- O Michel foi no meu setor
conferir a ruína?
- A ruína e as ruínas.
- O que é que houve?
- Pegue o relatório ali!
Tomei o relatório com as
duas mãos. Li, rapidamente percebendo a razão da ironia: o informante omitira a
existência de outros membros no domicílio.
- Pô, o cara não me falou
nada desse pessoal...
- É, mas estão lá. Nós
conversamos com a Leda e a Éven. Inclusive disse que te viu uma vez lá,
entrevistando o irmão dela... Não sabe o motivo de não ter sido entrevistada.
- Tem outra casa nos
fundos, você não viu?
- Não é outra casa, é
continuação da casa da frente.
- O cara disse que é outra
casa, com entrada independente da dele... Ele omitiu...
- É, eu prefiro pensar que
tenha sido isso. São pessoas difíceis de serem encontradas.
Baixei os olhos e, diante
da insinuação, engoli um comentário menos gentil.
Então esse cara está
pensando em omissão minha, de propósito? Toco um esporro no informante e
recolho, por escrito, o que me afirmou. Vou anexar tudo no relatório, mas que sacanagem!
Permita-me aqui o leitor
uma interrupção, necessária para o bom entendimento de mais essa sucessão de
fatos insólitos, surreais mesmo, dos muitos que permeiam o meu espanto.
Você acredita numa outra
realidade, supranormal, paralela a esta em que nos movemos?
Se sim, é ela complementar,
contígua, ou permanentemente dissociada de nós?
Interpenetram-se,
confundindo-se, ou estão indefectivelmente separadas em compartimentos
estanques, limitadas por invisíveis e indevassáveis paredes?
Interpenetrando-se, com
mútuas influências, isso pode ser percebido por todas as pessoas ou só por
algumas, detentoras de sentidos desconhecidos, atônitas se consumindo, tateando
o obscuro incontrolável?
São os nossos sentidos
suficientes para nos por em comunhão com tudo ou, antes, limitam-nos,
entorpecendo a compreensão e embotando o entendimento?
O meu possível leitor,
paciente por ter chegado até aqui, nunca teve a sensação de já ter estado num
lugar em que na realidade nunca esteve? Ou reconhecer alguém a quem nunca antes
tenha visto? Numa conversa, saber exatamente o que o nosso interlocutor vai
falar, não por dedução, mas por recorrência à memória, como se aquele momento
fosse um flashback? A realidade nunca
lhe pareceu maior do que parece e pobre e limitante a linguagem?
Confesso a minha impotência
nessas questões, ainda que as tenha feito objeto quase que único das minhas
perquirições intelectuais, desde muito tempo.
Mas deixemos de lado os
devaneios e voltemos ao motivo que me trás aqui, a escrever nesta manhã nublada
e quente: trabalho numa secretaria do governo, responsável pela coleta e
processamento de dados econômicos.
Minha função consiste na
localização de determinados endereços prévia e aleatoriamente selecionados em
áreas determinadas, para realizar entrevistas com todas as pessoas aí
domiciliadas.
O diálogo reproduzido logo
no início desta narrativa talvez tenha sido o catalisador capaz de precipitar o
que se segue, suponho.
Tenho sono profundo e
imediato, sempre povoado de sonhos que, através de exercícios, aprendi a
recompor pela manhã, muito embora na maioria das vezes eu não consiga
desvendar-lhes os significados.
Neste mesmo dia deitei-me
para dormir normalmente, sem nenhuma preocupação relevante, já totalmente
esquecido do incidente da manhã, das ruínas, e eis que ela se apresenta pela
primeira vez.
Loura. Loura e bonita, com
trajes de samaritana: calças longas, largas, bem largas, verde vivo, amarradas
com cadarços nos tornozelos, túnica branca, imaculadamente branca, e capa
vermelha, os olhos docemente esverdeados e serenos harmonizando-se com a
fragilidade do corpo esguio e leve, aéreo, apoiado nos pequenos pés, pálidos e
delicados, o braço direito erguido em arco, segurando o bordo superior de uma
ânfora cheia d’água, apoiada no ombro do mesmo lado.
Está no deserto, ou no que
parece ser um deserto, com dunas de areia amareladas e marcas de vento
desenhadas no chão.
Permanece imóvel, tocada
pela aragem, sem um passo, olhando-me fixamente, querendo me comunicar o
inapreensível naquele momento e naquelas circunstâncias.
Acordei cedo, como de
costume, e nada tendo a fazer no trabalho, resolvi continuar aterrando a
pequena gleba onde pretendo estabelecer algumas hortas e abrigo para minhas
cabras.
Subitamente a loura me veio
à memória, apresentando-se em todos os detalhes, reproduzindo com exatidão
fotográfica o instante curto e mágico da madrugada.
Sua imagem persistiu por
todo o dia, insistente, insidiosa, quase obsessiva.
Analisei-lhe as feições, o
porte e, a partir daí, cheguei mesmo a perscrutar-lhe a personalidade,
sensibilidade e delicadeza ímpares caracterizando a minha companheira noturna,
oásis nesses conturbados dias de violência e materialidade.
Sim, a impressão é de que
já a conheço tem muito tempo, como se fôssemos velhos amantes, embora
apartados.
Pela tarde recolhi as
ferramentas, coloquei sal nos calos das mãos e me surpreendi, constatando ter
trabalhado bem mais que o de costume, sem nenhuma concentração no entanto,
embora excitado, perceptível pelo alto consumo de cigarros e café.
Todo o dia passei com a
loura, compenetrado, longe do meu corpo, hoje menos cansado, parasitando sua
silhueta contra areia e sol, manejando a pá por instinto, mecanicamente.
Resolvi não fazer nenhum
comentário com ninguém enquanto não pudesse fazer uma idéia precisa de tudo,
começando a temer indícios de insanidade.
Não jantei nem assisti à
novela, fechado que estava a qualquer solicitação do mundo, fora a samaritana
de ânfora no ombro e olhos tristes, carregando água.
Deitei-me. Outra vez novamente
tudo de novo: ei-la, na mesma paisagem de vento e areia, olhos fixos,
esgazeados e atentos, como se aguardassem a libertação, o salvo-conduto para
evadir-se desse pesadelo daliniano, arquitetado em suposições e possibilidades
ocultas.
Ei-la, serena e distante,
aguçando-me o pobre espírito impotente para a compreensão das metafísicas.
Ei-la, já íntima e
cotidiana, com pretensões quase previsíveis, castigando-me pelo que a minha
mente não pode alcançar.
Ei-la, alheia e
demasiadamente bela na aridez desse deserto e dos meus dias.
Ei-la, por quem já não
durmo, inquilina das minhas horas, habitando o silêncio das madrugadas, ladra
que é do meu equilíbrio, incendiária das minhas emoções.
Levantei-me tomado de
nostalgia, inexplicavelmente melancólico, apartado da véspera como se tivesse
navegado uma noite secular.
No rádio, músicas tolas e
comerciais, até ontem imunes à minha atenção, algumas até irritantes, passaram
a me atingir de maneira intensa, impossível até alguns dias atrás, e nem mesmo
a perspectiva de retornar ao domicílio, causa da última indisposição com a
chefia, alterou o meu estado de ânimo.
Visitei várias famílias,
deixando para o final do dia a já mencionada, esperando dissabores, produto da
minha predisposição à antipatia.
Bati palmas. A velha louca
me atendeu, perguntando se eu era o vendedor de roupas, totalmente esquecida da
minha presença em sua sala por vários dias quase consecutivos.
Diante da insanidade,
desarmei-me, perguntando-lhe pelo filho, o responsável pela omissão, recebendo
como resposta que se encontrava trabalhando.
Gastei mais algum tempo de
paciência e argumentos para convencê-la de não ser o vendedor de roupas que a
havia enganado, e quis saber dos demais membros da família.
Fui sendo informado: “os
meus netos, esses diabos, estão por aí, nas casas dos outros, incomodando, ou
espalhados pelo quintal, fazendo merda, a mais velha já quebrou o braço duas
vezes, essa sem vergonha. A minha nora é aquela no tanque, lavando roupas. O
Dico também está trabalhando, coitado, que dá um duro danado nas Casas Sendas,
e a Leda e a Éven desceram o morro, estão carregando água, eu não raciocino
direito, moço, sou meio maluca, quer entrar e esperar?”
Agradeci e me sentei na
tampa da cisterna, irônica inutilidade naquela altura, inalcançável pela água,
e resolvi esperar as duas informantes terminarem lá o trabalho delas e
retornarem.
Abri uma revista. Sempre
carrego livros ou revistas, e me concentrei no ponto em que havia interrompido
a leitura no ônibus, um artigo de tecnologia rural, o assunto das minhas
atenções no momento, até ser interrompido pela voz da velha:
- Aquela lá!
Levantei os olhos e me
deparei com uma mulher jovem, clara, de cabelos castanhos, gestos soltos,
insinuantes, metida em pouca roupa molhada mais realçando o corpo bem
proporcionado, de fartas coxas e peitos duros, espremidos entre o decote e a
cava da manga, a cintura torneada e ancas fortes, de muita sensualidade.
Abriu-se num sorriso largo,
de dentes claros, com natural simpatia:
- Boa tarde!
- Boa tarde! Você é a...
- Éven.
Contei-lhe do havido, da
omissão, segundo ela, deliberada, do seu irmão, da suspeição do meu chefe e da
minha finalidade ali, esquadrinhar-lhe as despesas e rendimentos.
Retirei os questionários da
pasta e quando localizava o primeiro campo de preenchimento, pronto para a
pergunta inicial, Éven gritou:
- Leda! Leda! O moço do
IBGE quer falar contigo!
Displicente cofiei o
bigode, descruzei as pernas e... Meu Deus!
Maltratada e sobejamente
linda, suja de terra e miséria, molhada, vestida apenas de bermudas e blusa,
com uma lata de óleo cheia d’água sobre o ombro direito, lá estava ela diante
dos meus olhos incrédulos, serena e surpresa, a minha doce samaritana, talvez
séculos depois.
Francisco
Costa
Rio,
12/02/1987.
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