sexta-feira, 24 de maio de 2013

A MORTE É O FIM MESMO?

Agora investigarei as mortes que assisti.
                      Inquirirei os meus mortos, atento às suas palavras últimas, buscando contradições com o convencional, até encontrar a prova do delito, a vã suposição de estar assistindo a transição entre o tudo e o nada.
                      Estou ao lado do quase cadáver de vovô. O enfermeiro, amigo de infância, ao perceber que tento acordá-lo, afirma “está em coma profundo, não pode nos ouvir”.
                      Ato contínuo, belisca fortemente o antebraço de vovô, fundo, pele e musculatura, mostrando a total ausência de reflexos.
                      Fico a sós com o meu velhinho, a quem devo tudo, das predileções artísticas e esportivas à inútil pretensão de ser igual no caráter e na conduta.
                      “Vovô, sou eu, F.. Eu te amo muito, estamos na torcida, o senhor vai sair dessa (já não lembro se murmurei ou só pensei), o senhor está entendendo? Mexa um dedo, a pálpebra... Eu sei que o senhor pode me ouvir.”
                      Nada. Só a imobilidade dos definitivamente alheios, até que duas minúsculas, cristalinas lágrimas se anunciam nos cantinhos dos olhos, escorrendo para o meu encanto.
                      Até hoje me pergunto se por esforço de tentar mover algum músculo, mostrar que ainda estava ali; se pela emoção despertada por minhas palavras; a consciência de que iniciava uma viagem sem retorno e pesaroso se despedia, ou; dava-me, ele que tanto se não tudo me ensinou, a última lição: a morte é uma ilusão.

                 Se as lágrimas de vovô abriram possibilidades quase incogitáveis, as palavras de papai e de vovó, na mesma situação, atravessando a ponte entre o meu olhar e a minha saudade, fecharam o leque das explicações possíveis, os meus parcos conhecimentos científicos tornando-se mais parcos e insuficientes, devorando a minha incredulidade, como se gritassem: continuaremos.

Hospital Central do Exército. Estou na cabeceira do leito onde meu pai agoniza, alternando consciência, estertores e coma profundo, as costelas e o esterno ameaçando rasgar a pele, seus trinta e dois quilos escondidos em um metro e sessenta e dois, tornando-se pó ainda em vida .
                      Carcinoma epidermóide, pomposo nome para uma das mais agressivas modalidades de câncer, na garganta, o dele, inveterado tabagismo que herdei, talvez alimentando o caranguejo que já me rói por dentro, sem que eu saiba.
                      Nem quimioterapia ou radioterapia, nada a espantar o bicho devorando o velho, com voracidade tanta que não durou nem três meses, todo metastaseado, ninhadas espalhando-se pelo corpo todo, fazendo ninho em cada órgão.
                      Numa quarta-feira de sol, acorremos todos, na esperança de que fosse só mais um alarme falso, mas ao vê-lo entendi tudo. Despedia-se.
                      Durante quatro horas assisti ao que só voltei a assistir testemunhando um homicídio, em plena Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro: um corno esperou o comilão na saída do escritório. Aproximou-se e deu um único tiro na fronte do pobre.
                      Embora deselegante, o único verbo capaz de descrever o visto é estrebuchar, o sangue jorrando aos borbotões, no ritmo cardíaco cada vez mais lento e com menos sangue a sair, até o esgar final.
                      Com papai não houve sangue, mas o estrebuchar prolongou-se, com todos os músculos contraindo e relaxando, ora alternadamente, ora todos juntos, os olhos abrindo e fechando, a boca, pernas, braços, dedos retesando-se para depois relaxar, a intervalos curtíssimos, o médico sem acreditar no que estava vendo, resistência assim nunca viu, confidenciou a vovô, até que um enfermeiro chegou com uma seringa enorme, uns quinze ou vinte centímetros cúbicos, vazia ou só com uma gota de um líquido qualquer, introduzindo todo o ar na veia de papai a custo contido em seus tremores, como as rãs desprovidas de pele, no momento da salga.
                      Eu e meu irmão nos entreolhamos, o enfermeiro dando-nos uma olhada rápida, como se dissesse é o melhor para vocês e para ele.
                      Especulador explorando cada possibilidade de informação nova, durante todo o tempo estive atento a todo o mecanismo da morte, e algumas coisas nunca se fizeram esclarecidas, abrindo portas para possibilidades reais, objetivas, embora negadas pelas ciências e pelo chamado bom senso.
                      A primeira delas é que, a partir de comportamentos não condizentes com a condição de líderes religiosos, observados por papai em Roma, durante a guerra, ele tornou-se absolutamente descrente de todas as religiões, só admitindo a existência de Deus, assim mesmo pouco mencionando esta palavra.
                      Internado, sempre que voltava do coma, e foram muitos, passava boa parte do tempo olhando para uma estátua de Jesus, que ficava em frente à cama, todo elogios: “esse cara é legal, ele é grande, esse cara é muito bom...”
                      Como nunca percebi uma atitude de medo ou religiosa reverência, acredito que ausente, em coma, chegava, fosse por delírio ou de verdade, a personalidades que julgava superiores, boas, puras, amigas... Confundindo com Jesus, talvez a sua única referência religiosa.
                      Dois outros fatos também estabeleceram a confusão mental em mim, aberto a todas as possibilidades, mas de rigor cético, incutido pelas ciências e pela filosofia.

                      Papai alternava coma profundo e lucidez, às vezes parecendo estar em transe, com o psicológico divorciado do físico, descrevendo uma outra realidade.
                      Na medida em que foi se aproximando o momento em que, para nós, se reduziu a um corpo a ser sepultado, passou a olhar o vazio, sempre sorrindo ou com expressão de felicidade, pronunciando os nomes dos seus mortos: mãe! Bel! Silvinha! Zé!...
                      Todos irmãos, meus tios, que o antecederam no salto para fora da vida, até que fez cara de espanto e incredulidade: Paulo?
                      Tio Paulo havia morrido vinte dias antes, câncer cerebral e, para poupá-lo, nada tínhamos dito a papai.

               Se a presença do tio Paulo, junto com vovó e outros tios, surpreendeu papai o tendo na conta dos que ainda davam provimento às exigências da carne, fato mais insólito ocorreu a poucas horas da partida: esticando os braços, querendo abraçar alguém, papai pronunciou uma palavra que entendi Lu.
                      Como na cabeceira alternavam-se eu, meu irmão e uma amiga, L., dia e noite, entendi como manifestação de gratidão dele a ela.
                      Comentei com mamãe, no corredor, que baixou os olhos, mais
constrangida que humilhada, revelando pela primeira vez um segredo que teve para si sempre: não foi Lu que ele pronunciou. Foi Ju, emendando entre lágrimas: Josepina, o grande amor da vida dele, que viria da guerra com ele, a italiana que morreu de tuberculose. Ela veio buscá-lo, seu pai vai embora.
                      Nem rancor nem humilhação. Não era a fêmea, a minha mãe, naquele momento, mas o eu absoluto dela curvando-se à evidência de um triângulo nunca desfeito.

                      Vovó não passou pelo coma.
                      Como estava muito idosa e praticamente sem energia vital, durante meses manteve-se nos estreitos limites do eu absoluto e do corpo, o metabolismo no mínimo, quase vestiginal, a ponto de conversar sem saber de que lado estava, confundindo vivos e mortos, pela nossa convenção.
                      Constantemente reclamava que tio S. a visitava muito, sem necessidade, já que estava idoso e cansado, precisando descansar, que mandasse os filhos, não adianta pedir, que ele insiste em vir.
                      Tio S. já havia morrido anos antes e lúcida ela sabia disso.
                      Aí veio o aperto: algo não previsto ocorreu na família, o que nos obrigou a trair a confiança de vovó, alheia na pré-partida, conosco escondendo o fato, se é que adiantou.

                      Superamo-nos em nosso cinismo, de tal maneira que a princípio ela não percebeu nada, preocupada com o sumiço de uma tia, irmã de mamãe, “a ingrata, não vem mais me visitar, só os filhos é que vêm. Por que não trazem a D.? Estou com saudades.”
                      Assim foi por uns dias, até o dia em que a encontramos exultante, feliz como não a muito: “D. esteve aqui. Não sei como ela conseguiu entrar fora da hora da visita! Reclamei porque veio sozinha. Por que não pediu a um filho para trazer? Está velha, surda, atravessando as ruas sozinha... Qualquer hora vai ser atropelada. Pedi para ela não vir mais sozinha”.
                      Nos dias seguintes as duas passaram a discutir, com vovó reclamando muito com a gente, “D. agora só vive aqui, sempre fora das horas de visita. Não respeita as normas da clínica, já falei com ela. Ao invés de ficar cuidando da casa, atravessando as ruas, surda, qualquer dia vai morrer atropelada, e ela rindo, sem me ouvir, com a cara debochada, como se eu estivesse caduca, não soubesse do que estou falando.”
                      Por que titia sumiu durante tanto tempo, deixando a própria mãe sozinha?
                      Um dia amanheceu sorridente, falando pelos cotovelos, como sempre. Tomou banho, despediu-se da filha e se encaminhou para o ambulatório, retrato da saúde pública em nosso país, para exames de rotina.
                      Erro médico. Voltou para ser sepultada.
                      Como dizer a vovó? Como pronunciar a sua filha mais velha morreu, atrapalhando a sua lenta e constante agonia?

In "Não Haverá |Mais Natais", romance autobiográfico.


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