Segunda feira, dia de plantão de todos os demônios do face, auguriando
que segundas feiras são uma merda. Não acredito nisso.
Acordo, acendo
os cinco primeiros cigarros do dia, tomo meio litro de café, faço minhas duas
flexões, um abdominal e meio e, cuidada a saúde, vou ao face, agradecer os
comentários da madrugada e postar o primeiro poema do dia.
Sinal cortado.
Ligo para a
Vivo. Repete-se 854397 vezes uma musiquinha macabra, composta nas hostes
infernais, dilacerando qualquer vestígio de paciência.
Mas o Senhor é
o meu pastor, nada me faltará. Nem paciência.
Até que aparece
uma voz, quarenta e dois minutos depois: se você está feliz, tecle 1; se o
governo é bom, tecle 2; se você acha que o Brasil vai ser campeão da Copa das Confederações,
tecle 3; se só Jesus salva, tecle 4; se deseja a ajuda de um dos nossos
atendentes, tecle 5.
Teclo. Volta a
satânica musiquinha, por mais seis minutos, até que...
- Bom dia, eu
me chamo Etilina Cabriobina, em que posso ser útil?
- Bom dia,
amiga. O meu sinal está como deveriam estar todas as sogras do mundo: mudo,
morto, apagado.
- Pera, xô vê
aqui.
Mais uma
espera.
- Foi cortado
por falta de pagamento.
- Não pode
ser, minha amiga, pago em dia, todas as minhas contas.
- É o que
consta aqui. Procura ver direitinho. Qualquer coisa liga de novo.
Agora é ir à
Escola e promover os responsáveis pelo pagamento a demitidos.
Sequer tomo
banho. Visto-me às pressas, viro a chave na ignição do carro e... Caráio! Sem
bateria, arriada. A minha senilidade deixou o rádio e a lanterna ligados, ontem
a noite.
Caminhada de
dois quilômetros, até o ponto do ônibus, espera no ponto. Chego à escola:
- Pai, que
cavanhaque é esse, o senhor está a cara do Raul Seixas kkkkkkk
- Vá a merda!
- Aí, velhinho
(outro filho), igualzinho ao Visconde de Sabugosa!
- Vá à merda!
- Aí, pai (o
filho mais sério), corta esse cavanhaque e esse bigode. Você tá parecendo esses
catadores de lixo reciclável, morador de lixão, nem parece diretor de escola,
pai. Corta isso.
- Vá à merda!
Colocados
todos em seus devidos lugares, alço-me ao poder de chefe do clã, poder que me
foi conferido por quase um século de peregrinação neste planeta de felizes,
melhor agora, porque o apocalipse é na semana que vem (um pastor me garantiu).
Inflo o que me resta dos pulmões, e faço minha voz retumbar no bairro:
- Porque não
pagaram a porra da net?
Correm todos,
forma-se o coral:
- Pagamos,
pagamos, pagamos...
- Além de tudo
mentem, cagões, a net está cortada.
- Mandamos todos
os boletos pra contadora, fizemos o depósito na conta dela, os recibos estão
aqui, qué vê?
- Quero ver
merda nenhuma, liga prá essa infeliz!
Ligam. Agora,
manter a calma, uma belezura, cara e bunda, nunca se sabe do dia de amanhã.
- Tudo bem,
professor? O senhor sumiu...
- Você se esqueceu
de pagar uma continha, minha querida...
- De jeito
nenhum, pagamos todas, como sempre.
- A minha Vivo
foi cortada e eles alegam falta de pagamento.
- Xô vê
aqui... Realmente não paguei não, mas como eu ia adivinhar? Os seus filhos não
mandaram o boleto.
- Valeu,
obrigadão. Um beijão.
Herodes, meu
São Herodes, porque não todos, você deixou escapar alguns.
- Vocês não
mandaram a merda do boleto. Cadê o boleto? Vocês estão brincando comigo!
- Os Correios
não entregaram, pai, o jeito é o senhor ir lá pegar. É assim que a gente está
fazendo com todas as contas, tem que ir lá.
Ir aos
Correios, mas o pastor é o meu Senhor, nada me faltará, nem paciência.
Chego aos
Correios:
- Meu amigo, a
minha conta da Vivo...
- Já sei,
procura ali!
Entro numa
sala e... Vários caixotes lotados de envelopes, nenhum funcionário dos
Correios, para ajudar.
- Pô, amigo,
vou demorar horas aqui procurando!
O cara dá de
ombros, como se dissesse não tenho nada com isso. Insisto:
- Não passa
pela cabeça de ninguém que eu aqui, sozinho, ou outra pessoa qualquer, pode se
apropriar de cartões de créditos dos outros, vales postais, inutilizar cartas
de cobranças, boletos...
O cara dá de
ombros de novo, como se dissesse o que é que eu posso fazer?
Concluo que o
mais rápido agora é pedir a segunda via, na loja da Vivo, e me encaminho para o
ponto das Vans.
A viagem deveria
durar vinte e cinco minutos, mas há um
posto de pedágio, digo, blits policial, a cata de carros não vistoriados e
propinas. E a viagem se estende por quase hora e meia, comigo ouvindo louvores,
músicas religiosas, no desgraçado do rádio do desgraçado do motorista, comigo
agora não mais invocando São Herodes, mas o próprio São Iscariotes, affffffff
que há de se ter saco de aço!
Desço da Van e
o cobrador, talvez sensibilizado pela minha barba branca e desleixada, entre
Raul Seixas, Sabugosa e Papai Noel, me pega pelo braço e ajuda a descer. É a
decadência, meu Deus!
Mas nada é o
meu pastor, e o Senhor não me faltará.
Caminho uns
quinhentos metros e chego à Vivo, explico a situação, imprimem a segunda via.
Caminho mais
quinhentos metros e chego ao banco, para pagar. Dia dez, dia de pagamento do
funcionalismo público, filas com centenas de pessoas, e não poderia ser diferente:
um terço dos brasileiros recebe pagamento hoje.
Sim, porque
contrariando a sociologia, o povo brasileiro está dividido em três classes: a
dos ladrões, a dos funcionários públicos e a das vítimas.
Avalio as
filas e... Eureka! A fila dos idosos deve ter só umas vinte pessoas, é para lá
que eu vou. Visconde de Sabugosa, Raul Seixas, essa barbona, o cobrador da Van
me dando a mão... Tô velho, é tirar pelo menos uma vantagem.
Mas logo
percebo que seis caixas atendem as filas, enquanto um único caixa atende aos
moribundos, são as trevas!
E para piorar,
a agilidade dos encomendados cadáveres, no guichê:
- O quê, minha
tia?
-
kjfu8yjmskjlku
- Não entendi,
fala de novo.
-
jhgsytjieoi8e48jslkj
- Fala
devagarinho, a senhora não precisa ficar nervosa.
- Eu esqueci a
minha senha e a minha dentadura...
Já o outro
tirando meleca, diante da minha curiosidade: um peteleco, arremessando-a longe,
ao léu,ou vai jogar no blusão do cara da frente.
Agora uma
gostosona me olha. Em áureos tempos eu sustentaria o olhar, já sonhando alcovas
e gritinhos femininos, mas agora... Ela deve estar pensando tadinho, deve estar
com dores, vai ver que nem sexo faz mais, penso, e não sustento o olhar. São as
trevas, é a decadência.
Agora uma
velha de cara redonda em flagrante nordestinidade na origem, Severina ou
Raimunda, talvez, parecendo um Tiranossauro rex estacionado no Jurássico...
Affffffff Vade retro!
Chega a minha
vez. Eu sabia, o Senhor é meu faltará, nada o pastor.
Valeu ter
esperado quase uma hora.
Dinheiro em
uma das mãos, já trocado, para agilizar, e o boleto na outra:
- Eu queria
pagar essa conta!
- O banco não
recebe mais contas não senhor!
- O quê? Como
o Bradesco deu uma propina de milhões ao governador, para ele tirar a conta do
Estado daqui e passar pra lá, em represália vocês fizeram isso, sem nem um
aviso público, pelo menos um cartaz, pra jogar o povão contra o governo, e
precisa?
Penso em subir
numa cadeira e começar um discurso, mas o vigilante me persuade a não fazer
isso: peito de remador e costas de guarda roupa, contra o meu peito de minhoca
e costas de fiapo, melhor não.
- E onde posso
pagar isso? Pelo amor de Deus!
- Loja Del
Fiori ou Ultralar.
- Obrigadão,
tchau!
Abro a porta
do banco e tomo uma porrada no peito, viajando em esses, da Sibéria ao Saara,
do ar condicionado no máximo a trinta e oito graus, na rua.
Agora é
atravessar o calçadão, centro comercial, e chegar nas lojas indicadas.
Há uma
multidão no calçadão, dia de pagamento, todo mundo em culto ao deus consumo, e,
estrangeiro, perambulo.
Todos os
panfleteiros do mundo me cercam, esticando-me as panaceias possíveis: “Óticas
Galo Cego, a salvação dos seus olhos”, “Emprestamos dinheiro com juros
subsidiados”, “As menores taxas do mercado”... E os panfleteiros sagrados:
“Você já aceitou Jesus?”, “Aguarde, Jesus está voltando”... E até os
demoníacos: “Tenda Espírita Vovó Macambira, desmanchamos e fazemos trabalhos,
trazemos o teu homem de volta, processos judiciais, desemprego”...” Aliás as mesmas promessas dos pastores.
Agora o
trânsito de pessoas não flui, uma dupla sertaneja plagia Luan Santana, com uma
multidão aglomerada em volta, meu saco já no chão, obrigando-me à atenção, para
não tropeçar nele, cada loja de eletrodomésticos em máximo som: pagodes,
louvores, sertanejos... E milhares de cornetas verde e amarelas, de todos os
tipos, tamanhos e sons, sopradas pelos camelôs, comprem logo antes que o Brasil
tome um tunga na Copa das Confederações.
O me meu nada,
pastor Senhor.
Chego,
finalmente, à loja. Eu sabia. O dia não poderia terminar mal de todo.
Só seis
pessoas na fila, chega a minha vez, agora rápido:
- Eu queria
pagar essa continha!
- Iiiiiiiii, o
senhor chegou tarde. Só recebemos até às quatro horas.
- Mas, meu
amor, são quatro e cinco, quebra essa.
- Não dá, o
sistema já foi desligado.
Caminho a
esmo, entre o suicídio e um ato terrorista, e uma ideia: não vou para casa. Sem
net e paciência para o atelier, fazer o quê, lá? Vou visitar o meu filho,
bálsamo nessa torquês nos ovos.
Compro três
livrinhos infantis, nessa minha insana e sádica esperança de transformá-lo em
leitor, mais uma vítima no ignaro rebanho iletrado, uma caixa de jujubas (balas
de goma), e rumo para lá.
Logo no
segundo ponto o ônibus faz parada prolongada, o espelho retrovisor saiu do
lugar, um transeunte mais prestativo no espelho e o motorista:
- Mais pra cá,
abre mais, empurra agora...
E meu cérebro
erótico se manifesta: acerto de espelho ou relação sexual? Abre mais,
empurra... Afffff E o ônibus segue viagem.
Sou recebido
por uma arara irada:
- Pai desnaturado,
duas semanas sem ver o filho. O menino todo dia pergunta por você, virou
facemaníaco. Todo dia ele quer ligar pra você, não deixo. Não adianta essa
carinha de cachorrinho carente que não tenho pena. Você é cruel...
É deixar
falar. Tá faltando versículo: “e no oitavo dia, entendendo que Adão era o
culpado, Deus dotou de língua as mulheres”.
É conversar
com o menino:
- Papai sente
muitas saudades de você...
- Você sumiu,
papai...
- Sumi não,
olha o papai aqui, quem falou isso pra você?
- Vovó.
Por uma questão
de justiça e coerência o cômodo mais quente do inferno deve estar reservado às
sogras, affffff.
Agora é tomar,
uma ducha, jantar, esperar a matraca cansar de falar e tentar uma sexoterapia,
porque depois desse dia...
- Está mais
calma agora? Pega a minha roupa que quero tomar um bom banho, tive um dia de
cão.
- Banho rápido
porque está faltando água!
- Tá. Depois
põe a minha janta...
- Eu não sabia
que você vinha, não fiz janta.
- Então frita
dois ovos (ato falho, para ficar tão fritos quanto os meus) e umas fatias de
presunto na manteiga.
Assim feito,
banho tomado, barriga cheia...
- Vê porque
sumo? Essa sua língua funesta, foi isso o que nos separou. Está calma? Vê, eu
não estava com saudade só do menino não. E não pense que me engana, metade do
seu discurso foi por causa do menino e metade por causa de você, fica
imaginando que todo dia como uma, três vezes por dia, você é muito boba, dá cá
um beijinho...
Algum tempo
depois, pacificadas as partes beligerantes, abraço-a e...
- Pode ir
tirando o seu jumentinho da chuva, estou menstruada.
O Senhor, nada,
pastor, eu, me, meu, hei?, foi, cadê, céus, faltará, pqp!
Vou é dormir,
antes de algum terremoto ou dilúvio afff
Como não tem
net, vou dormir agora e acordar cedinho. Vou ser o primeiro naquela merda, pra
pagar essa maldita conta, vou madrugar.
Depois à
barbearia, só pode ser essa barba, só pode, affffff
Tenho certeza
que quando o sinal voltar vai estar lá um monte de mensagens, de amigos
preocupados, pensando que enfartei de novo.
Foi por pouco.
PQP!
Francisco Costa
Rio, 11/06/2013.