Perdemos Michael Jackson e muito - de
bom, será dito sobre ele, só que só agora, sem que possa colher os louros do
reconhecimento.
Falo
do homem, porque do artista, um dos maiores, senão o maior da segunda metade do
século passado, falarão muitos.
A
crítica, os fãs, o mundo já consagraram.
Compositor
de primeira (só a sinfonia Earth Song,
de parceria com Bill Botrel, já bastaria para consagrar qualquer um), cantor
afinadíssimo, dançarino sem igual no seu estilo (foi o criador do famoso passo moonwalk – passo na lua, quando parece
caminhar para frente e recua, deslizando os pés), coreógrafo, iluminador
(quando não se limitava a dar pitacos, ele mesmo dirigia a iluminação nos seus shows), inteligentíssimo, sempre à
frente do seu tempo, sacando o que viria e abrindo caminhos, dispensa
comentários, até porque não sou crítico musical, capaz de fazer o
reconhecimento merecido.
Sempre
cercado do que havia e há de melhor, escolhido pessoalmente por ele, como o
maestro Quincy Jones, cada um dos seus clipes virou obra de arte (o da música Heal the World, quando crianças de todas
as raças, religiões e países jogam futebol juntas, entre tanques, metralhadoras
e soldados, nas areias do deserto, é o mais eloqüente e bem acabado protesto
contra a estupidez humana).
A
conseqüência e o testemunho foram os setecentos e cinqüenta milhões de discos
vendidos.
Se
considerarmos os discos baixados na Internet e os discos piratas, o número
ultrapassa um bilhão e meio, um disco para cada três seres humanos do planeta.
Suas
apresentações públicas nunca contavam com menos de cem mil espectadores. No
Brasil, nos dois shows do Morumbi, em São Paulo , tivemos cento e oitenta mil em cada.
Na
televisão, normalmente em rede internacional, a audiência era de final de Copa
do Mundo.
Sem
mais comentários. Os números falam por si.
Quero
falar do homem, falo do homem, sempre criticado pelas suas excentricidades e
quase nunca elogiado pelo que fez e mostrou.
Michael
começou cedo. Enquanto seus coleguinhas de idade brincavam, o astro, ao lado
dos irmãos (Jackson-5) trabalhava.
Quando
a criança falava mais alto que o pop-star,
e se mostrava cansada de tanto ensaio, de tantos shows, de tantos estúdios,
desejando um balanço, um carrinho, uma bola, o pai usava varas ou o cinto.
Máquina
de fazer dinheiro, Michael não podia se dar ao luxo de ter infância. Era a
galinha dos ovos de ouro da família, o passaporte para a fuga da miséria.
Além
das surras, confessadas por Michael e confirmadas pelos irmãos, havia as
ofensas, que o menino interiorizou e carregou por toda a vida: “você é negro e
feio, se perder a chance vai ser nada”, “o seu nariz é ridículo”...
Estão
aí as raízes de tantas transformações físicas, através de sucessivas cirurgias
plásticas que deformaram o seu corpo, e a imaturidade, que não o deixou ficar
adulto.
Quanto
à cor da pele, segundo ele mesmo e também confirmado por seu dermatologista,
tinha vitiligo, uma doença congênita que cria progressivas manchas de albinismo
(ausência de melanina, o pigmento que dá cor à pele), deprime e aniquila a
auto-estima.
Para
contornar, ou pelo menos tentar, fez o clareamento total, acabando com toda a
melanina do corpo, ficando com a pele transparente (albina).
E
aí a reclusão, a solidão total, a tristeza, a decepção com o humano,
exteriorizados na forma de música e movimentos.
De
Michael Jackson não se disse (diremos tarde, já que está morto) que doou muitos
milhões de dólares para grupos pacifistas, para organizações anti-racismo, para
institutos de pesquisas do câncer e da AIDS.
Dele
não dissemos que protestou exigindo a libertação de Mandela, que, após a
libertação, foi pessoalmente à África do Sul colaborar com o fim do apartheid.
Dele
não dissemos que fez críticas contundentes ao capitalismo justamente no coração
do capitalismo; que se converteu ao islamismo no momento em que o Islã era
satanizado pelos ocidentais.
Dele
não dissemos que era um pacifista radical e não perdeu uma única oportunidade
de protestar contra as guerras.
Dele
não dissemos que circulava entre rabinos, padres e pastores negros, acima de
quaisquer preconceitos.
Dele
não dissemos que abraçou a causa ecológica como poucos, colaborando com a
música, com a voz e com muito dinheiro, em defesa do planeta e da mãe natureza.
Dele
não dissemos que, junto com Lionel Richie criou o movimento USA for
Africa, compôs a música We are the World
(nós somos o mundo), reuniu um elenco milionário, gravou um clipe, discos, e
arrecadou muitos milhões de dólares para crianças africanas famintas.
Calamo-nos.
Limitamo-nos a dar-lhe um título: king of
the pop, rei do pop, e muitos subtítulos: maluco, neurótico, pedófilo,
racista...
Michael
morreu só e todo endividado, principalmente com a gravadora Sony Music e com agiotas árabes,
magnatas do petróleo.
Agora,
porque morreu, reeditarão os seus discos, que voltarão a vender como água.
Colocarão os seus clipes nos horários nobres das tevês, repetirão entrevistas,
gerando em poucos dias muitos milhões de dólares, muitas vezes mais do que ele
precisava, talvez para não morrer.
O
ser humano é um animal estranho: destrói justamente os objetos do seu amor:
mãe, irmãos, cônjuge, amantes, mitos... Os que habitam o próprio coração.
Caetano
Veloso escreveu que “Narciso odeia o que não é espelho”.
Narciso,
porque nós odiamos espelhos, odiamos aquilo que nos reflete e mostra o que
somos.
Temos
o estranho hábito de matar o que julgamos feras para, depois de mortas,
retirar-lhes o couro e descobrir que dentro de cada uma havia um ser humano.
Matamos
Elvis Presley, um bêbado obeso e drogado. Matamos John Lennon, um maluco
comunista que casou com uma japonesa maluca e agora matamos Michael Jackson, um
pedófilo maluco e excêntrico.
Você
sabe o que é um quaritabe? Já provou um quaritabe, já comeu um? Não? Então pelo
menos você já escutou ou sentiu o cheiro de um quaritabe, não? Nunca viu um
quaritabe, pelo menos unzinho? Não acredito. Mas pegar pegou, não?
Não
se envergonhe, eu também não sei o que é um quaritabe, inventei essa palavra
agora, e justamente para lhe mostrar que só vemos o que conhecemos, só
identificamos o que conhecemos, só conceituamos o que existe em nós, que nossas
críticas ao próximo são comentários sobre nós mesmos e o próximo é a nossa
imagem no espelho... Por isso matamos os mitos, quebramos os espelhos. Somos
suicidas.
Somos
animais absurdos que comem a si mesmos, autofagicamente.
Cada
época histórica tem a sua forma de governo, a sua economia, ciência, religião,
filosofia... Sua arte pictórica e sua trilha sonora.
No
futuro, ao se falar da segunda metade do século XX, teremos que falar dos
Beatles e do Michael.
Daqui
a décadas, ao lado de Mozart e Bach, de Beethoven e Tchaikowsky, certamente
falarão de Michael, ouvirão Michael, som de uma época.
Ah!
Sim. A música do Michael que mais gosto?
You Are Not Alone (você não está
sozinho).
É
quase autobiográfica.
Nela
ele escreveu: “mais um dia se passou/e eu estou aqui sozinho”.
Mas
como todo grande homem que, por ser grande, ainda que só, pensa em todos, na
mesma música também escreveu:
“Preciso
da sua mão
Para a eternidade começar
Mesmo que eu esteja longe
Eu vim para ficar.”
Rio, 26/06/2009
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