sábado, 15 de junho de 2013

UM DIA DE CÃO

Segunda feira, dia de plantão de todos os demônios do face, auguriando que segundas feiras são uma merda. Não acredito nisso.
                   Acordo, acendo os cinco primeiros cigarros do dia, tomo meio litro de café, faço minhas duas flexões, um abdominal e meio e, cuidada a saúde, vou ao face, agradecer os comentários da madrugada e postar o primeiro poema do dia.
                   Sinal cortado.
                   Ligo para a Vivo. Repete-se 854397 vezes uma musiquinha macabra, composta nas hostes infernais, dilacerando qualquer vestígio de paciência.
                   Mas o Senhor é o meu pastor, nada me faltará. Nem paciência.
                   Até que aparece uma voz, quarenta e dois minutos depois: se você está feliz, tecle 1; se o governo é bom, tecle 2; se você acha que o Brasil vai ser campeão da Copa das Confederações, tecle 3; se só Jesus salva, tecle 4; se deseja a ajuda de um dos nossos atendentes, tecle 5.
                   Teclo. Volta a satânica musiquinha, por mais seis minutos, até que...
                   - Bom dia, eu me chamo Etilina Cabriobina, em que posso ser útil?
                   - Bom dia, amiga. O meu sinal está como deveriam estar todas as sogras do mundo: mudo, morto, apagado.
                   - Pera, xô vê aqui.
                   Mais uma espera.
                   - Foi cortado por falta de pagamento.
                   - Não pode ser, minha amiga, pago em dia, todas as minhas contas.
                   - É o que consta aqui. Procura ver direitinho. Qualquer coisa liga de novo.
                   Agora é ir à Escola e promover os responsáveis pelo pagamento a demitidos.
                   Sequer tomo banho. Visto-me às pressas, viro a chave na ignição do carro e... Caráio! Sem bateria, arriada. A minha senilidade deixou o rádio e a lanterna ligados, ontem a noite.
                   Caminhada de dois quilômetros, até o ponto do ônibus, espera no ponto. Chego à escola:
                   - Pai, que cavanhaque é esse, o senhor está a cara do Raul Seixas kkkkkkk
                   - Vá a merda!
                   - Aí, velhinho (outro filho), igualzinho ao Visconde de Sabugosa!
                   - Vá à merda!
                   - Aí, pai (o filho mais sério), corta esse cavanhaque e esse bigode. Você tá parecendo esses catadores de lixo reciclável, morador de lixão, nem parece diretor de escola, pai. Corta isso.
                   - Vá à merda!
                   Colocados todos em seus devidos lugares, alço-me ao poder de chefe do clã, poder que me foi conferido por quase um século de peregrinação neste planeta de felizes, melhor agora, porque o apocalipse é na semana que vem (um pastor me garantiu). Inflo o que me resta dos pulmões, e faço minha voz retumbar no bairro:
                   - Porque não pagaram a porra da net?
                   Correm todos, forma-se o coral:
                   - Pagamos, pagamos, pagamos...
                   - Além de tudo mentem, cagões, a net está cortada.
                   - Mandamos todos os boletos pra contadora, fizemos o depósito na conta dela, os recibos estão aqui, qué vê?
                   - Quero ver merda nenhuma, liga prá essa infeliz!
                   Ligam. Agora, manter a calma, uma belezura, cara e bunda, nunca se sabe do dia de amanhã.
                   - Tudo bem, professor? O senhor sumiu...
                   - Você se esqueceu de pagar uma continha, minha querida...
                   - De jeito nenhum, pagamos todas, como sempre.
                   - A minha Vivo foi cortada e eles alegam falta de pagamento.
                   - Xô vê aqui... Realmente não paguei não, mas como eu ia adivinhar? Os seus filhos não mandaram o boleto.
                   - Valeu, obrigadão. Um beijão.
                   Herodes, meu São Herodes, porque não todos, você deixou escapar alguns.
                   - Vocês não mandaram a merda do boleto. Cadê o boleto? Vocês estão brincando comigo!
                   - Os Correios não entregaram, pai, o jeito é o senhor ir lá pegar. É assim que a gente está fazendo com todas as contas, tem que ir lá.
                   Ir aos Correios, mas o pastor é o meu Senhor, nada me faltará, nem paciência.
                   Chego aos Correios:
                   - Meu amigo, a minha conta da Vivo...
                   - Já sei, procura ali!
                   Entro numa sala e... Vários caixotes lotados de envelopes, nenhum funcionário dos Correios, para ajudar.
                   - Pô, amigo, vou demorar horas aqui procurando!
                   O cara dá de ombros, como se dissesse não tenho nada com isso. Insisto:
                   - Não passa pela cabeça de ninguém que eu aqui, sozinho, ou outra pessoa qualquer, pode se apropriar de cartões de créditos dos outros, vales postais, inutilizar cartas de cobranças, boletos...
                   O cara dá de ombros de novo, como se dissesse o que é que eu posso fazer?
                   Concluo que o mais rápido agora é pedir a segunda via, na loja da Vivo, e me encaminho para o ponto das Vans.
                   A viagem deveria durar  vinte e cinco minutos, mas há um posto de pedágio, digo, blits policial, a cata de carros não vistoriados e propinas. E a viagem se estende por quase hora e meia, comigo ouvindo louvores, músicas religiosas, no desgraçado do rádio do desgraçado do motorista, comigo agora não mais invocando São Herodes, mas o próprio São Iscariotes, affffffff que há de se ter saco de aço!
                   Desço da Van e o cobrador, talvez sensibilizado pela minha barba branca e desleixada, entre Raul Seixas, Sabugosa e Papai Noel, me pega pelo braço e ajuda a descer. É a decadência, meu Deus!
                   Mas nada é o meu pastor, e o Senhor não me faltará.
                   Caminho uns quinhentos metros e chego à Vivo, explico a situação, imprimem a segunda via.
                   Caminho mais quinhentos metros e chego ao banco, para pagar. Dia dez, dia de pagamento do funcionalismo público, filas com centenas de pessoas, e não poderia ser diferente: um terço dos brasileiros recebe pagamento hoje.
                   Sim, porque contrariando a sociologia, o povo brasileiro está dividido em três classes: a dos ladrões, a dos funcionários públicos e a das vítimas.
                   Avalio as filas e... Eureka! A fila dos idosos deve ter só umas vinte pessoas, é para lá que eu vou. Visconde de Sabugosa, Raul Seixas, essa barbona, o cobrador da Van me dando a mão... Tô velho, é tirar pelo menos uma vantagem.
                   Mas logo percebo que seis caixas atendem as filas, enquanto um único caixa atende aos moribundos, são as trevas!
                   E para piorar, a agilidade dos encomendados cadáveres, no guichê:
                   - O quê, minha tia?
                   - kjfu8yjmskjlku
                   - Não entendi, fala de novo.
                   - jhgsytjieoi8e48jslkj
                   - Fala devagarinho, a senhora não precisa ficar nervosa.
                   - Eu esqueci a minha senha e a minha dentadura...
                   Já o outro tirando meleca, diante da minha curiosidade: um peteleco, arremessando-a longe, ao léu,ou vai jogar no blusão do cara da frente.
                   Agora uma gostosona me olha. Em áureos tempos eu sustentaria o olhar, já sonhando alcovas e gritinhos femininos, mas agora... Ela deve estar pensando tadinho, deve estar com dores, vai ver que nem sexo faz mais, penso, e não sustento o olhar. São as trevas, é a decadência.
                   Agora uma velha de cara redonda em flagrante nordestinidade na origem, Severina ou Raimunda, talvez, parecendo um Tiranossauro rex estacionado no Jurássico... Affffffff  Vade retro!
                   Chega a minha vez. Eu sabia, o Senhor é meu faltará, nada o pastor.
                   Valeu ter esperado quase uma hora.
                   Dinheiro em uma das mãos, já trocado, para agilizar, e o boleto na outra:
                   - Eu queria pagar essa conta!
                   - O banco não recebe mais contas não senhor!
                   - O quê? Como o Bradesco deu uma propina de milhões ao governador, para ele tirar a conta do Estado daqui e passar pra lá, em represália vocês fizeram isso, sem nem um aviso público, pelo menos um cartaz, pra jogar o povão contra o governo, e precisa?
                   Penso em subir numa cadeira e começar um discurso, mas o vigilante me persuade a não fazer isso: peito de remador e costas de guarda roupa, contra o meu peito de minhoca e costas de fiapo, melhor não.
                   - E onde posso pagar isso? Pelo amor de Deus!
                   - Loja Del Fiori ou Ultralar.
                   - Obrigadão, tchau!
                   Abro a porta do banco e tomo uma porrada no peito, viajando em esses, da Sibéria ao Saara, do ar condicionado no máximo a trinta e oito graus, na rua.
                   Agora é atravessar o calçadão, centro comercial, e chegar nas lojas indicadas.
                   Há uma multidão no calçadão, dia de pagamento, todo mundo em culto ao deus consumo, e, estrangeiro, perambulo.
                   Todos os panfleteiros do mundo me cercam, esticando-me as panaceias possíveis: “Óticas Galo Cego, a salvação dos seus olhos”, “Emprestamos dinheiro com juros subsidiados”, “As menores taxas do mercado”... E os panfleteiros sagrados: “Você já aceitou Jesus?”, “Aguarde, Jesus está voltando”... E até os demoníacos: “Tenda Espírita Vovó Macambira, desmanchamos e fazemos trabalhos, trazemos o teu homem de volta, processos judiciais, desemprego”...”  Aliás as mesmas promessas dos pastores.
                   Agora o trânsito de pessoas não flui, uma dupla sertaneja plagia Luan Santana, com uma multidão aglomerada em volta, meu saco já no chão, obrigando-me à atenção, para não tropeçar nele, cada loja de eletrodomésticos em máximo som: pagodes, louvores, sertanejos... E milhares de cornetas verde e amarelas, de todos os tipos, tamanhos e sons, sopradas pelos camelôs, comprem logo antes que o Brasil tome um tunga na Copa das Confederações.
                   O me meu nada, pastor Senhor.
                   Chego, finalmente, à loja. Eu sabia. O dia não poderia terminar mal de todo.
                   Só seis pessoas na fila, chega a minha vez, agora rápido:
                   - Eu queria pagar essa continha!
                   - Iiiiiiiii, o senhor chegou tarde. Só recebemos até às quatro horas.
                   - Mas, meu amor, são quatro e cinco, quebra essa.
                   - Não dá, o sistema já foi desligado.
                   Caminho a esmo, entre o suicídio e um ato terrorista, e uma ideia: não vou para casa. Sem net e paciência para o atelier, fazer o quê, lá? Vou visitar o meu filho, bálsamo nessa torquês nos ovos.
                   Compro três livrinhos infantis, nessa minha insana e sádica esperança de transformá-lo em leitor, mais uma vítima no ignaro rebanho iletrado, uma caixa de jujubas (balas de goma), e rumo para lá.
                   Logo no segundo ponto o ônibus faz parada prolongada, o espelho retrovisor saiu do lugar, um transeunte mais prestativo no espelho e o motorista:
                   - Mais pra cá, abre mais, empurra agora...
                   E meu cérebro erótico se manifesta: acerto de espelho ou relação sexual? Abre mais, empurra... Afffff E o ônibus segue viagem.
                   Sou recebido por uma arara irada:
                   - Pai desnaturado, duas semanas sem ver o filho. O menino todo dia pergunta por você, virou facemaníaco. Todo dia ele quer ligar pra você, não deixo. Não adianta essa carinha de cachorrinho carente que não tenho pena. Você é cruel...
                   É deixar falar. Tá faltando versículo: “e no oitavo dia, entendendo que Adão era o culpado, Deus dotou de língua as mulheres”.
                   É conversar com o menino:
                   - Papai sente muitas saudades de você...
                   - Você sumiu, papai...
                   - Sumi não, olha o papai aqui, quem falou isso pra você?
                   - Vovó.
                   Por uma questão de justiça e coerência o cômodo mais quente do inferno deve estar reservado às sogras, affffff.
                   Agora é tomar, uma ducha, jantar, esperar a matraca cansar de falar e tentar uma sexoterapia, porque depois desse dia...
                   - Está mais calma agora? Pega a minha roupa que quero tomar um bom banho, tive um dia de cão.
                   - Banho rápido porque está faltando água!
                   - Tá. Depois põe a minha janta...
                   - Eu não sabia que você vinha, não fiz janta.
                   - Então frita dois ovos (ato falho, para ficar tão fritos quanto os meus) e umas fatias de presunto na manteiga.
                   Assim feito, banho tomado, barriga cheia...
                   - Vê porque sumo? Essa sua língua funesta, foi isso o que nos separou. Está calma? Vê, eu não estava com saudade só do menino não. E não pense que me engana, metade do seu discurso foi por causa do menino e metade por causa de você, fica imaginando que todo dia como uma, três vezes por dia, você é muito boba, dá cá um beijinho...
                   Algum tempo depois, pacificadas as partes beligerantes, abraço-a e...
                   - Pode ir tirando o seu jumentinho da chuva, estou menstruada.
                   O Senhor, nada, pastor, eu, me, meu, hei?, foi, cadê, céus, faltará, pqp!
                   Vou é dormir, antes de algum terremoto ou dilúvio afff
                   Como não tem net, vou dormir agora e acordar cedinho. Vou ser o primeiro naquela merda, pra pagar essa maldita conta, vou madrugar.
                   Depois à barbearia, só pode ser essa barba, só pode, affffff
                   Tenho certeza que quando o sinal voltar vai estar lá um monte de mensagens, de amigos preocupados, pensando que enfartei de novo.
                   Foi por pouco. PQP!

Francisco Costa

Rio, 11/06/2013.