Se existe alguma coisa engraçada e imprópria à
compreensão é uma mulher no supermercado: conhece todos os produtos, por já
tê-los usado, ouvido comentário de alguma amiga que usou, ou ter visto ou
ouvido o comercial, mas pára diante de cada gôndola e prateleira com o olhar de
diante do nunca visto ou ouvido falar, examinando minuciosamente embalagem e
rótulo de cada produto, até se decidir pelo mesmo que compra em todos os meses.
E
o que seria passagem pelo supermercado termina excursão ou estadia, os maridos
hospedando impaciência e irritação (repare a felicidade das mulheres nos
supermercados e as caras fechadas dos acompanhantes masculinos, sejam filhos,
namorados ou maridos).
Prefiro
as feiras-livres, com a cara da nossa realidade social, organizada
desorganização.
A
feira-livre é a reprodução em miniatura desse país, a maquete do Brasil, onde
tudo convive e os opostos se fazem irmanados, juntos, obrigatórios.
Começa
pelo trânsito.
Fosse
num país outro, as pessoas caminhariam pela direita, fluindo em ritmo constante
e de poucos obstáculos.
Aqui
fluem por onde lhes apontam os narizes, para a direita, esquerda, pra frente,
para trás, e súbito surge alguém empurrando uma bicicleta, o dono da bicicleta
maldizendo o transtorno que são os pedestres, até a semana seguinte, quando
virá sem bicicleta, para maldizer os ciclistas, feira não é lugar de bicicletas;
duas velhas amigas que não se vêem a muito, cada uma com uma penca de crianças
e bolsas, paradas no meio da feira, passando as últimas dos últimos três anos,
pondo o papo em dia; as pilhas de jacas e melancias justo no lugar onde as
barracas estão próximas, uma diante da outra, estrangulando a passagem; as
fiadas de caranguejos fazendo medo e afastando, abrindo uma clareira, todo
mundo se espremendo, disfarçados empurrões e leves cotoveladas sem
conseqüências porque se levados a sério uma briga a cada dez passos, e o calor
infernal ou a chuva impondo guarda-chuvas abertos, as pontas das varetas
apontando olhos e testas, como balas perdidas.
E
aí o exercício dos sentidos que não se podem desatentos porque as impressões
gritam: os olhos ligados, ainda que não queiram, ao vermelho dos caquis e
tomates, a variedade infinita de verdes na banca de verduras, o laranja da
laranja e da tangerina, o laranja coralíneo da cenoura, o roxo da beterraba, o
nabo branco em contraste com as jabuticabas em frente, maçãs, peras, ameixas
compondo um painel abstrato que é sonho e magia para o esteta.
Que
hiper realista seria capaz de roubar a textura amarelo marmórea do maracujá e
prendê-la na tela, furtar as infinitas cores e ângulos do abacaxi para fixar no
papel?
E
os cheiros? A acidez dos abacaxis, laranjas e maracujás em duelo permanente com
o açúcar do algodão doce refletido nos olhos dos meninos, a doce sensualidade
das peras e maçãs mesclando-se na religiosidade imposta na barraca do vendedor
de incenso e ervas aromáticas, e o mar, o mar que foge da praia, salta prédios,
atravessa ruas e espalha suas ondas entre peixes, siris e camarões inundando a
brisa matinal do hortelã invadindo a fumaça do churrasco mal afamado, miava
ontem, para se mesclar a fumaças outras, do sarapatel, cachorro quente, angu a
baiana, mocotó, misto, pastéis, amendoim torrado e milho cozido tentando abafar
o sangue penetrando narinas, pingando das carnes penduradas como roupa no
varal, porcos, bois, galinhas mudos e retalhados aguardando bocas e talheres, e
suor, suor, suor... Suor humano irmanando a todos, até que alguém peida e
inaugura um comício de protestos, às vezes em críticas e piadinhas mordazes, às
vezes no silencioso gesto de dedos no nariz ou da mão espalmada em abano.
E
por humano, centro da criação divina e motivo da feira, o cheiro do peido anula
momentaneamente todos os cheiros.
Agora
os sons nessa Babel desarvorada, cada um apregoando as excelências do que estão
vendendo, em vozerio cada vez mais potente porque a concorrência não se esgota
na qualidade e no preço dos produtos, mas na publicidade posta nas próprias
vozes, todos gritando ao mesmo tempo, para que os potenciais fregueses escutem,
e alguém saca o megafone ao lado da barraca de CDs piratas tocando um rock,
aquela um sertanejo, a outra, um pagode, todas próximas, juntas ao bar em
frente em animado forró regado a buchada de bode e pinga, os fregueses gritando
aos barraqueiros, para se fazerem escutados, a mãe que berra pelo filho
escondido embaixo de um tabuleiro, e o avião que passa, o motor do carro que
ronca, as buzinas, o apito do guarda na esquina, os brinquedos eletrônicos, e a
voz de fundo, que não pode faltar “arrependei-vos do que estão fazendo porque
Jesus está voltando. No capítulo três, versículo quinze está escrito...”,
“batatas só um e vinte, a melhor batata da feira, filezinho, só um e vinte”,
alguém complementa, alheio ao apocalipse no estacionamento, só esperando a
feira acabar, como se a feira não fosse o apocalipse em curso.
E
o sexo? Não o sexo explícito e assumido nas camas, nos matagais, em motéis e
pontos de breves encontros, muito menos junto aos muros e nos gramados
públicos, no interior dos automóveis, em estacionamentos e ruas escuras, mas no
seu estado máximo de criatividade e despudor, o só imaginado.
O
disfarçado beliscão da noiva que viu o noivo vendo um pescoço convidativo, um
olhar de fome, um meio sorriso disfarçado; o esporro explícito e público da
esposa que flagrou o marido com os olhos balançando no ritmo da bunda que
caminha mais à frente, ou porque cerrou pálpebras, os inocentes olhinhos quase
adormecidos sobre o decote da vendedora de ovos, justo quando ela se debruçou;
a loura de minissaia, um par de coxas que... Céus!, debruçada sobre a banca de
alho, e pelo movimento em torno, marmanjos babando, a gente sem entender porque
o brasileiro gosta tanto de alho, a ponto de substituir as batatas por alho em
seus ensopados, a mulherada fazendo musculação de pescoço porque o rapagão
passou de sunga de praia, superestimado diante dos maridos, noivos e namorados,
os pobres, atrofiados e murchos nas cabeças delas, sem contar os esbarrões sem
querer, desculpe-me minha senhora, foi mal, o engarrafamento de corpos porque
alguém está discutindo, e sempre sem querer, desculpe, o sarro, o rala, a relada.
Mas
há que se organizar a suruba social e surgem as autoridades: o fiscal da
fazenda (rapa) passando a cuia, para que os pobres camelôs exerçam o ofício
hoje; o fiscal do instituto de pesos e medidas correndo chapéu para que, vítima
de terçóis e conjuntivites momentâneas, não veja as balanças de ponteiros
alterados e pesos adulterados, com menos chumbo; os policiais militares
garantindo a ordem e a segurança, para impedir qualquer contratempo aos
vendedores de CDs piratas, DVDs piratas, roupas e tênis “de marca”, importados
diretamente de Caxias e Itaguaí; os relógios originais made in Paraguay; o
uísque escocês destilado em
Puerto Caballero ; as bicicletas novinhas, roubadas ainda esta
semana; peças originais, de carros desmontados horas atrás, e celulares em
promoção: “este telefone tem calculadora, máquina fotográfica, secretária
eletrônica, gravador, MP3, MP4, 5, 6... até 32, acessa a internet, toma a
bênção ao dono, mói carne e ainda frita pastel. Dois contos nas Casas Bahia.
Cem reais na minha mão”...
Por
que tomaram de empréstimo o nome de um pau, Brasil, quando tão bem podiam ter
adotado uma característica social, Feiril?
In “Não Haverá Mais Natais, romance
autobiográfico.
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