Estou num corredor cheio de carteiras escolares, um
tablado de tábuas e um grande quadro negro.
Escolinha
de subúrbio. Só funciona de manhã e a tarde, então aluguei no turno da noite,
curso supletivo.
Recebi
recado, o dono da escolinha diurna quer falar comigo: muitas dívidas, processos
trabalhistas, indenizações, vai encerrar as atividades, vender o prédio para
indenizar os funcionários, interromper o contrato comigo, “me desculpe, espero que o senhor entenda”...
Digo-lhe
que comprarei o prédio e peço prazo para conseguir o dinheiro.
Examino
a conta no banco: saldo zero. Meto a mão nos bolsos: conteúdo zero. Vou às
gavetas, zero. Ao cofrinho das crianças, zero.
Faço
contraproposta: “arrendo a escola”.
“Não!”
Termina
o ano e todos os alunos são transferidos, a escolinha acabou.
Ato
de desespero: “já lhe falei que comprarei
o prédio! Dê-me só mais três dias!”
Uma
entrada e cinco papagaios, de valor muito além do que posso pagar, e mais a
responsabilização de parte das ações trabalhistas a serem proteladas,
negociadas, empurradas com a barriga...
Única
exigência minha: a documentação da escola, por compensação.
Marco
data da assinatura do contrato de compra e venda e pagamento da entrada.
Vou
à minha mãe: “mamãe, apareceu uma
oportunidade, estou precisando da senhora, sei que a senhora já fez muito por
mim e ti-ti-ti-ti-ti-ti...” Dinheiro da entrada na mão.
Nunca
paguei à velhinha.
Pagamento
dos papagaios, das indenizações trabalhistas herdadas, uma obrinha aqui, outra
benfeitoria ali, reforminhas... E a dívida foi ficando, foi ficando, foi
ficando... Virou calote.
Procuro
a secretária da escolinha diurna, já defunta: “volta, por favor!”
Começo
a publicidade: sob nova direção.
Agora
é caçar os alunos que se foram, mandar cartas, procurá-los em casa, panfletar,
pichar muros, colocar faixas nas esquinas...
Pintar
o prédio, contratar professoras...
Eis-me
diretor de escola, coordenador de escola, professor de algumas matérias,
funcionário de secretaria, inspetor de alunos, pintor, servente de pedreiro,
faxineiro, panfleteiro... Tudo ao mesmo tempo, até que a arrecadação me permita
dar uma folga ao esqueleto alquebrado, sustentando uma cabeça neurótica
permanentemente em contas.
Primeiro
dia de aula: trinta e dois alunos distribuídos por quatro turmas.
Mais
que temeridade, quadro de falência anunciada.
Invento
um bolsão do tipo fazemos qualquer negócio. Espalho propaganda nas escolas
públicas, nas ruas do bairro, na rodoviária... Muitos inscritos.
Duas
etapas.
Na
primeira, reunião com os pais e responsáveis dos inscritos. Falar da falência
do ensino público, da excelência do ensino privado, escola não é despesa, é
investimento, filhos merecem, minha experiência, quase vinte anos dentro de
escolas, realização de sonho, dar o melhor de mim, melhores professores da
região e blá-blá-blá-blá-blá...
Segunda
etapa, prova na semana seguinte, a garotada estudando, mais gente querendo
inscrever os filhos após o período de inscrição, prorrogado até a hora da
prova, claro...
Salto
de trinta e dois para mais de oitenta alunos matriculados, aleluia! Já quase
empata. Pelo menos paga os professores e quase cobre os papagaios.
Logo
os amigos e vizinhos sabem que eu estou dirigindo a escola e transferem os
filhos.
Os
amigos dos amigos, os conhecidos dos conhecidos, alguém grato por uma bolsa
concedida... Todo mundo indicando a escola para outros, e a campanha
cheque-mate: traga um aluno e ganhe um mês grátis, ampliada no ano seguinte
para traga dois alunos e ganhe um ano grátis... Deslanchando de vez.
Planos
econômicos: cruzeiro, cruzeiro-novo, cruzeiro outra vez, cruzado, cruzado-novo,
Sarney-velho, ACM-mais velho ainda, uma suruba desgraçada, o povo entrando com
a bunda e a classe dominante com o resto.
Depois
Collor-confisco da poupança, retenção de ativos, suicídios, falências, o meu
poder de fogo econômico exatamente igual ao dos magnatas, o mesmo capital de
giro, zero, tiroteio na zona, pedófilos tomando conta do recreio no jardim da
infância, raposas gerenciando o galinheiro, comandos e falanges ditando
sentenças e... A hora é essa!
Aproveito-me
do momento de especulação e, canalhamente, para os meus princípios, uso o
arrocho salarial e o aumento desmedido de preços - e tome corta zeros da moeda
- para ampliar a escola, contratar mais funcionários em promoção, dois a preço
de um, e negociar carteiras escolares, tijolo, cimento, ferro, telhas, areia,
brita que há de crescer, o momento é esse, enquanto me divido com
questionários, quantas pessoas moram no domicílio? Próprio, alugado ou cedido?
Tem água encanada, fossa séptica? Quantos trabalham? Saco!
Para
amenizar a consciência, as passeatas: “fora
Collor! Impeachment já!” E prodigalidade na concessão de bolsas de estudos:
pai desempregado? Vem. Órfão? Vem. Pais separados, pensão de merda? Vem. Filho
de puta? Vem. Carente? Vem...
E
a secretária, inocente dos mecanismos do capitalismo selvagem em curso: “professor, a quantidade de bolsistas já
está quase igual à de pagantes”, sem saber que, Robin Hood à minha maneira,
transfiro renda na comunidade, bem antes do Lula.
Levanto a primeira parede, a segunda, terceira... Uma sala, mais uma,
outra. Lajeio, faço mais salas, coloco alunos, contrato professores, faço valer
a experiência de mais de duas décadas vendo diretores errarem, acertarem...
Compro
os terrenos dos lados, amplio o prédio, ganho credibilidade das autoridades da
educação, reconhecimento na comunidade... A escolinha virou escola.
Patrimônio
aumentando, um lote aqui, outro ali... Até que a secretária oferece: “professor, a minha mãe herdou o pedaço do
sítio que era dos meus avós, o senhor não está interessado em comprar não?”
“Vou ver. Quando é que você pode me
mostrar?”
No
morro, uma pirambeira do cão, mas o meu primeiro pedaço de roça, o meu ninho no
fim da vida, na rede, netos em volta, carne na churrasqueira, cervejas,
risadas... Plantas, bichinhos... Natureza.
Volta
ao assunto: “a minha tia ficou sabendo
que o senhor comprou o pedaço da minha mãe e mandou perguntar se o senhor quer
comprar o dela também”, e logo a notícia se espalha na família, o professor
está comprando, e o sítio cresce, atravessa cercas, arromba porteiras, engole
capinzais, incorpora árvores, pedras, pássaros... Incha como o meu orgulho, eu
sabia que não morreria sem ter uma roça, bicho urbano mas de raízes em Sergipe
de papai, no Ceará de vovô, no Brasil agrário reclamando a reforma que recheia
os meus discursos.
In Não Haverá
Mais Natais, romance autobiográfico
Nenhum comentário:
Postar um comentário