quinta-feira, 23 de maio de 2013

FEIRIL

Se existe alguma coisa engraçada e imprópria à compreensão é uma mulher no supermercado: conhece todos os produtos, por já tê-los usado, ouvido comentário de alguma amiga que usou, ou ter visto ou ouvido o comercial, mas pára diante de cada gôndola e prateleira com o olhar de diante do nunca visto ou ouvido falar, examinando minuciosamente embalagem e rótulo de cada produto, até se decidir pelo mesmo que compra em todos os meses.
                          E o que seria passagem pelo supermercado termina excursão ou estadia, os maridos hospedando impaciência e irritação (repare a felicidade das mulheres nos supermercados e as caras fechadas dos acompanhantes masculinos, sejam filhos, namorados ou maridos).     
                          Prefiro as feiras-livres, com a cara da nossa realidade social, organizada desorganização.
                          A feira-livre é a reprodução em miniatura desse país, a maquete do Brasil, onde tudo convive e os opostos se fazem irmanados, juntos, obrigatórios.
                          Começa pelo trânsito.
                          Fosse num país outro, as pessoas caminhariam pela direita, fluindo em ritmo constante e de poucos obstáculos.
                          Aqui fluem por onde lhes apontam os narizes, para a direita, esquerda, pra frente, para trás, e súbito surge alguém empurrando uma bicicleta, o dono da bicicleta maldizendo o transtorno que são os pedestres, até a semana seguinte, quando virá sem bicicleta, para maldizer os ciclistas, feira não é lugar de bicicletas; duas velhas amigas que não se vêem a muito, cada uma com uma penca de crianças e bolsas, paradas no meio da feira, passando as últimas dos últimos três anos, pondo o papo em dia; as pilhas de jacas e melancias justo no lugar onde as barracas estão próximas, uma diante da outra, estrangulando a passagem; as fiadas de caranguejos fazendo medo e afastando, abrindo uma clareira, todo mundo se espremendo, disfarçados empurrões e leves cotoveladas sem conseqüências porque se levados a sério uma briga a cada dez passos, e o calor infernal ou a chuva impondo guarda-chuvas abertos, as pontas das varetas apontando olhos e testas, como balas perdidas.
                          E aí o exercício dos sentidos que não se podem desatentos porque as impressões gritam: os olhos ligados, ainda que não queiram, ao vermelho dos caquis e tomates, a variedade infinita de verdes na banca de verduras, o laranja da laranja e da tangerina, o laranja coralíneo da cenoura, o roxo da beterraba, o nabo branco em contraste com as jabuticabas em frente, maçãs, peras, ameixas compondo um painel abstrato que é sonho e magia para o esteta.
                          Que hiper realista seria capaz de roubar a textura amarelo marmórea do maracujá e prendê-la na tela, furtar as infinitas cores e ângulos do abacaxi para fixar no papel?         
                          E os cheiros? A acidez dos abacaxis, laranjas e maracujás em duelo permanente com o açúcar do algodão doce refletido nos olhos dos meninos, a doce sensualidade das peras e maçãs mesclando-se na religiosidade imposta na barraca do vendedor de incenso e ervas aromáticas, e o mar, o mar que foge da praia, salta prédios, atravessa ruas e espalha suas ondas entre peixes, siris e camarões inundando a brisa matinal do hortelã invadindo a fumaça do churrasco mal afamado, miava ontem, para se mesclar a fumaças outras, do sarapatel, cachorro quente, angu a baiana, mocotó, misto, pastéis, amendoim torrado e milho cozido tentando abafar o sangue penetrando narinas, pingando das carnes penduradas como roupa no varal, porcos, bois, galinhas mudos e retalhados aguardando bocas e talheres, e suor, suor, suor... Suor humano irmanando a todos, até que alguém peida e inaugura um comício de protestos, às vezes em críticas e piadinhas mordazes, às vezes no silencioso gesto de dedos no nariz ou da mão espalmada em abano.
                          E por humano, centro da criação divina e motivo da feira, o cheiro do peido anula momentaneamente todos os cheiros.
                          Agora os sons nessa Babel desarvorada, cada um apregoando as excelências do que estão vendendo, em vozerio cada vez mais potente porque a concorrência não se esgota na qualidade e no preço dos produtos, mas na publicidade posta nas próprias vozes, todos gritando ao mesmo tempo, para que os potenciais fregueses escutem, e alguém saca o megafone ao lado da barraca de CDs piratas tocando um rock, aquela um sertanejo, a outra, um pagode, todas próximas, juntas ao bar em frente em animado forró regado a buchada de bode e pinga, os fregueses gritando aos barraqueiros, para se fazerem escutados, a mãe que berra pelo filho escondido embaixo de um tabuleiro, e o avião que passa, o motor do carro que ronca, as buzinas, o apito do guarda na esquina, os brinquedos eletrônicos, e a voz de fundo, que não pode faltar “arrependei-vos do que estão fazendo porque Jesus está voltando. No capítulo três, versículo quinze está escrito...”, “batatas só um e vinte, a melhor batata da feira, filezinho, só um e vinte”, alguém complementa, alheio ao apocalipse no estacionamento, só esperando a feira acabar, como se a feira não fosse o apocalipse em curso.
                          E o sexo? Não o sexo explícito e assumido nas camas, nos matagais, em motéis e pontos de breves encontros, muito menos junto aos muros e nos gramados públicos, no interior dos automóveis, em estacionamentos e ruas escuras, mas no seu estado máximo de criatividade e despudor, o só imaginado.
                          O disfarçado beliscão da noiva que viu o noivo vendo um pescoço convidativo, um olhar de fome, um meio sorriso disfarçado; o esporro explícito e público da esposa que flagrou o marido com os olhos balançando no ritmo da bunda que caminha mais à frente, ou porque cerrou pálpebras, os inocentes olhinhos quase adormecidos sobre o decote da vendedora de ovos, justo quando ela se debruçou; a loura de minissaia, um par de coxas que... Céus!, debruçada sobre a banca de alho, e pelo movimento em torno, marmanjos babando, a gente sem entender porque o brasileiro gosta tanto de alho, a ponto de substituir as batatas por alho em seus ensopados, a mulherada fazendo musculação de pescoço porque o rapagão passou de sunga de praia, superestimado diante dos maridos, noivos e namorados, os pobres, atrofiados e murchos nas cabeças delas, sem contar os esbarrões sem querer, desculpe-me minha senhora, foi mal, o engarrafamento de corpos porque alguém está discutindo, e sempre sem querer, desculpe, o sarro, o rala, a relada.      
                          Mas há que se organizar a suruba social e surgem as autoridades: o fiscal da fazenda (rapa) passando a cuia, para que os pobres camelôs exerçam o ofício hoje; o fiscal do instituto de pesos e medidas correndo chapéu para que, vítima de terçóis e conjuntivites momentâneas, não veja as balanças de ponteiros alterados e pesos adulterados, com menos chumbo; os policiais militares garantindo a ordem e a segurança, para impedir qualquer contratempo aos vendedores de CDs piratas, DVDs piratas, roupas e tênis “de marca”, importados diretamente de Caxias e Itaguaí; os relógios originais made in Paraguay; o uísque escocês destilado em Puerto Caballero; as bicicletas novinhas, roubadas ainda esta semana; peças originais, de carros desmontados horas atrás, e celulares em promoção: “este telefone tem calculadora, máquina fotográfica, secretária eletrônica, gravador, MP3, MP4, 5, 6... até 32, acessa a internet, toma a bênção ao dono, mói carne e ainda frita pastel. Dois contos nas Casas Bahia. Cem reais na minha mão”...
                          Por que tomaram de empréstimo o nome de um pau, Brasil, quando tão bem podiam ter adotado uma característica social, Feiril?


In “Não Haverá Mais Natais, romance autobiográfico.

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