Estou sentado diante de A., em sua casa, na sala e, ao
meu lado direito, R., livros e cadernos, apostilas espalhados sobre a mesa,
estudando sonho único e comum, voar, como os pássaros, os poetas e os pilotos.
Daqui
a alguns anos receberei a notícia de que A. caiu no Rio Grande do Sul. Bateu
com um Phanton da FAB numa fiação de alta tensão, e imaginarei o desespero de
sua mãe, baú de orgulho e amor pelo filho, o supra-sumo da estirpe de mesmo
sobrenome, galho mais alto na genealogia daquela família, oficial aviador
recebendo honras póstumas por morte no cumprimento do dever.
Só
muitos anos depois terei notícias imprecisas de R., sem saber se já aposentado
da American Airlines onde, por muito tempo, comandou ou comanda Boeings cheios
de cargas e passageiros.
Tomo-me
de remorsos: a mãe de A., mística-maluquinha sujeita a todas as formas de
crendices possíveis e impossíveis, foi, por bom tempo, a minha fonte quase
única de rendimentos.
Esclareço:
artesão de mãos ocupadas com quase todo o imaginável capaz de ser transformado
pelas mãos humanas, o que não quer dizer que com competência e eficiência, por
esta época eu realizava pinturas sobre gesso, imagens de santos,
principalmente, aproveitando a clientela em potencial, meus acompanhantes nas
missas e novenas, vias sacras da infância e da adolescência.
Detalhe:
como náufrago a cata da praia mansa e providencial, descrente do imposto por
tradição, força ou compensação, eu lia sobre tudo o que dissesse respeito ao
imponderável, ao inescrutável, ao somente entrevisto por instinto, que chamamos
de religiões, as muletas da aflição, para uns, e da curiosidade, para outros.
Logo
eu estava pintando santos, orixás, divindades hindus, egípcias, da mitologia
grega, transformando o oratório da dona num tiroteio em forró, pó de mico em
bloco de carnaval, onde sobressaía um grande buda regularmente alimentado por
arroz cozido na água e sal com mel, orientação minha, e que trazia bons fluídos
e situações auspiciosas para aquela família.
Perdão,
Senhor, canalhice adolescente.
In Não Haverá Mais Natais, romance
autobiográfico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário