quinta-feira, 23 de maio de 2013

SOPA DE TUTANO NA ASSEMBLEIA

I

           Areia Branca, sub-bairro de Santa Cruz, bairro carioca, no extremo da zona oeste.
                Aproximo-me da residência, percorrendo a cerca de arame farpado, até chegar ao portão de tábuas, arame substituindo as dobradiças e uma cordinha a título de tranca e fechadura. Bato palmas.
                Insisto e surge uma senhora, avalio oitenta anos aproximadamente, fazendo-se acompanhar de dois vira-latas pacíficos de caudas empinadas em abano, como os para brisas dos automóveis.
                Aproxima-se sorrindo o velho sorriso das velhas avós que em si trazem a sabedoria dos séculos e todos os bons sentimentos do mundo.
                “Bom dia! Eu me chamo F.. Sou funcionário do IBGE. A sua casa foi selecionada para uma pesquisa, POF: pesquisa de orçamento familiar.
                Eu gostaria de lhe explicar o que é e como funciona. Tenho certeza de que a senhora vai colaborar. Tem um lugarzinho aí pra gente sentar? Pode ficar tranquila que é isso mesmo.”
                Ato contínuo, meto a mão no bolso e saco carteira de identidade e crachá, mostrando.
                Olha rapidamente, desviando o olhar, atitude típica dos analfabetos, só conferindo as fotos, envergonhados.
                Convida-me ao alpendre, a um banquinho azul baixinho, tão baixinho que me sinto sentado no chão.
                “A senhora sabe o que é IBGE?”
                Meneio horizontal da cabeça, não!
                “É um órgão de pesquisas do governo. É a gente que calcula a inflação. A senhora sabe o que é inflação?
                Nova negativa.
                Já viu como os preços sobem todo dia? Aumenta carne, arroz, aluguéis, gasolina... É tudo aumentando de preço, todo dia.
                Então isso tem que ser calculado, que é para os trabalhadores exigirem aumentos nos salários na mesma proporção, para não ficarem mais pobres, não é mesmo?
                Os donos de bancos também, senão como é que eles vão calcular os juros?
                Mas há uma dificuldade, que a gente chama de peso: a gente gasta mais com comida que com material de limpeza, mais com material de limpeza que com enfeites e bibelôs... A gente não gasta igual com tudo: dez mil cruzeiros* de carne, dez mil cruzeiros de arroz, dez mil cruzeiros de sabonete...
                Cada mercadoria tem um peso diferente, uma importância diferente nas despesas da gente.
                Essa pesquisa é justamente para descobrir os hábitos do brasileiro, em que a gente gasta mais ou menos dinheiro, para conhecer esses números, isso que chamei de peso, e fazer as correções de maneira honesta, sem prejudicar ninguém.
                A senhora me entendeu?”
                Mais ou menos, respondeu.
                Voltei a explicar com mais didatismo, na ingrata missão de traduzir o economês para a linguagem de gente.
                “É, mas na minha casa o senhor não vai ter o que pesquisar não... O senhor não vai ter nada pra escrever, eu sou muito pobre, moço. O senhor só vai perder o seu tempo. Por que não escolhe outra casa?”
                “Mas é assim mesmo. Enquanto eu estou aqui bisbilhotando a vida da senhora, tem um colega meu bisbilhotando a casa de alguém lá na Barra, em Copacabana, Ipanema, apurando o que o cara faz, como ele gasta o dinheiro dele: passeia duas vezes por ano na Europa, a família tem quatro, cinco carros...” Depois a gente junta tudo e tira uma conclusão.
                Quanto mais pobres eu entrevistar melhor, senão vai ficar parecendo que o povo brasileiro está numa boa, cheio de grana.
                Vou lhe explicar como funciona a pesquisa: durante quinze dias eu venho aqui na sua casa, dia sim dia não.
                A senhora vai marcar a melhor hora pra senhora e eu venho. Tudo o que a senhora comprar vai anotar, ou então guardar as notinhas, para eu anotar. Não pode esquecer nada.
                Tem gente que não pega nota, muitos comerciantes não dão nota**, então elas compram e só guardam depois que eu confiro. A senhora também pode fazer isso...”
                “Moço! Eu já falei pro senhor, na minha casa o senhor não vai ter nada pra anotar, eu não compro nada, moço”.
                “Vamos ver.”
                Saquei os questionários e comecei a preencher os campos: fossa séptica? Não, sumidouro.
                Água encanada? Não, poço rudimentar.
                Energia elétrica? Não, a fornecedora de energia levou a fiação a alguns anos atrás, por falta de pagamentos.       
                Gás engarrafado ou canalizado? Lenha.               
                Idade? Oitenta e um anos.
                Mora mais alguém no domicílio? Não.
                Rendimentos? Zero.
                “A senhora vai me perdoar, mas vou lhe fazer umas perguntas indiscretas, vou me meter na sua vida: a senhora está viva, então a senhora come, não é? Como é que a senhora faz para comer?”
                “Eu como sopa de tutano”.
                “Como assim?”
                “O açougueiro aí do lado guarda osso pros meus cachorros. Com os que tem tutano ou algum pedacinho de carne, aquele sebinho amarelo... Não é aquele sebo branco não. Aquele só pra bucha de balão (ela sorri)... Aí faço uma sopa. Dá sustança”.
                “Sim, mas só água e osso?”
                “Não. O moço do sacolão lá da praça deixa eu catar coisas amassadas, meio podres. Eu tiro a parte podre, o lado amassado e aproveito o resto. Só dá muita aporrinhação. O pessoal que cria porcos me enxota, aí baixo o barraco, xingo mesmo”.
                “E como é que a senhora tempera a sopa? Sal, louro...”
                “Eu não uso sal já tem bons anos. É até bom, a minha pressão é alta”.
                “Pelo que estou vendo a senhora é vaidosa: de bainho tomado, penteadinha... O tempo passou mas a senhora é mulher, não é mesmo?”
                Ela sorri, envaidecida.
                “Como é que senhora se vira pra se enfeitar, se vestir, comprar sabonete...”
                “Eu vou na casa de uma ex-patroa. Ela me dá umas roupas que não quer mais, roupas boazinhas ainda, aí tiro uma onda.
                Quando o senhor voltar aqui o senhor vai ver, vou me arrumar direitinho. Me dá um dinheirinho também, mais que a passagem, aí eu compro ração pros meus filhos (apontou os dois cãezinhos) e carne de verdade pra mim”.
                “E o asseio, sabonete, perfume, desodorante...”
                “Perfume? Desodorante?” Fez um muxoxo e meneou a cabeça em negativa.
                “E o sabonete? Como é que a senhora faz para tomar banho?”
                “Tem uma coisa que eu não ia dizer. Vergonha, sabe? Uma vez por semana eu vou no lixão, no depósito de lixo.
                Os lixeiros recolhem o lixo e botam numas caçambas, num terreno aqui perto. Aí vou lá e fuço.
                Esse povo é muito luxento, esbanjador. Tem cada pedação de sabonete, sabão quase inteirinho... Mas não é só isso não. Se joga uma lata de óleo fora tem sempre um restinho no fundo, vinagre no fundo, cloro... Parece que deixam pro santo (risos dela. Ainda consegue achar engraçado!)”
                “Mas comida a senhora não pega...”
                “Não! Pegava, mas aí jogaram um defunto na lixeira e criei nojo. Toda vez que ia comer coisas que peguei lá eu me lembrava e dava vontade de vomitar. Aí parei de pegar”.
                “Aí a senhora só come sopa de tutano?”
                “É.”
                “A quanto tempo?
                “A bastante tempo. Antigamente eu ia em Santa Cruz, os restaurantes jogam comida boazinha fora. O freguês só dá uma beliscadinha e devolve o resto, aí eles jogam fora”.
                “Parou por quê?
                “Era muito mendigo, muita gente bêbada, drogada. Olha a minha casinha, eu não sou mendiga.
                E também por causa da distância, é muito longe, as minhas pernas não aguentam mais. Às vezes eu saía de casa às sete, sete e meia, e chegava lá quase na hora do almoço, é muito longe, as pernas doem muito”.
                “Não toma café?”
                “Tomo.”
                “E aí?”
                “Tem uma vizinha... Por favor, se o senhor for fazer pesquisa lá não diz nada, ela pode implicar... Ela pega o pó de café e embrulha numa bolsinha de supermercado, limpinho. Só passa o café uma vez e joga o pó fora. Aí disfarço, disfarço, vejo se não tem ninguém olhando e pego. Aí faço o meu cafezinho.”

                Sem ter o que anotar, despeço-me, marcando encontro para depois de amanhã, a essa mesma hora, me espera, tá?    
                   
*N. E.: Cruzeiro – moeda na época.

** N. A.: em alguns bairros a informalidade comercial (clandestinidade fiscal) chega a quase cem por cento, de maneira que os comerciantes não têm como emitir notas fiscais.


II

                Dia de visitar a velhinha da sopa de tutano.
                Cada vez que passo em frente de um mercado ou de um sacolão me sinto cúmplice da situação: não posso comprar nada para ela, para não influir no resultado da pesquisa.
                Situação desgraçada.
                Bato no portão. Lá vem ela sorridente.
                Faço as perguntas de praxe. Nada a acrescentar nos questionários.
                Na saída um pedido meu: “a senhora se incomoda se depois de amanhã eu vir antes do almoço? É que tenho um compromisso, uma assembléia. Tenho que me reunir com os meus companheiros”.
                “O senhor é que sabe. Eu fico sozinha mesmo... A qualquer hora que o senhor vier vai me encontrar”

III

                Terceira entrevista. Chuviscando chuva de vento, fria pra danar.
                Alpendre pequeno, inútil contra a chuva e o vento, sou convidado a entrar.
                Cômodo único com um banheirinho no canto, sem porta, o que foi uma cortina um dia o separando do cômodo, paredes caiadas no dia da independência, no século XIX, mas de chão limpo, varridinho.
                Um fogão sem a porta do forno, transformado em fogão de lenha.
                Achei muita intromissão perguntar se foi ideia dela ou já ganhou ou encontrou assim. Só observei.
                Uma cômoda com três pés e um dos cantos apoiado em lata de leite em pó, um colchão velho, de solteiro, apoiado na parede, três banquinhos de madeira, folhinha com reprodução de uma paisagem europeia e um quadro com a foto de um casal de crianças, quase adolescentes, abraçadas e sorrindo.
                “Quer tomar um café? Vou passar um cafezinho pra gente.”
                Pensei em dizer que não podemos comer nem beber na casa do informante para não interferir na pesquisa, uma mentira que já usei em ocasião semelhante, desde que bebi...

                Estrada da Ilha de Guaratiba, um sítio quase fazenda, gado bonito, bem tratado.
                No meio da entrevista, a dona da casa: “o senhor aceita um copinho de leite? Leite fresquinho, tirado a pouco.”
                Uma e tal da tarde, sem almoço, “obrigado. Aceito sim senhora, sem açúcar, por favor”.
                Levo o copo (duplo) à boca... Doce e com um sabor meio estranho, chegando a leite de coco misturado com óleo de soja.
                Como devolver? E a educação? E a cortesia? É beber tudo num gole só e segurar a careta.
                Pouco depois chega a filha da informante, já conhecida de visita anterior. Me cumprimenta e vai para a cozinha, pergunta em voz alta: “mãe, cadê o leite que deixei em cima da pia?”
                “O moço do IBGE bebeu, eu dei a ele”.
                “Pô, mãe, era o leite que a dona fulana pediu pro filho dela, asmático. Era leite de ÉGUA, mãe”.

                Mas vou tomar o café da velhinha. Tenho que ser solidário pelo menos nisso.
                É torcer para que a vizinha seja limpa e coloque o pó num saquinho de supermercado mesmo.
                Quanto a ser pó reutilizado...
                Também tive a minha época de vacas magras, magérrimas, flageladas, reaproveitando o pó duas e até três vezes.
                O café até que ficou gostosinho, com o mesmo sabor da minha miséria pretérita.
                “Da minha última visita, anteontem, para cá a senhora comprou alguma coisa?”
                “Não, nada”.
                “Ontem almoçou...”
                “Tutano”
                “Jantou...”
                “Nada. Eu não janto não senhor”.
                “Café hoje de manhã.”
                “Igual a esse que o senhor está tomando. Só cafezinho.”
                “Posso lhe fazer uma pergunta indiscreta, que não tem nada a ver com a pesquisa, é curiosidade minha?”
                “Pode”.
                “A senhora não vai ficar zangada?”
                “Não, pode perguntar. Vergonha é roubar.”
                “De noite a senhora fica no escuro? No primeiro dia a senhora disse que não tinha energia elétrica, a Light levou o relógio e a fiação, e agora eu não estou vendo nenhum lampião... Como é que a senhora faz?”
                “Vela, ué.”
                “Peraí! Sabão e sabonete a gente não gasta até sumir, jogam no lixão e a senhora pega. Tudo bem. Mas vela a gente usa até sumir. No lixão não tem vela. A senhora disse que não compra nada... De onde vêm as velas?’
                Pela primeira vez a velhinha fica desconcertada, envergonhada, ruborizando.
                “Eu pego no despacho... Peço licença e pego. O senhor acha que eles podem me prejudicar? Eu pego porque preciso, não é falta de respeito.”
                Difícil conter as lágrimas, mas ainda consigo.
                “Acho que não, eles sabem que é necessidade”.
                Tentando amenizar o clima, pioro tudo: “e aquelas duas crianças bonitas no quadro, são seus netos?”
                “Não senhor.”
                “Seus filhos quando eram crianças?”
                “Não, nada disso. Esse quadro eu achei no lixão, nunca vi esses meninos.
                Botei aí pra enfeitar, mas o senhor acredita que fui criando amor? Às vezes fico olhando, imaginando que são meus netos, que vêm me visitar... Eu rezo por eles, pra eles serem felizes... Já até sonhei com eles, acredita? Estavam aí correndo no quintal, felizes da vida, brincando com os meus filhos (os cachorros)... Eu fiz bolo de chocolate pra eles... O senhor está chorando moço! Por que é que o senhor está chorando?”
                Presença de espírito: “desde o primeiro dia que vim aqui percebi que a senhora é muito parecida com a minha avó, muito mesmo, foi ela que me criou... Lembrei que ela faleceu e me emocionei (mentira. A essa hora vovó está fazendo crochê).
                “É a vida. Todos nós vamos morrer. Não fica triste não. Foi ela, depois vai sua mãe, o senhor tem mãe viva? Depois o senhor , seu filho, seu neto... Só quem não morre é Deus.”
                Imagem tosca, a minha, fingindo sorrir ao mesmo tempo que soluçando.
                “O senhor se incomoda?” As mãos dela, magrinhas, a pele ressecada, enrugada, esticadas na direção do meu rosto, prontas para secar as minhas lágrimas, mundo cruel, sociedade injusta, governos criminosos.

IV

       Despeço-me da velhinha beijando-lhe as mãos.
                Ando uns poucos metros até a pracinha e aguardo o ônibus, a cabeça a mil, o peito a milhão.
                Desço do ônibus e caminho até a estação, uma hora de trem.
                Chego ao local da assembleia meia hora antes.
                Brincalhão, permanentemente bem humorado, sacaneando um ou outro, com trânsito fácil e amistoso entre os adversários políticos, chego sério, cabisbaixo.
                Cercam-me: “o que foi que houve Chiquinho?”, “você está bem, Chiquinho?”... Ouço uma voz feminina no meio da multidão: “o Chiquinho está estranho, calado”. Não a identifico.
                Duas companheiras mais próximas me tiram do bolo: “vamos tomar um refrigerante, vem com a gente”.
                Sentamo-nos longe do equipamento de som, do palanque: “o que foi que houve, Chico. A gente pode ajudar em alguma coisa?”
                “Não, é coisa minha, besteira.”
                “Como besteira! Você está arrasado, cara. Todo mundo que te conhece notou”
                “Imagina que estou pesquisando um domicílio... Uma velhinha sozinha. Ela só come sopa de osso na água pura, nem sal bota, e ocasionalmente batatas podres. Caramba! A mulher achou uma foto de duas crianças no lixo, pendurou na parede e fica se iludindo que são netos dela, imaginando que estão brincando no quintal... Até sonha com as crianças... Ela não tem água, luz, gás... Porra nenhuma. Imagina que ela pega as velas da macumba, nas encruzilhadas, pra não ficar no escuro. Porra, cara, isso é surreal, isso não existe
                Ela mora a cinquenta metros do mercadinho, em frente a uma praça onde estacionam os automóveis e as crianças ficam brincando no parquinho, e ela alheia, cara. O açougue é do lado, quase no quintal dela. Ela passa pelo açougue, pelo mercadinho, na porta, e vai no lixão pegar o que precisa”.
                “Olha, para de chorar que a assembleia já vai começar, está todo mundo olhando a gente. Me admiro você, um cara de posições duras, firmes...”
                “Você parece que esqueceu o cara*, companheira: ‘temos que ser duros, mas sem perder a ternura!”
                “Vai fazer falação?”
                “Não sei, estou sem controle emocional.
                A gente decidindo aqui se vai fazer outra greve por aumento salarial enquanto tem gente que nem comer come.
                A gente não tem nada de revolucionário, somos revolucionários de merda. A gente é corporativista, isso sim. Revolucionário é quem está disposto a ir às armas, quebrar a porra toda, botar pra fuder.” 
                Um companheiro se aproxima. “Não te inscrevi. Vou esperar a I. se inscrever para inscrever você depois. Fica atento que ela vai querer falar depois de você.”
                “Acho que não vou falar não, bicho. Não estou a fim.”
                “Medrou? Eles vão tentar jogar na greve, a gente não se organizou, vai ser um fiasco. Os analistas só confiam em você”.
                E brinca:”intelectual só confia em intelectual”.
                “O intelectual está mole”, respondo.
                Maldando, sem entender que estava me referindo ao meu estado de espírito naquele momento, as meninas caem nas risadas: “esse é o Chiquinho que a gente conhece!”
                Caminho até a mesa condutora dos trabalhos, alguém me convida: “quer ficar na mesa?”
                “Não, é melhor eu ficar solto”, respondo.
                “Me inscreve aí de primeira, quero ser o primeiro a falar, vou dar o tom dessa porra.”
                “Já tem cinco inscritos, Chico.”
                “Anula. A assembleia nem começou como é que se inscreveram?”
                “Vai ser uma chiadeira geral, vai dar merda”.
                “Deixa dar, eu seguro...”
                A assembleia vai começar.

V

                “Companheiros! Vamos começar os trabalhos desta tarde. A mesa está composta por fulano, presidente; beltrano, primeiro secretário, e sicrano, segundo secretário.
                Quem discorda da presença de alguém na mesa, tem alguma sugestão de troca de nomes a fazer ou pretende apresentar outra mesa, alternativa, que se manifeste agora.
                Ninguém? A seguir será feita a leitura da ata da assembleia anterior.
                Enquanto a ata estiver sendo lida estará aberto o espaço para a inscrição dos oradores...”
                “Ei! Eu já me inscrevi.”
                “Eu também.”
                “Isso é manobra, estão manobrando. A assembleia ainda nem começou e já estão manobrando?”
                Trabalhos interrompidos. Não vou me meter, lógico, senão perceberão que sou o maior, senão o único interessado na manobra.
                Os mais espertos me vigiando, tentando ver o meu dedo na confusão, para neutralizar qualquer brecha capaz de me dar vantagem.
                Finjo conversar com as duas companheiras, de costas para a mesa, em aparente total desinteresse.
                Concluem que não tenho nada a ver. Estou liberado.
                Alguém me chama: “Chiquinho vem resolver isso aqui que está difícil”.
                Chego, fingindo não saber de nada: “O que é que está havendo?”
                Todo mundo fala junto: “eu me inscrevi e agora estão dizendo que não vale”, “tem uma lista aí de oradores e querem anular”, “a assembleia ainda nem começou e tem uma porrada de inscritos, isso é anti regimental”.
                Falo: “peraí, companheiros, a gente está esquecendo do principal, a soberania é do plenário, aqui a gente não vai resolver nada. Vamos ficar nesse bate boca a tarde toda pra nada. Encaminha o problema para a mesa e ela encaminha para a votação. Parece que é a primeira assembleia de todo mundo!”
                Alguém chama o presidente da mesa. Explico: “está havendo uma divergência aqui. Elaboraram uma lista com os nomes dos companheiros que farão uso do microfone e acham que a lista é válida. Outros companheiros acham que não, que nem todo mundo foi avisado dessa lista, que isso é manobra. No meu entendimento quem decide isso é a categoria. Entendo que o companheiro deve encaminhar para a votação, com defesa prévia das posições.”
                “Dois minutos está bom?”, o presidente concordando com o meu encaminhamento.
                Retruco: “um minuto está de bom tamanho!”
                “Um minuto então.”
                Vai ao microfone: “companheiros, estamos num impasse que deve ser resolvido por todos nós, democraticamente. Há uma lista com nomes de oradores a ocuparem esse espaço, lista essa elaborada antes que começássemos os nossos trabalhos. Há companheiros que entendem que esta lista é válida e companheiros que entendem que não.
                A mesa encaminha a questão de maneira democrática, através de votação, com defesa prévia de cada posição por um minuto, improrrogável.”
                Vira-se para o lado do palanque, onde estamos todos nós da direção do sindicato, e representantes dos partidos e correntes políticas: “quem vai defender a lista?”
                “Eu”. Uma companheira combativa e aguerrida, para desespero do pai, herdeira única de uma imensa boiada no interior de São Paulo. Foi para a capital estudar agronomia e se tornou comunista, querendo dividir todas as boiadas do país com os sem-terra.
                O secretário anota o nome.
                “Quem defende contra a lista?”
                “Eu”. Falo alto e levanto o braço.    
                Mais dois gritam “eu”, levantando o braço.
                Não me incomodo, já esperava. Se eu me apresentasse sozinho poderiam ver manobra, iniciando-se uma nova confusão.
                Já tendo entendido o que estava acontecendo, os companheiros: “deixa o Chiquinho. Deixa o Chiquinho...”
                O mesário anota o meu nome.

VI

                “Quem fala primeiro?”, pergunta o mesário.
                “Eu!”, a companheira certa de que levaria, quatro extremistas entre os cinco nomes da lista, prontos para semear a divisão (os extremistas políticos, pela estrutura mental, são exatamente iguais aos fanáticos religiosos impondo pensamento único, o deles, porque certos).
                Com a cabeça faço que concordo, para o mesário.
                A pobre caiu na arapuca.
                Nunca gostei de ser um dos primeiros a fazer uso da palavra, a menos que esteja determinado a direcionar o assunto, dar o tom e a temperatura das discussões, como é o caso hoje.
                A poucos dias saímos de uma greve e os incendiários de sempre, certos de que estamos às portas de uma revolução socialista*, que é só “dar um empurrãozinho”, os Bin Ladens brasileiros, apostando no quanto pior melhor.
                Querem levar a categoria para mais uma greve, inoportuna e equivocada, na minha visão e de toda a direção do sindicato, a categoria dividida, quase rachada.
                Ao contrário do que possa parecer, é muito mais difícil impedir uma greve do que jogar os trabalhadores na aventura.
                Muito mais difícil ainda segurá-la em momentos de insegurança, quando cortam pontos, suspendem pagamentos de salários e interrompem as negociações, com ameaças de demissão. Nesses momentos é que se forjam os líderes.
                Em situações assim de pouca valia são os partidos, tendências, grupos, correntes, facções... A situação na mão de quem tem coragem e liderança, colocando o peito na frente, “me acompanha, galera. Confia que a vitória é nossa!”, e aqui rendo homenagem a Lula, o melhor nisso.
                Normalmente falo por último, a menos que seja interpelado por alguém no microfone ou não sinta firmeza de argumentação em algum companheiro afinado com as minhas posições.
                Se isso acontece, me inscrevo e reafirmo o dito pelo companheiro, com mais veemência, aprofundando o dito e deixando clara a minha posição.
                Falando depois tenho como explorar as contradições e vacilações dos que me antecederam e perceber o estado de ânimo e as inclinações dos ouvintes, de calcar o que vou dizer em cima do que foi dito, reafirmando ou contestando, além de gerar expectativa entre os que conhecem as minhas posições independentes, garantia de silêncio e atenção.
                Sou uma peça mais ou menos estratégica no movimento.
                Primeiro pela independência: não sou filiado a nenhum partido político, não me alinho a nenhum comitê central ou direção de qualquer corrente, à direita e à esquerda.
                Segundo, por causa do conteúdo teórico. Os companheiros se formaram na luta, no dia a dia, em greves, assembleias, reuniões... Pouco tendo lido.
                Mesmo sem pretensões políticas, por inconformismo e curiosidade, busquei as fontes teóricas do socialismo (Hegel, Marx, Lênin, Elgels, Rosa de Luxemburgo, a turma de Frankfurt: Althusser, Adorno, Marcuse, Benjamin), bem antes de ser um militante, o que me permitiu a isenção em relação a grupos, partidos e facções.
                Por fim, Papai do Céu, me deu duas ferramentas preciosas: a voz (ó vaidade insana! Mas não tenho culpa, os companheiros: “quando você solta o vozeirão, danou”, “mas também com essa voz é mole”... Desculpe a imodéstia. Tenho culpa?) e o didatismo, aprendido nas salas de aulas.
                Tudo isso junto me faz uma espécie de ponte entre a turma de curso superior, os que detêm cargos, e a galera da base da pirâmide, nas negociações e nos momentos de impasse.
                Se isso é bom, gera muito respeito, também gera uma oposição desgraçada, ferrenha, que chega à raiva e quase às vias de fato quando manobro nos bastidores, como estou fazendo hoje.
                Agora, por exemplo, posso ver irritação entre os companheiros pertencentes à corrente da companheira que se precipitou, decidindo falar antes de mim.
                Imaginam que farei a festa e mais tarde, envergonhada, ela fará autocrítica no comitê central deles, retratando-se pelo “voluntarismo inconsequente”, “a companheira levantou a bola pro Chiquinho, será que não aprende?”.

* N. A.: um absurdo. Há correntes políticas que esperam revoluções socialistas a qualquer momento, com a implantação da ditadura do proletariado, com a mesma certeza dos fanáticos que esperam o apocalipse para o próximo sábado, às dezoito horas, em frente à igreja que frequentam. É de doer o saco!

VII

         “Com a palavra a companheira I., da Delegacia, que defenderá a posição dos que acham que a lista é válida e deve ser acatada:”
                “Companheiros! Já é prática antiga e consagrada a negociação para a inscrição de oradores, mesmo antes do início da assembleia. No nosso entendimento não houve violação de regimento nem tentativa de esperteza ou manobra.
                Onde está escrito que não posso reservar lugar, por antecipação, num espetáculo público, num teatro ou num cinema?
                Vai atrapalhar em quê a mesa acatar a lista? Meu encaminhamento é no sentido de que se encaminhe a lista e comecemos logo a assembleia. Já estamos com quase meia hora de atraso.
                Se houvesse mais de uma lista faria sentido essa confusão, mas só há uma, redigida por acordo entre todas as tendências (protestos da maioria das correntes. Ninguém participou).
                Encaminho pelo acatamento da lista.”
                Aplausos. Avalio a intensidade, comparo com o número de presentes e... Levei!
                “Agora com a palavra o companheiro Chiquinho, da Executiva Estadual, que defenderá a posição dos que acham que a lista não é válida e não deve ser acatada:”
                “Boa tarde, meus companheiros! Não entendemos o absurdo de se confeccionar uma lista de oradores sem que haja democracia, redigida na frente de todos e com todos tendo a oportunidade de ver os seus nomes figurando na lista.
                A companheira afirmou que esta é uma prática antiga e consagrada. Se é antiga não sei, mas que está absurdamente se consagrando é uma verdade.
                Quero lembrar aos meus companheiros que até poucos anos, durante a ditadura que infernizou este povo, era prática antiga e consagrada não deixar os trabalhadores se reunirem em assembleia, com a repressão nos calcanhares de quem ousasse. E estamos aqui reunidos. E por quê? Porque o antigo e o consagrado não são sinônimos de eterno e muito menos de correto.”
                “Gostei do exemplo da companheira, do teatro e do cinema, mas as reservas de ingressos devem ser feitas a qualquer um a qualquer tempo, ou devem ser feitas junto ao bilheteiro ou ao gerente do estabelecimento? Até onde sei, quem conduz os trabalhos aqui é a mesa, que não organizou nem recebeu lista nenhuma...”
                “Concluindo, companheiro, olha o tempo!”. (a mesa diretora)
                “Se admitirmos essa prática, na próxima assembleia vamos ter dez listas prévias, cada uma confeccionada por uma corrente, e aí quero saber dos critérios para determinar qual será a válida...
                “Encaminha, companheiro, encaminha, olha o tempo!”
                “Nesse sentido encaminho pela rejeição da lista, para não oficializarmos esse procedimento antidemocrático.”
                Aplausos, sinto que levei.
                Um dos partidários da lista, companheiraço, apesar de adversário em quase todas as situações, ri e me dá o dedo.
                Morrerá daqui a três anos, da maneira mais estúpida possível: escorregará no ladrilho do banheiro, durante o banho, em casa, e baterá com a cabeça, fraturando o crânio, deixando na orfandade duas meninas lindas, os olhos verdinhos como água, como os do pai, de quatro e seis anos.
                “Vamos para a votação: quem é a favor da lista levanta o braço. Os que são contra permaneçam como estão”.
                Conferimos, visualmente. São tão poucos braços levantados que não há necessidade de contagem ou avaliação.
                “Agora os que são pela rejeição da lista, levantem o braço. Os que são a favor da lista permaneçam como estão”.
                Mais de dois terços, lista no lixo.

VIII

                “Não sendo válida a lista, vamos dar continuidade aos nossos trabalhos com a leitura da ata da assembleia passada, quando...”
                “Questão de ordem”, alguém grita.
                “O companheiro fez uma questão de ordem. Chegue aqui ao microfone e exponha”
                O rapaz, maria vai com as outras, votando sempre com o grupo que está em vantagem nos debates, esclarece a questão de ordem: “entendo que a leitura da ata vai demandar pelo menos meia hora, mais um tempo pela aprovação do plenário. A minha questão de ordem é que a direção do sindicato imprima cópias da ata e envie a toda a base, para que sejam feitas alterações ou não, com a consequente aprovação.”
                “A mesa entende e acata a questão de ordem, concordando”.
                “Há necessidade de defesa? Alguém quer defender contra a questão de ordem?”
                Espera uns segundos e “ninguém? Então os que forem a favor da leitura da ata levantem o braço. Os que forem a favor da questão de ordem apresentada pelo companheiro permaneçam como estão.”
                Ninguém levanta o braço.
                “Passemos então ao segundo ponto de pauta: informe da direção estadual.”
                Os companheiros olham pra mim. Faço um disfarçado sinal que não com o dedo e escolhem outro.
                Os menos atentos às estratégias políticas não entendem a minha atitude, declinar do meu nome, deixando passar a oportunidade de puxar a brasa da sardinha para o lado dos que estão contra a greve.
                Explico: aquele que passa as informações: como estão se dando as negociações, o que está acontecendo em outras unidades da federação, a predisposição da categoria para determinadas decisões, o que rolou nas reuniões da direção do sindicato, a posição do sindicato... Deve passar de maneira exata e isenta, sob pena de estar manobrando, usando a categoria como massa de manobra, uma atitude imperdoável no sindicalismo.
                Hoje estou muito passional para passar informe.
                Há outro motivo também: se eu passar o informe, ficarei pelo menos vinte minutos no microfone.
                Como pretendo ser o primeiro a falar, já estarei por muito tempo no microfone, permitindo que se acostumem comigo, o que diminuirá o impacto das minhas palavras.
                Agora é hora de ficar quietinho no meu canto.
                Chamo um companheiro, combativo como o raio, e: “eu vou disfarçar, inventar algum motivo, e vou até a mesa. Quando eu chegar lá, você encaminha uma questão de ordem: abrir as inscrições de oradores durante o informe. Mas só quando eu estiver lá.”
                O companheiro entende, sorri, e fala baixinho, para que só eu ouça: “você é foda!”

IX
         Me aproximo do palco e, ao invés de subir a escadinha, por trás, apoio as duas mãos e jogo as pernas, lembrando as escaladas de muros na infância, a cata de frutas nos quintais, da bola que alguém isolou e das queixas em casa.
                Caio de cócoras e me levanto, passando por trás do companheiro que está no microfone.
                Parece uma atitude despretensiosa, mas os meus movimentos chamam a atenção de boa parte dos assistentes sobre mim
                Aproximo-me da mesa e me dirijo ao secretário, procurando qualquer coisa para falar: “acho que devemos limitar o número de oradores, senão a assembleia vai varar a noite” (é tão óbvio que não justifica a minha presença ali).
                Olho para o companheiro. É o sinal. “Questão de ordem!”, ele grita.
                Interrompo imediatamente o que estou dizendo e fico ao lado da mesa, atento, “para saber” qual é a questão de ordem (as questões de ordem interrompem qualquer coisa, já que são para ordenar os trabalhos).
                “Há uma questão de ordem ali do companheiro. Qual é a questão?”, afirma o que está no microfone, conduzindo a assembleia.
                “Uma vez que a ata não vai ser lida, sugiro que as inscrições sejam abertas no momento em que o companheiro começar os informes, se estendendo por cinco minutos. Se necessário, abre-se um novo espaço de inscrições.”
                “Encaminhamento acatado, a mesa acata o encaminhamento do companheiro. Bem, vamos então aos informes...”
                Gesto largo, voz firme, para que todos percebam, me inscrevo: “põe o meu nome!”
                A mesa me inscreve. Agora é me afastar o máximo possível do bolo, para não ouvir as homenagens à minha mãe nem cair na tentação de ceder a alguma provocação, reagir a uma ofensa mais pesada.
                Serei o primeiro a falar.
                Enquanto me afasto posso ouvir: “põe o meu nome”, “me inscreve aí”, “já botou o meu nome?”, “ei, eu tô inscrito. O meu nome já taí?”, “o companheiro aqui está se inscrevendo. Fala alto, companheiro!”...
                Agora ficarei sozinho num canto, mudo e alheio a tudo o que está acontecendo, concentrado, sem pensar em nada, para que as ideias fluam .
                Três ou quatro minutos depois retorno para o seio do grupo.
                Já sou outro, “inspirado”, tenso, impaciente, ansioso para falar!
                “Terminado os informes, vamos à rodada de falações. Cada um vai ter dez minutos com três minutos de tolerância. A mesa vai ser rígida. No nono minuto vamos avisar e no décimo segundo vamos pedir para concluir. Se o companheiro não acatar, vamos cortar o som do microfone. É uma atitude autoritária, mas a única maneira de manter a ordem. Acordados? Vamos então ao primeiro orador (examina a lista): o companheiro Chiquinho, da Executiva Estadual.”
                Caminho lentamente. Subo as escadinhas, aproximo-me do microfone e por uns cinco ou dez segundos permaneço calado, correndo os olhos pela multidão.
                Isso é estratégico. O silêncio obriga à atenção os que estão conversando. À concentração os que querem ouvir e, mais importante, que eu me assenhore da situação, respirando fundo, duas, três vezes, para relaxar os músculos tensos, principalmente os da boca, do rosto e das vias aéreas superiores, e solto a voz:

X


                    “Meus companheiros, uma boa tarde. Não vou me pronunciar sozinho sobre a conveniência ou não de mais uma greve nesse momento.
                Farei algumas considerações, e a partir delas tiraremos juntos, juntos (alteio a voz), uma conclusão.
                Para conhecer êxito, para ser bem sucedido, qualquer movimento social deve estar cercado de condições objetivas e subjetivas favoráveis, ou pelo menos em condições de se tornarem favoráveis, sob pena do fracasso, da derrota, da frustração, do enfraquecimento, nos obrigando a ter que começar tudo de novo, do zero.
                E quais são as condições objetivas?
                Uma greve é cara. É companheiro em avião, para lá e para cá, negociando, organizando, elaborando táticas e estratégias... É hospedagem, alimentação... É publicação de boletim todo dia, às vezes mais de uma vez por dia, aluguel de locais para a realização das assembleias...
                Se retêm os pagamentos, o sindicato empresta, doa, dá cestas básicas...
                Paga despesas de justiça para impetrar mandatos de segurança, custear habeas corpus...
                É carro de som, equipamento de som... E tudo isso custa dinheiro.
                Estamos saindo de uma greve longa, cara, dispendiosa, a caixa do sindicato está combalida, no vermelho. De onde os companheiros acham que virá a grana que custeará outra greve?
                Esta é a primeira condição, e qual é a segunda?
                Estamos de presidente novo. Os interesses da classe dominante tem gerente novo, que tomou posse a pouco tempo, não deu ainda para a máscara cair.
                É o super-herói, o pai do povo, o caçador de marajás.
                Está aí com o apoio da maioria do povo, com o apoio da mídia oportunista farejando financiamentos, publicidade oficial a preço de ouro, perdões de dívidas.   
                E pela ótica dele quem são os marajás? Os reis da soja, os reis do gado, os reis do garimpo, os reis das telecomunicações? Não! Sabemos que não.
                Os marajás somos nós, os funcionários públicos, e publicam contracheques com salários faraônicos, sem dizer que são os de uns poucos apaninguados baba ovos de governos anteriores, de mercenários que venderam a alma à ditadura, dos aspones dos poderosos, dos servidores do poder, dos moleques de recados da roubalheira.
                Para o povo os marajás somos nós, qualquer servidor público, seja servente, contínuo ou cozinheira.
                Diante de uma nova greve qual será o discurso deles, da mídia vendida, a serviço do capital e da cafetinagem do povo? Olha só, os marajás pararam de novo!
                Fizeram greve a pouco mais de um mês, demos aumento e já estão parados, querendo mais.
                Não dirão que não nos deram o que prometeram, por acordo. Não dirão que estamos sem condições de trabalho porque o dinheiro a ser investido em tecnologia paga juros da dívida pública ou financia a especulação. Não dirão que estamos com carga excessiva de trabalho porque com contingente reduzido, para poupar o dinheiro que financia a farra federal, lá em Brasília.
                E o povo nos acreditará marajás baderneiros, e ficaremos isolados.
                Alguém discorda?
                Agora vamos à questão subjetiva: qual é a condição maior de subjetividade, senão a nossa disposição para a luta, a nossa crença em que a luta não será vã, mas culminará numa vitória?
                Os companheiros se lembram que fui um dos oradores na última assembleia, quando estávamos em greve, com tudo contra e a gente peitando, atropelando quem ousasse se interpor, todo mundo com um só pensamento: venceremos!
                Daqui de onde estou, de plano superior, olhando sobre a plenária, o que vi? Companheiros espremidos, os que chegaram atrasados sem poder entrar, nem um palmo de chão vazio.
                E o que estou vendo agora? A quadra vazia, mais da metade da quadra vazia.
                Os companheiros que não estão aqui, que priorizaram as famílias, a novela, o passeio, o futebol estão acreditando nessa greve, estão dispostos a bancar essa greve?
                A gente sabe que não.
                E dos que estão aqui agora, me ouvindo? Quantos são a favor da greve?
                 Ora, somemos os que se omitiram por discordarem com os que aqui estão e discordam e num cálculo de aritmética elementar concluiremos que a categoria não quer essa greve, que isso é coisa saída da cabeça de parte das lideranças do movimento.
                Mas vamos imaginar que a greve passe. Como vamos segurar nas portarias das unidades? Com piquetes violentos, na porrada? Isso vai deixar sequelas que dificultarão a reorganização da categoria para lutas futuras.
                A palavra de ordem em relação a essa aventura é não! Não à greve!
                Todos aqui me conhecem, sabem que não temo greves nem os que são contra as greves. Não medro nem me escondo, não amarelo, mas aprendi que o avançar cego de peito aberto é insensatez, é suicídio.
                Guerras não são feitas de avanços permanentes. Há os momentos de recuos táticos, momentos de recuos estratégicos, hora de arregimentar forças e se reorganizar porque o que importa é o resultado final, a vitória final.
                Como diziam os antigos, às vezes a gente tem que dar os anéis para conservar os dedos.
                Não estou propondo o recolhimento nem o abandono, só o recuo temporário e pensado, a pausa para a reorganização, para que se crie de fato as condições objetivas e subjetivas...”

                Nesse momento o rosto da velhinha, etéreo, leve, enorme, em ondas, pairando como um balão junino, flutuando sobre a multidão, suas mãozinhas esquálidas sobre o meu rosto, enxugando as minhas lágrimas, e sua voz: “sopa de tutano”, “eu rezo por eles, finjo que são meus netos”, “fiz bolo de chocolate pra eles”, “eu peço licença e pego a vela no despacho”, “esse povo é esbanjador, deixa sempre um pouquinho de óleo no fundo da lata”...
                O rosto e a voz de um país que não se reúne em assembleia. Não encaminha questões de ordem ao governo, não manobra em favor dos próprios interesses. Que não sabe o que é assembleia, questão de ordem, manobra. E mudo o tom:
         “Até agora me coloquei à categoria como um todo. Agora quero falar às lideranças aqui presentes e a todas as lideranças desse país, às lideranças independentes e às pertencentes a todos os partidos de oposição, a todas as correntes, tendências e facções.
                Somos todos egoístas, vaidosos, presunçosos (começa um burburinho, respondido por um exército de pchiiiiiiiiii!!!!, pedindo que se calem).
                Estamos em assembleia, para quê? Aumento salarial!
                A essa hora outras categorias também devem estar em assembleias. Quem não estiver deve ter alguma programada, e para quê? Reivindicação salarial, melhoria nas condições de trabalho, penduricalhos salariais: vale transporte, ticket alimentação... E tudo se esgota aí.
                O nome disso é sindicalismo de resultados, uma linha auxiliar desse neoliberalismo safado, fabricante de indigentes.
                É claro que temos que lutar por isso, nos organizar para conquistar e manter isso, mas a luta não se esgota aí. A luta começa aí!
                Falamos por nós e só por nós, e isso tem nome corporativismo e não sindicalismo.
                Quem fala pelos sem voz, quem corre atrás de comida para os sem nada?
                É preciso que façamos assembleias, paralisações, greves, passeatas? Sim, claro.
                É preciso que outras categorias, todas as categorias façam paralisações, greves, passeatas? Sim, claro.
                Cada uma por si, como estamos fazendo? A resposta é não.
                É preciso que façamos juntos, em bloco, de maneira firme porque paralisações, greves e passeatas são só etapas de uma luta maior e que envolve toda a sociedade. Não será com paralisações, greves e passeatas e muito menos com eleições que viraremos o jogo.
                O cafetão sabe que se abandonar a puta morre de fome.
                Não abrirão mão do poder, da fortuna, da capacidade de explorar e reduzir a objetos os trabalhadores.
                Não, não vão!
                São os donos das boiadas, das plantações, das terras, das fábricas e dos que nelas trabalham porque acreditam que o dinheiro compra tudo, porque tudo é coisa a ser comprada, inclusive o trabalhador.
                E se esse trabalhador não se vender, no estoque haverá sempre um disposto a se vender, no exército de reserva, o contingente dos que estão com fome, sob marquises, em barracos, sob lonas nos acampamentos de sem terras, vendo as filhas se prostituírem, os filhos se drogarem, as famílias se desintegrando.
                Quem aqui se julga revolucionário, quem aqui tem condições de dizer eu sou um revolucionário? Só porque...”
                “Um minuto companheiro”, a mesa alertando.
                “”Concluindo, companheiro: quem aqui tem condições de dizer eu sou revolucionário? Por que leu dois ou três livros de autores socialistas? Por que tem o nominho na Polícia Federal ou levou umas porradas da repressão? Por que é capaz de discutir política e encaminhar uma greve?
                Não, meus companheiros, revolucionário é (as primeiras lágrimas começam a escorrer por meu rosto) é quem está disposto a derramar o próprio sangue para transformá-lo em comida no prato de quem não tem, em abrigo para o desabrigado, em sorrisos na boca do que chora.
                O revolucionário vê longe, não se contenta com uma greve nem se basta num belo discurso...
                Todos já perceberam que choro. Sou interrompido por palmas e “é isso aí, Chiquinho!”, “bravo”, “senta a porrada, Chico”, os moderados como forma de crítica aos radicais e os radicais porque, pela primeira vez, estou assumindo um tom que é o deles, alguns atônitos, sem nunca terem me imaginado com esse discurso.
                “Doze minutos, companheiro. Conclua, você só tem um minuto.”
                Começam os primeiros gritos: “deixa ele falar”, “continua, Chiquinho”, “deixa o cara falar”, os que vão me seguir no microfone sem saber o que dizer.
                Se protestam tomam uma sonora vaia.
                Um companheiro vai até a mesa, gesticula, fala alguma coisa, e o presidente da mesa chama o companheiro que está conduzindo o microfone.
                Ele volta e me pede o microfone. “Só um instantinho Chiquinho. Você vai continuar”.
                E se virando para o plenário: “Gente, gente, calma! Assim os trabalhos vão ser suspensos. O companheiro L. da agência Copacabana declinou do próprio nome em favor do companheiro que está com a palavra. Continua, Chico. Você tem mais dez minutos com três de tolerância”.
                Me devolve o microfone.
                “Obrigado ao companheiro que fez a gentileza. Continuando, meus companheiros (estou mais ou menos recuperado, meio senhor de mim novamente): a maioria dos que estão aqui trabalham interno, em salas refrigeradas, diante de computadores.
                Conversem com a turma de campo, como eu, com a galera que trabalha nas ruas da Baixada Fluminense, da Zona Oeste: sabem o que já encontrei? E falo só por mim!
                Putas, mãe e filha, num barraco, recebendo os clientes na mesma cama, a filha com catorze anos, sabem para quê? Para comprar arroz e feijão, pagar a conta de luz.
                Gente com vinte e cinco anos e aspecto de quarenta.
                Essa semana encontrei uma velhinha, oitenta e um anos, oitenta e um anos, meus companheiros! Que só se alimenta de sopa de tutano. Isso a anos.
                Querem a receita? Água, osso que o açougueiro dá para os cachorros e batatas podres que ela pega na lata de lixo do sacolão, sem tempero e sem sal.
                E vá um filho desses furtar uma bananada no supermercado. Toma porrada e é recolhido para um depósito de menores infratores, se não amanhecer morto em algum terreno baldio ou lixão.
                Esses não vão a nenhuma assembleia!
                Querem saber o que é miséria? Poupem o rico dinheirinho do avião. Não precisa ir a Biafra, Bangla-Desh, Bombain ou Haiti. Pega o trem e vai na Baixada, vai a Campo Grande, Santa Cruz.
                É como Gil e Caetano cantam, ‘o Haiti é aqui’.
                As estatísticas são neutras, os números são frios, os índices só servem para mascarar.
                É como na piada infame: se no domingo o seu vizinho comeu uma galinha e você não comeu nada, para o IBGE você comeu meia galinha.
                Vai lá, vai lá e vê: não comem porra nenhuma enquanto tem gente comendo o galinheiro inteiro, uma granja inteira, porque ganham milhões por mês e pra quê, por quê? Isso é uma comissãozinha pelos bilhões que ajudam a sangrar desse país, todo dia, o dia todo, dia e noite, diariamente.
                São os profissionais da cafetinagem, com mandatos, estabelecendo e arbitrando os próprios salários, milhões.
                A história deles está por aí, nos jornais: escândalos, rombos, propinas, corrupção ativa, corrupção passiva, desvios de verbas, caixa dois, evasão de divisas...     
                Vocês sabem da prisão de algum deles? Nem eu.
                Pelo menos unzinho processado e condenado, pelo menos em primeira instância, unzinho só? Nem eu.
                Também já pesquisei nos bairros ricos, os mordomos, vigias e motoristas: o patrão? Está em Cancum com as crianças, levou as crianças à Disneylândia, a madame foi fazer compras em Nova Iorque, estão na fazenda no Pantanal...
                Fazem isso porque alguém come sopa de tutano para financiar.
                Essa é a democracia do brasileiro, do Brasil: direito de ir e vir sem dinheiro da passagem, direito ao trabalho estando desempregado, direito à educação tendo que trabalhar para ajudar a sustentar a família, direito a assistência médica se não morrer na fila do hospital público.
                Se pegam um pobre com um pardal na gaiola o cara vai preso, é autuado, toma porrada, vê a cara no Jornal Nacional.
                Agora, quando um filho da puta bota uma tonelada de pesticida num avião e joga sobre a plantação, matando dezenas de milhares de passarinhos, é elogiado, é empresário, benfeitor da humanidade, responsável pela fartura do brasileiro.
                É Muita hipocrisia. É a democracia brasileira.
                Que democracia é essa? Até quando tenho que me julgar livre só porque tenho o direito de chamar o presidente de filho da puta?
                Ser livre é mais.
                E só seremos livres no dia em que os que se pretendem revolucionários se promovam de grevistas a revolucionários de fato, dispostos a desbaratar as quadrilhas oficiais e institucionalizadas que nos assaltam.
                Por isso sou contra essa malfadada tentativa de greve.
                Isso é bombinha de São João lançada por quem não tem competência ou vontade política para jogar bombas atômicas.
                Não à greve!
                Obrigado.”

                Demorados aplausos, gritos, e eu como um banana, aos prantos, segurando o microfone, até que um companheiro o pega e outro me abraça, levando-me a sair do palco, uma gritaria danada.
                “Arruma água com açúcar aí, ele vai ter um troço”, “calma, Chiquinho, você está tremendo”, um mundaréu de gente em volta de mim.
                Daqui apouco estarão me dando parabéns, me enchendo a bola, uns, ou cobrando, outros: “o que foi que aconteceu?”, “eu nunca ouvi você dizer palavrão no microfone. Você estava transtornado”, “por que você estava chorando, você chorou muito, cara, perdeu completamente o controle emocional”...
                E então cairá a ficha: a velhinha está parcialmente vingada e não haverá greve. Levei.


In “Não Haverá Mais Natais”, romance autobiográfico.,

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