quinta-feira, 23 de maio de 2013

PESCARIA

Na cabeceira da pista o trânsito é intenso, todo o design da indústria aeronáutica desfilando diante dos meus olhos enamorados daquelas formas femininas, mulheres de braços abertos me esperando.
                  Um dia conduzirei um desses e do alto, lá depois das nuvens, pensarei que sou ave, anjo, qualquer coisa maior que um homem ancorado na aspereza do chão, arrastando-se, escravo da gravidade, até o último dia de vida, até que o chão o receba em definitivo.
                  Olhos nos aviões, pés na areia, água quase na cintura, examino um a um os puçás, não raro dois, três siris agarrados na isca, sebo de boi, antes que todos sumam, quando o óleo do aeroporto e da usina da Petrobrás, os esgotos de todas as casas da ilha e da cidade em torno tornarem esta praia um deserto líquido e fétido, negro, pequena célula do câncer que se amplia, corre campos e florestas, cidades e mares, transformando em tumor todo o planeta agônico, em dia futuro mausoléu de uma espécie insensata.
                  A metros de mim, acocorado no atracadouro meu pai aguarda mordidelas no anzol.
                  Serão pampos e cocorocas, papa-terras que se juntarão aos siris e freqüentarão a nossa mesa durante quase toda a semana, salvo uns ou outros ovos recolhidos no quintal, pá ou acém, lombinho entre batatas, às vezes sopa de entulho na semana subseqüente à do pagamento, menos de quando de vento a favor: dá camarão!
                  E, por pobreza, o paradoxo na mesa: camarão!
                  Tão gostoso quanto almoçar ou jantar é pescar almoço e janta!

In Não Haverá Mais Natais, romance autobiográfico.


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