quinta-feira, 23 de maio de 2013

O DIABO BOBO

Contam que lá pras bandas do interior, lá onde a cultura é local porque de fora só algum forasteiro ocasional, de passagem, vendendo quinquilharias e remédios de efeitos duvidosos, o último milagre da medicina, no dizer do vendedor, era crença unânime a da existência de um diabo que odiava mentiras.
                        É certo que cada interior tem as suas cismas e as suas crenças: lobisomem, pererê, boto cor de rosa, curupira... Mas todas carecem de provas, já que do imaginário popular à verdade lá se vão muitas léguas de averiguações dando em nada.
                        Acontece que nessa banda de que falo o diabo não era mote de cisma ou crença, muito menos de idéia bem acabada no imaginário do povo. Era coisa real e palpável, tangível como qualquer planta ou bicho.
                        De maneira que o tinhoso local virou um permanente pesadelo, e explico: sua missão entre os homens era arrebanhar os mentirosos e carregá-los para os quintos, para povoar a já super povoada mansão dos caluniadores, maledicentes, fofoqueiros, injuriadores... De todos os que fazem da mentira o pão de cada dia, e contam que mais vigilante que esse diabo, nenhum, sempre de prontidão, sem piscar nem dormir.
                        E já se viu algum humano que não mentisse? Quem, fosse para omitir o mal feito ou alardear o bem feito, pra seduzir ou se livrar, fosse até pra botar lucro ou vantagem em qualquer coisa, ou pra depreciar, fazer mais barato e fácil, quem, pergunto eu, quem nunca mentiu?
                        Ah! Eu não minto, me afirma alguém em flagrante mentira só pela afirmação feita, e respondo: seus pensamentos todos podem se tornar públicos?
                        Que pudica e fidelíssima esposa pode abrir o leque do seu imaginário ao marido?
                        E não se diga cá que a mentira e o cinismo são atributos femininos porque homem algum, ainda que por mui honrado e de extrema consideração, pode se dar a ver pelo avesso porque se definição de humano foi dada por alguém esse alguém foi o que disse “... limpos e caiados por fora, mas cheios de ossos e podridão por dentro.”
                        De tal verdade é o que afirmo que o diabo em questão, mais que vigiar palavras, a cata de mentirosos, apenas estabelecia o momento em que a mentira era proferida, como se num monte de lâmpadas sacasse aquela que se acendeu, certo de que mais tempo, menos tempo, cada uma delas se acenderá.
                        Resumindo: apenas organizava a fila para a entrada na mansão dos mentirosos, porque mais dia menos dia, todos e cada um caminharão voluntariamente para ela.
                        E assim era que os que permaneciam vivos o estavam por obra e graça da desatenção do cão, até que apareceu um estranho no lugar, dizem que vindo de bem longe, e inteirado do que acontecia, cigarrinho no canto da boca, sorrisinho de deboche, falou baixinho:
                        - Diabo bobo. Já encarei pior.
                        Deixando boquiabertos todos, macho, mulher e criança.
                        Para dar certificação de crédito em cima do que afirmara, continuou:
                        - Pois digam a esse diabinho requetreque que mentiroso maior que eu, por essas paragens e daqui até onde o lombo de qualquer burro pode carregar, não há. E mais, que minto nos cornos dele e continuo desfilando o meu deboche por aqui que a mim ele não leva. Podem procurar o cornudo e falar, tô esperando.
                        Mais rápido que má fama de donzela que se perdeu, o desafio se espalhou, logo-logo chegando ao conhecimento do cão que se arrepiou de tanto ódio:
                        - Por Belzebu, meu chefe, quem é esse mortal capaz de se julgar de poder suficiente para desafiar o inferno? Pois conhecerá a ira das trevas e rangerá os dentes por toda a eternidade, lastimando em cada minuto ter sido parido um dia.
                        E foi ter com o forasteiro sentado num toco, filosofando sobre sabe-se lá o quê:
                        - Ei, você aí! Sabe quem sou eu?
                        - Sei, o caça conversa fiada. Esses olhos vermelhos e esse cheiro denunciam a léguas, filho do tinhoso.
                        - Não me venha com orações e exorcismos que cago em cima. O que pretendes com esse desafio? Acaso te julgas mais forte que as hostes infernais?
                        - Mais forte não. Mais inteligente.
                        - Larga de baboseira, homem. Acaso não te ocorre que desde o início dos tempos travamos peleja com o Todo Poderoso? Não passa pela tua insana cabeça que para ludibriar os protegidos dEle há que ser sagaz, inteligente?
                        - E daí?
                        - O que queres aqui, o que te fez chegar até cá? Certamente não foi a minha procura, porque para isso bastaria invocar, em qualquer lugar. Tivesse eu ocupado, um irmão meu certamente teria contigo.
                        - Não. Dirigiu-me o destino uma senhorinha de doce olhar e belas pernas, mas, sabedor do infortúnio dessa gente, troquei o propósito e resolvi chegar para ser levado à mansão dos mentirosos. Isso mesmo: mentiroso maior que eu, nenhum. Estou aqui para ser conduzido às trevas.
                        - Pois farei isso já, infeliz. Tua assertiva é uma mentira, ninguém se atira ao sofrimento eterno voluntariamente. Tu mentes.
                        E surgiram outros, todos diabretes de menor importância na hierarquia infernal, ajudantes prontos a tomar à força os que resistiam.
                        Acercaram-se do forasteiro, prontos para enlaçá-lo, quando foram interrompidos:
                        - Espere, cão! Faço um desafio!
                        - Como? Então te achas capaz de resistir aos meus secretários?
                        - Não é com eles que quero pelejar, mas com você.
                        - Tolo! Tolo é o que és. Basta uma única baforada de fogo e te tosto, infeliz.
                        - Quero uma peleja mental, no campo da inteligência, já que você se julga de inteligência tamanha a ponto de peitar o Todo Poderoso, diabo bobo.
                        - Sim, e daí?
                        - Proponho um pacto: se não conseguir me levar para a mansão, você some, deixando esse povo continuar a mentir em paz, e mais, vai abrir todas as porteiras da mansão, libertando todos. Topa?
                        Certo de batalha vencida, diante de tantas outras antes vencidas, o cão concordou:
                        - Assim será feito, homem. Diga: qual é o desafio?
                        - Para ser apanhado por você há que ser pego em flagrante de mentira, certo?
                        - Certo.
                        - Na mansão não há um único que esteja lá por ter falado a verdade, certo?
                        - Certo.
                        - Eu lhe afirmei que cá estou para ser conduzido ao inferno. Sou mentiroso contumaz, mas, ainda que confessando, só posso ser levado se for pilhado em mentira, certo?
                        - Certo. Onde queres chegar com essa conversa irritante?
                        - Quando eu chegar na mansão, direi aos meus irmãos de infortúnio que lá estou porque não sou mentiroso: fui até você para ser levado à mansão, e lá cheguei...
Quer dizer, estarei lá por ter falado a verdade.
                        Foi o bastante para a diabada toda olhar para o chefe, como se em pensamento único: danou!
                        - E então, satã? Vai me levar por eu ter falado uma verdade? Ou vai libertar a todos porque eu menti?
                        Logo apareceram diabos outros, de maior importância nos quadros das barbaridades, e entraram em confabulação.
                        Momentos depois, muito sem graça, o diabão voltou:
                        - Está certo, homem. Eu vou embora e vou abrir as porteiras... Mas, me diz aí: de onde tiraste essa idéia maluca?
                        - Da razão, satanás. Não há lógica na maldade.


                                                                           Rio, 25/02/2012.

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