quinta-feira, 23 de maio de 2013

CONTO: ORATÓRIO

Estou sentado diante de A., em sua casa, na sala e, ao meu lado direito, R., livros e cadernos, apostilas espalhados sobre a mesa, estudando sonho único e comum, voar, como os pássaros, os poetas e os pilotos.
                  Daqui a alguns anos receberei a notícia de que A. caiu no Rio Grande do Sul. Bateu com um Phanton da FAB numa fiação de alta tensão, e imaginarei o desespero de sua mãe, baú de orgulho e amor pelo filho, o supra-sumo da estirpe de mesmo sobrenome, galho mais alto na genealogia daquela família, oficial aviador recebendo honras póstumas por morte no cumprimento do dever.
                  Só muitos anos depois terei notícias imprecisas de R., sem saber se já aposentado da American Airlines onde, por muito tempo, comandou ou comanda Boeings cheios de cargas e passageiros.
                  Tomo-me de remorsos: a mãe de A., mística-maluquinha sujeita a todas as formas de crendices possíveis e impossíveis, foi, por bom tempo, a minha fonte quase única de rendimentos.
                  Esclareço: artesão de mãos ocupadas com quase todo o imaginável capaz de ser transformado pelas mãos humanas, o que não quer dizer que com competência e eficiência, por esta época eu realizava pinturas sobre gesso, imagens de santos, principalmente, aproveitando a clientela em potencial, meus acompanhantes nas missas e novenas, vias sacras da infância e da adolescência.
                  Detalhe: como náufrago a cata da praia mansa e providencial, descrente do imposto por tradição, força ou compensação, eu lia sobre tudo o que dissesse respeito ao imponderável, ao inescrutável, ao somente entrevisto por instinto, que chamamos de religiões, as muletas da aflição, para uns, e da curiosidade, para outros.
                  Logo eu estava pintando santos, orixás, divindades hindus, egípcias, da mitologia grega, transformando o oratório da dona num tiroteio em forró, pó de mico em bloco de carnaval, onde sobressaía um grande buda regularmente alimentado por arroz cozido na água e sal com mel, orientação minha, e que trazia bons fluídos e situações auspiciosas para aquela família.
                  Perdão, Senhor, canalhice adolescente.


In Não Haverá Mais Natais, romance autobiográfico.

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