Contam que lá
pras bandas do interior, lá onde a cultura é local porque de fora só algum
forasteiro ocasional, de passagem, vendendo quinquilharias e remédios de
efeitos duvidosos, o último milagre da medicina, no dizer do vendedor, era crença
unânime a da existência de um diabo que odiava mentiras.
É certo que cada
interior tem as suas cismas e as suas crenças: lobisomem, pererê, boto cor de
rosa, curupira... Mas todas carecem de provas, já que do imaginário popular à
verdade lá se vão muitas léguas de averiguações dando em nada.
Acontece que nessa banda
de que falo o diabo não era mote de cisma ou crença, muito menos de idéia bem
acabada no imaginário do povo. Era coisa real e palpável, tangível como
qualquer planta ou bicho.
De maneira que o tinhoso
local virou um permanente pesadelo, e explico: sua missão entre os homens era
arrebanhar os mentirosos e carregá-los para os quintos, para povoar a já super povoada
mansão dos caluniadores, maledicentes, fofoqueiros, injuriadores... De todos os
que fazem da mentira o pão de cada dia, e contam que mais vigilante que esse diabo,
nenhum, sempre de prontidão, sem piscar nem dormir.
E já se viu algum humano
que não mentisse? Quem, fosse para omitir o mal feito ou alardear o bem feito,
pra seduzir ou se livrar, fosse até pra botar lucro ou vantagem em qualquer
coisa, ou pra depreciar, fazer mais barato e fácil, quem, pergunto eu, quem
nunca mentiu?
Ah! Eu não minto, me
afirma alguém em flagrante mentira só pela afirmação feita, e respondo: seus pensamentos
todos podem se tornar públicos?
Que pudica e fidelíssima
esposa pode abrir o leque do seu imaginário ao marido?
E não se diga cá que a
mentira e o cinismo são atributos femininos porque homem algum, ainda que por
mui honrado e de extrema consideração, pode se dar a ver pelo avesso porque se
definição de humano foi dada por alguém esse alguém foi o que disse “... limpos
e caiados por fora, mas cheios de ossos e podridão por dentro.”
De tal verdade é o que
afirmo que o diabo em questão, mais que vigiar palavras, a cata de mentirosos,
apenas estabelecia o momento em que a mentira era proferida, como se num monte
de lâmpadas sacasse aquela que se acendeu, certo de que mais tempo, menos
tempo, cada uma delas se acenderá.
Resumindo: apenas
organizava a fila para a entrada na mansão dos mentirosos, porque mais dia
menos dia, todos e cada um caminharão voluntariamente para ela.
E assim era que os que
permaneciam vivos o estavam por obra e graça da desatenção do cão, até que
apareceu um estranho no lugar, dizem que vindo de bem longe, e inteirado do que
acontecia, cigarrinho no canto da boca, sorrisinho de deboche, falou baixinho:
- Diabo bobo. Já encarei
pior.
Deixando boquiabertos todos,
macho, mulher e criança.
Para dar certificação de
crédito em cima do que afirmara, continuou:
- Pois digam a esse
diabinho requetreque que mentiroso maior que eu, por essas paragens e daqui até
onde o lombo de qualquer burro pode carregar, não há. E mais, que minto nos
cornos dele e continuo desfilando o meu deboche por aqui que a mim ele não
leva. Podem procurar o cornudo e falar,
tô esperando.
Mais rápido que má fama
de donzela que se perdeu, o desafio se espalhou, logo-logo chegando ao
conhecimento do cão que se arrepiou de tanto ódio:
- Por Belzebu, meu chefe,
quem é esse mortal capaz de se julgar de poder suficiente para desafiar o
inferno? Pois conhecerá a ira das trevas e rangerá os dentes por toda a
eternidade, lastimando em cada minuto ter sido parido um dia.
E foi ter com o
forasteiro sentado num toco, filosofando sobre sabe-se lá o quê:
- Ei, você aí! Sabe quem
sou eu?
- Sei, o caça conversa
fiada. Esses olhos vermelhos e esse cheiro denunciam a léguas, filho do
tinhoso.
- Não me venha com
orações e exorcismos que cago em
cima. O que pretendes com esse desafio? Acaso te julgas mais
forte que as hostes infernais?
- Mais forte não. Mais
inteligente.
- Larga de baboseira,
homem. Acaso não te ocorre que desde o início dos tempos travamos peleja com o
Todo Poderoso? Não passa pela tua insana cabeça que para ludibriar os
protegidos dEle há que ser sagaz, inteligente?
- E daí?
- O que queres aqui, o
que te fez chegar até cá? Certamente não foi a minha procura, porque para isso
bastaria invocar, em qualquer lugar. Tivesse eu ocupado, um irmão meu certamente
teria contigo.
- Não. Dirigiu-me o
destino uma senhorinha de doce olhar e belas pernas, mas, sabedor do infortúnio
dessa gente, troquei o propósito e resolvi chegar para ser levado à mansão dos
mentirosos. Isso mesmo: mentiroso maior que eu, nenhum. Estou aqui para ser
conduzido às trevas.
- Pois farei isso já,
infeliz. Tua assertiva é uma mentira, ninguém se atira ao sofrimento eterno
voluntariamente. Tu mentes.
E surgiram outros, todos
diabretes de menor importância na hierarquia infernal, ajudantes prontos a
tomar à força os que resistiam.
Acercaram-se do
forasteiro, prontos para enlaçá-lo, quando foram interrompidos:
- Espere, cão! Faço um
desafio!
- Como? Então te achas
capaz de resistir aos meus secretários?
- Não é com eles que
quero pelejar, mas com você.
- Tolo! Tolo é o que és.
Basta uma única baforada de fogo e te tosto, infeliz.
- Quero uma peleja
mental, no campo da inteligência, já que você se julga de inteligência tamanha
a ponto de peitar o Todo Poderoso, diabo bobo.
- Sim, e daí?
- Proponho um pacto: se
não conseguir me levar para a mansão, você some, deixando esse povo continuar a
mentir em paz, e mais, vai abrir todas as porteiras da mansão, libertando
todos. Topa?
Certo de batalha
vencida, diante de tantas outras antes vencidas, o cão concordou:
- Assim será feito,
homem. Diga: qual é o desafio?
- Para ser apanhado por
você há que ser pego em flagrante de mentira, certo?
- Certo.
- Na mansão não há um
único que esteja lá por ter falado a verdade, certo?
- Certo.
- Eu lhe afirmei que cá
estou para ser conduzido ao inferno. Sou mentiroso contumaz, mas, ainda que
confessando, só posso ser levado se for pilhado em mentira, certo?
- Certo. Onde queres
chegar com essa conversa irritante?
- Quando eu chegar na
mansão, direi aos meus irmãos de infortúnio que lá estou porque não sou
mentiroso: fui até você para ser levado à mansão, e lá cheguei...
Quer dizer,
estarei lá por ter falado a verdade.
Foi o bastante para a
diabada toda olhar para o chefe, como se em pensamento único: danou!
- E então, satã? Vai me
levar por eu ter falado uma verdade? Ou vai libertar a todos porque eu menti?
Logo apareceram diabos
outros, de maior importância nos quadros das barbaridades, e entraram em
confabulação.
Momentos depois, muito
sem graça, o diabão voltou:
- Está certo, homem. Eu
vou embora e vou abrir as porteiras... Mas, me diz aí: de onde tiraste essa
idéia maluca?
- Da razão, satanás. Não
há lógica na maldade.
Rio, 25/02/2012.
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