quinta-feira, 23 de maio de 2013

AUTOFAGIA

Perdemos Michael Jackson e muito - de bom, será dito sobre ele, só que só agora, sem que possa colher os louros do reconhecimento.
                          Falo do homem, porque do artista, um dos maiores, senão o maior da segunda metade do século passado, falarão muitos.
                          A crítica, os fãs, o mundo já consagraram.
                          Compositor de primeira (só a sinfonia Earth Song, de parceria com Bill Botrel, já bastaria para consagrar qualquer um), cantor afinadíssimo, dançarino sem igual no seu estilo (foi o criador do famoso passo moonwalk – passo na lua, quando parece caminhar para frente e recua, deslizando os pés), coreógrafo, iluminador (quando não se limitava a dar pitacos, ele mesmo dirigia a iluminação nos seus shows), inteligentíssimo, sempre à frente do seu tempo, sacando o que viria e abrindo caminhos, dispensa comentários, até porque não sou crítico musical, capaz de fazer o reconhecimento merecido.
                          Sempre cercado do que havia e há de melhor, escolhido pessoalmente por ele, como o maestro Quincy Jones, cada um dos seus clipes virou obra de arte (o da música Heal the World, quando crianças de todas as raças, religiões e países jogam futebol juntas, entre tanques, metralhadoras e soldados, nas areias do deserto, é o mais eloqüente e bem acabado protesto contra a estupidez humana).
                          A conseqüência e o testemunho foram os setecentos e cinqüenta milhões de discos vendidos.
                          Se considerarmos os discos baixados na Internet e os discos piratas, o número ultrapassa um bilhão e meio, um disco para cada três seres humanos do planeta.
                          Suas apresentações públicas nunca contavam com menos de cem mil espectadores. No Brasil, nos dois shows do Morumbi, em São Paulo, tivemos cento e oitenta mil em cada.
                          Na televisão, normalmente em rede internacional, a audiência era de final de Copa do Mundo.
                          Sem mais comentários. Os números falam por si.
                          Quero falar do homem, falo do homem, sempre criticado pelas suas excentricidades e quase nunca elogiado pelo que fez e mostrou.
                          Michael começou cedo. Enquanto seus coleguinhas de idade brincavam, o astro, ao lado dos irmãos (Jackson-5) trabalhava.
                          Quando a criança falava mais alto que o pop-star, e se mostrava cansada de tanto ensaio, de tantos shows, de tantos estúdios, desejando um balanço, um carrinho, uma bola, o pai usava varas ou o cinto.
                          Máquina de fazer dinheiro, Michael não podia se dar ao luxo de ter infância. Era a galinha dos ovos de ouro da família, o passaporte para a fuga da miséria.
                          Além das surras, confessadas por Michael e confirmadas pelos irmãos, havia as ofensas, que o menino interiorizou e carregou por toda a vida: “você é negro e feio, se perder a chance vai ser nada”, “o seu nariz é ridículo”...
                          Estão aí as raízes de tantas transformações físicas, através de sucessivas cirurgias plásticas que deformaram o seu corpo, e a imaturidade, que não o deixou ficar adulto.
                          Quanto à cor da pele, segundo ele mesmo e também confirmado por seu dermatologista, tinha vitiligo, uma doença congênita que cria progressivas manchas de albinismo (ausência de melanina, o pigmento que dá cor à pele), deprime e aniquila a auto-estima.
                          Para contornar, ou pelo menos tentar, fez o clareamento total, acabando com toda a melanina do corpo, ficando com a pele transparente (albina).
                          E aí a reclusão, a solidão total, a tristeza, a decepção com o humano, exteriorizados na forma de música e movimentos.
                          De Michael Jackson não se disse (diremos tarde, já que está morto) que doou muitos milhões de dólares para grupos pacifistas, para organizações anti-racismo, para institutos de pesquisas do câncer e da AIDS.
                          Dele não dissemos que protestou exigindo a libertação de Mandela, que, após a libertação, foi pessoalmente à África do Sul colaborar com o fim do apartheid.
                          Dele não dissemos que fez críticas contundentes ao capitalismo justamente no coração do capitalismo; que se converteu ao islamismo no momento em que o Islã era satanizado pelos ocidentais.
                          Dele não dissemos que era um pacifista radical e não perdeu uma única oportunidade de protestar contra as guerras.
                          Dele não dissemos que circulava entre rabinos, padres e pastores negros, acima de quaisquer preconceitos.
                          Dele não dissemos que abraçou a causa ecológica como poucos, colaborando com a música, com a voz e com muito dinheiro, em defesa do planeta e da mãe natureza.
                          Dele não dissemos que, junto com Lionel Richie criou o movimento USA for Africa, compôs a música We are the World (nós somos o mundo), reuniu um elenco milionário, gravou um clipe, discos, e arrecadou muitos milhões de dólares para crianças africanas famintas.
                          Calamo-nos. Limitamo-nos a dar-lhe um título: king of the pop, rei do pop, e muitos subtítulos: maluco, neurótico, pedófilo, racista...
                          Michael morreu só e todo endividado, principalmente com a gravadora Sony Music e com agiotas árabes, magnatas do petróleo.
                          Agora, porque morreu, reeditarão os seus discos, que voltarão a vender como água. Colocarão os seus clipes nos horários nobres das tevês, repetirão entrevistas, gerando em poucos dias muitos milhões de dólares, muitas vezes mais do que ele precisava, talvez para não morrer.
                          O ser humano é um animal estranho: destrói justamente os objetos do seu amor: mãe, irmãos, cônjuge, amantes, mitos... Os que habitam o próprio coração.
                          Caetano Veloso escreveu que “Narciso odeia o que não é espelho”.
                          Narciso, porque nós odiamos espelhos, odiamos aquilo que nos reflete e mostra o que somos.
                          Temos o estranho hábito de matar o que julgamos feras para, depois de mortas, retirar-lhes o couro e descobrir que dentro de cada uma havia um ser humano.        
                          Matamos Elvis Presley, um bêbado obeso e drogado. Matamos John Lennon, um maluco comunista que casou com uma japonesa maluca e agora matamos Michael Jackson, um pedófilo maluco e excêntrico.
                          Você sabe o que é um quaritabe? Já provou um quaritabe, já comeu um? Não? Então pelo menos você já escutou ou sentiu o cheiro de um quaritabe, não? Nunca viu um quaritabe, pelo menos unzinho? Não acredito. Mas pegar pegou, não?
                          Não se envergonhe, eu também não sei o que é um quaritabe, inventei essa palavra agora, e justamente para lhe mostrar que só vemos o que conhecemos, só identificamos o que conhecemos, só conceituamos o que existe em nós, que nossas críticas ao próximo são comentários sobre nós mesmos e o próximo é a nossa imagem no espelho... Por isso matamos os mitos, quebramos os espelhos. Somos suicidas.
                          Somos animais absurdos que comem a si mesmos, autofagicamente.        
                          Cada época histórica tem a sua forma de governo, a sua economia, ciência, religião, filosofia... Sua arte pictórica e sua trilha sonora.
                          No futuro, ao se falar da segunda metade do século XX, teremos que falar dos Beatles e do Michael.
                          Daqui a décadas, ao lado de Mozart e Bach, de Beethoven e Tchaikowsky, certamente falarão de Michael, ouvirão Michael, som de uma época.
                          Ah! Sim. A música do Michael que mais gosto?
                          You Are Not Alone (você não está sozinho).
                          É quase autobiográfica.
                          Nela ele escreveu: “mais um dia se passou/e eu estou aqui sozinho”.
                          Mas como todo grande homem que, por ser grande, ainda que só, pensa em todos, na mesma música também escreveu:
                          “Preciso da sua mão
                           Para a eternidade começar
                           Mesmo que eu esteja longe
                           Eu vim para ficar.”
                                                             
                                                                           Rio, 26/06/2009



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