E exagerados. Valeu, obrigado.
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