quinta-feira, 23 de maio de 2013

COMO NASCEU A MINHA "FORTUNA"

Estou num corredor cheio de carteiras escolares, um tablado de tábuas e um grande quadro negro.
                  Escolinha de subúrbio. Só funciona de manhã e a tarde, então aluguei no turno da noite, curso supletivo.
                  Recebi recado, o dono da escolinha diurna quer falar comigo: muitas dívidas, processos trabalhistas, indenizações, vai encerrar as atividades, vender o prédio para indenizar os funcionários, interromper o contrato comigo, “me desculpe, espero que o senhor entenda”...
                  Digo-lhe que comprarei o prédio e peço prazo para conseguir o dinheiro.
                  Examino a conta no banco: saldo zero. Meto a mão nos bolsos: conteúdo zero. Vou às gavetas, zero. Ao cofrinho das crianças, zero.
                  Faço contraproposta: “arrendo a escola”.
                  “Não!”
                  Termina o ano e todos os alunos são transferidos, a escolinha acabou.
                  Ato de desespero: “já lhe falei que comprarei o prédio! Dê-me só mais três dias!”
                  Uma entrada e cinco papagaios, de valor muito além do que posso pagar, e mais a responsabilização de parte das ações trabalhistas a serem proteladas, negociadas, empurradas com a barriga...
                  Única exigência minha: a documentação da escola, por compensação.
                  Marco data da assinatura do contrato de compra e venda e pagamento da entrada.
                  Vou à minha mãe: “mamãe, apareceu uma oportunidade, estou precisando da senhora, sei que a senhora já fez muito por mim e ti-ti-ti-ti-ti-ti...” Dinheiro da entrada na mão.
                  Nunca paguei à velhinha.
                  Pagamento dos papagaios, das indenizações trabalhistas herdadas, uma obrinha aqui, outra benfeitoria ali, reforminhas... E a dívida foi ficando, foi ficando, foi ficando... Virou calote.
                  Procuro a secretária da escolinha diurna, já defunta: “volta, por favor!”
                  Começo a publicidade: sob nova direção.
                  Agora é caçar os alunos que se foram, mandar cartas, procurá-los em casa, panfletar, pichar muros, colocar faixas nas esquinas...
                  Pintar o prédio, contratar professoras...
                  Eis-me diretor de escola, coordenador de escola, professor de algumas matérias, funcionário de secretaria, inspetor de alunos, pintor, servente de pedreiro, faxineiro, panfleteiro... Tudo ao mesmo tempo, até que a arrecadação me permita dar uma folga ao esqueleto alquebrado, sustentando uma cabeça neurótica permanentemente em contas.
                  Primeiro dia de aula: trinta e dois alunos distribuídos por quatro turmas.
                  Mais que temeridade, quadro de falência anunciada.
                  Invento um bolsão do tipo fazemos qualquer negócio. Espalho propaganda nas escolas públicas, nas ruas do bairro, na rodoviária... Muitos inscritos.
                  Duas etapas.
                  Na primeira, reunião com os pais e responsáveis dos inscritos. Falar da falência do ensino público, da excelência do ensino privado, escola não é despesa, é investimento, filhos merecem, minha experiência, quase vinte anos dentro de escolas, realização de sonho, dar o melhor de mim, melhores professores da região e blá-blá-blá-blá-blá...
                  Segunda etapa, prova na semana seguinte, a garotada estudando, mais gente querendo inscrever os filhos após o período de inscrição, prorrogado até a hora da prova, claro...
                  Salto de trinta e dois para mais de oitenta alunos matriculados, aleluia! Já quase empata. Pelo menos paga os professores e quase cobre os papagaios.
                  Logo os amigos e vizinhos sabem que eu estou dirigindo a escola e transferem os filhos.
                  Os amigos dos amigos, os conhecidos dos conhecidos, alguém grato por uma bolsa concedida... Todo mundo indicando a escola para outros, e a campanha cheque-mate: traga um aluno e ganhe um mês grátis, ampliada no ano seguinte para traga dois alunos e ganhe um ano grátis... Deslanchando de vez.
                 
                  Planos econômicos: cruzeiro, cruzeiro-novo, cruzeiro outra vez, cruzado, cruzado-novo, Sarney-velho, ACM-mais velho ainda, uma suruba desgraçada, o povo entrando com a bunda e a classe dominante com o resto.
                  Depois Collor-confisco da poupança, retenção de ativos, suicídios, falências, o meu poder de fogo econômico exatamente igual ao dos magnatas, o mesmo capital de giro, zero, tiroteio na zona, pedófilos tomando conta do recreio no jardim da infância, raposas gerenciando o galinheiro, comandos e falanges ditando sentenças e... A hora é essa!
                  Aproveito-me do momento de especulação e, canalhamente, para os meus princípios, uso o arrocho salarial e o aumento desmedido de preços - e tome corta zeros da moeda - para ampliar a escola, contratar mais funcionários em promoção, dois a preço de um, e negociar carteiras escolares, tijolo, cimento, ferro, telhas, areia, brita que há de crescer, o momento é esse, enquanto me divido com questionários, quantas pessoas moram no domicílio? Próprio, alugado ou cedido? Tem água encanada, fossa séptica? Quantos trabalham? Saco!
                  Para amenizar a consciência, as passeatas: “fora Collor! Impeachment já!” E prodigalidade na concessão de bolsas de estudos: pai desempregado? Vem. Órfão? Vem. Pais separados, pensão de merda? Vem. Filho de puta? Vem. Carente? Vem...
                  E a secretária, inocente dos mecanismos do capitalismo selvagem em curso: “professor, a quantidade de bolsistas já está quase igual à de pagantes”, sem saber que, Robin Hood à minha maneira, transfiro renda na comunidade, bem antes do Lula.
             Levanto a primeira parede, a segunda, terceira... Uma sala, mais uma, outra. Lajeio, faço mais salas, coloco alunos, contrato professores, faço valer a experiência de mais de duas décadas vendo diretores errarem, acertarem...
                  Compro os terrenos dos lados, amplio o prédio, ganho credibilidade das autoridades da educação, reconhecimento na comunidade... A escolinha virou escola.
                  Patrimônio aumentando, um lote aqui, outro ali... Até que a secretária oferece: “professor, a minha mãe herdou o pedaço do sítio que era dos meus avós, o senhor não está interessado em comprar não?”
                  “Vou ver. Quando é que você pode me mostrar?”
                  No morro, uma pirambeira do cão, mas o meu primeiro pedaço de roça, o meu ninho no fim da vida, na rede, netos em volta, carne na churrasqueira, cervejas, risadas... Plantas, bichinhos... Natureza.
                  Volta ao assunto: “a minha tia ficou sabendo que o senhor comprou o pedaço da minha mãe e mandou perguntar se o senhor quer comprar o dela também”, e logo a notícia se espalha na família, o professor está comprando, e o sítio cresce, atravessa cercas, arromba porteiras, engole capinzais, incorpora árvores, pedras, pássaros... Incha como o meu orgulho, eu sabia que não morreria sem ter uma roça, bicho urbano mas de raízes em Sergipe de papai, no Ceará de vovô, no Brasil agrário reclamando a reforma que recheia os meus discursos.


In Não Haverá Mais Natais, romance autobiográfico

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