sexta-feira, 24 de maio de 2013

CAGANEIRA

Estou deitado na sala, assistindo ao jornal matutino, quando escuto voz conhecida: “pai, pai...” Chorando.
                      Preocupado abro a porta. Meu filho, Adônis, então o caçula: “perdi a hora, pai. Vou ficar detido no quartel. Vão me prender, pai...”
                      A palavra pai soando como S.O.S. ou Mayday, pedidos de socorro.
                      “Calma, rapaz, o mundo não acabou. Para tudo há uma solução.”
                      “Que solução, pai! Vou ser desligado do curso de cabo, eu não escutei o despertador.”
                      “Calma que a gente resolve isso. Vá vestir a farda.”
                      Despir-se em fração de segundo é fácil, principalmente se a companhia, digo, o motivo, é relevante, mas fardar-se em tempo recorde, só com a ameaça de cadeia.
                      Mais tarde, deitado na rede, pensarei a respeito da covardia das guerras, quando meninos que choram porque perderam a hora se matam sem nem saberem o porque.
                      “O senhor ainda vai tomar banho? Estou ferrado” (ele, ao contrário de mim, não xinga palavrões).
                      “Calma, rapaz, não confia no seu pai?”
                      Entramos em meu carro, um possante e veloz fusquinha meia-meia, que prolongará a agonia do garoto.
                      “O que é que o senhor vai dizer?”
                      “Não vou dizer, vou fazer.”
                      “O quê, pai, você é maluco?”
                      “Existem situações sobre as quais não temos controle e você está numa situação dessas.”
                      “Não estou entendendo.”
                      “Alguém tem controle sobre a diarréia? É uma doença comum, boba, mas que nos impossibilita para qualquer coisa, o médico é obrigado a dar o dia, não interessa quem ou a quem.”
                      “Mas eu não estou com diarréia, pai. Você acha que o Oficial de Dia vai acreditar no senhor? Vai me...”
                      “Você está com diarréia!”
                      Paro na farmácia: “me vê aí uma garrafa de limonada purgativa, meu chapa!”
                      “Bebe tudo de uma vez só!”
                      “Isso tudo?”
                      “Prefere ficar detido?”
                      Minutos depois: “a minha barriga está roncando, está mexendo tudo, acelera aí, pai.”
                      Chego ao portão do quartel, reconhecem o meu filho, peço urgência, passando mal, deixam-nos passar.
                      Enquanto estou estacionando, o pobre sai correndo, passa pelo capitão e vai ao banheiro.
                      Dirijo-me ao capitão: “não dormiu a noite inteira, diarréia”, o militar me olhando com cara de quem diz fosses militar e eu te prenderia agora, miserável.

                      Encaminhou o garoto para a enfermaria e, enquanto eu esperava, para ver se o levava para casa ou permaneceria no quartel, na enfermaria, pude ouvir uma testemunha, que estava no banheiro: “o Adônis está mal. Cagou até as tripas! Derreteu.”

In "Não Haverá Mais Natais", romance autobiográfico.

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