quinta-feira, 23 de maio de 2013

NEM TOMATE NEM QUIABO

Estou na horta, tentando vencer a batalha contra as ervas invasoras, a minha falta de tempo garantindo-lhes a vantagem: o sistema penitenciário, o censo agrícola, as aulas e o bico, segurança.
                  Mal tenho tempo de dormir, dividindo-me em tarefas díspares e não complementares, com tempo só para dormir e fingir fazer filhos porque a mulher ligou, senão seria um montão esperando papá e brinquedos, roupa, caramba, essa minha vida de caixeiro viajante, só trabalhar e fazer filhos...
                  Censo agrícola, recenseador: seguir um itinerário chamado de setor, localizar e identificar cada propriedade agrícola, entrevistar o proprietário ou pessoa autorizada, responsável pela propriedade, e lançar os dados num questionário previamente impresso.
                  Como gosto de bichos e plantas, atividade prazerosa.
                  Terminados todos os setores da agência em que estava lotado, sou transferido para outra agência, em outro bairro, onde o serviço se arrasta devido ao grande número de pequenas propriedades rurais, praticamente dentro da cidade, agora com o cargo de supervisor, cujas atribuições são coordenar a distribuição dos setores e questionários, fazer a recepção dos questionários preenchidos e realizar entrevistas pendentes ou de difícil realização, por recusa do entrevistado.
                  Uma das supervisoras que trabalha comigo tem pouca, para não dizer nenhuma iniciativa. Sempre trabalhara em ambiente fechado, escritórios, além do medo, condizente com o físico, frágil, e a maneira polida de agir e falar, dificultando a abordagem aos informantes recalcitrantes ou que se recusam às respostas.
                  O chefe da agência me chama: “há uma propriedade em que estão se recusando a receber a entrevistadora e a supervisora. Há cadeado na porteira e disseram ter visto homens armados. Como você trabalha com segurança, eu gostaria que desse uma olhada. Mas não se arrisque. Só acompanhe as meninas.”
                  Chego com as meninas, supervisora e recenseadora, na porteira fechada com corrente e cadeado.
                  Bato palmas, chamo, gritando, e observo pelo menos dois homens disfarçados entre as árvores.
                  Ninguém atende e resolvemos ir embora.
                  Narramos o ocorrido ao chefe da agência. Pede que não voltemos lá.
                  Peço para voltar só mais uma vez, quem sabe atendem? Consente.
                  Aproximo-me da porteira com precaução, muito desconfiado, e percebo dois homens na varanda, sentados, olhando-me.
                  Não os chamo. Examino corrente e cadeado, empurro a porteira, quase acintosamente, como se me preparasse para invadir,  e um deles grita qualquer coisa em minha direção.
                  Levanta-se e vem ao portão, até mim.
                  “O que é que você quer, meu chapa?”
                  “Eu queria falar com o proprietário ou o responsável pela propriedade...”
                  “Falar o quê?”
                  “Trabalho no IBGE, e como deve ser do seu conhecimento, através do rádio e da televisão, o governo está fazendo um levantamento da produção agrícola em todo o Brasil. É o Censo Agropecuário. Todas as propriedades rurais do país estão obrigadas a prestar informações.”
                  “E se eu não der?”
                  “As meninas, minhas colegas, já estiveram aqui um bocado de vezes à toa. Eu sou o chefe delas, o responsável por essa área. Se o senhor não prestar as informações e não permitir que prestem, farei um relatório descrevendo o que ocorreu e encaminharei aos meus superiores...”
                  “E aí?” Voz ameaçadora.
                  “Aí intimação do órgão, intimação judicial, invasão com ajuda policial... Vai depender dos senhores”, blefei.
                  “Não custa nada, amigo. Em poucos minutos eu faço isso. Só algumas perguntas. O senhor fica livre de mim e eu não preciso vir mais aqui.”
                  “Está bem, o senhor volte aqui amanhã a esta hora, sem as meninas. Vou falar com o ‘home’”.
                  Na mesma hora da véspera, dois me esperam na porteira, mais um na varanda, certamente outros no pomar, tem alguma coisa errada aqui.
                  “O patrão liberou.”
                  Voz de alívio, como se dissesse eu não tenho nada com isso.
                  “Quem vai ser o responsável pelas informações?”
                  “Vou lhe apresentar.”
                  Chego ao alpendre de pouco mais que uma choça, mera palhoça.
                  Um homem magro, bem magro, com calça herdada de quem tinha o triplo do seu peso, barbante dobrado em três substituindo o cinto, blusão enorme desabotoado, pés no chão, sujo de sujeira semanal, esboça o que suponho ser desconfiado sorriso.
                  “É ele, vou lhe apresentar.”
                  “Bom dia, eu sou F..., funcionário do IBGE. Não sei se o moço lhe explicou, eu preciso de umas informações suas, vou dar uma olhada na propriedade...”
                  “Tá bom!”
                  Começo a anotar: endereço, nome do proprietário, quantas pessoas moram, o que criam e plantam, se é para venda ou consumo próprio... Certo de que ali sou importante: dois seguranças não me abandonam um só instante, mediando com olhares as respostas do moço.
                  “Vamos dar uma olhada?”
                  Um chiqueiro de alguns porcos ancorados na lama, quase me obrigando a revisar conceitos e admitir que suínos são anfíbios.
                  Galinhas, galos, angolas, gansos, patos e pombos numa miscelânea de Noé, tudo misturado, esperando o fim do dilúvio. Uma vaca esquálida, tipo personagem do Henfil, e uma cachorrada de não ter fim.
                  “Vamos ver as plantas, agora?”
                  Esparsas frutíferas, sem caracterizar produção, talvez fontes de refeições únicas para aquele homem, a mulher e vasta e continuada prole.
                  Uma hortinha, até que bem cuidada, e o verde viçoso e contínuo, homogêneo, morro abaixo, cerca de um hectare e meio, ocupando três quartos da propriedade.
                  “O que é aquilo?”
                  O calça grande olha para os meus dois seguranças e um deles responde: “tomate!”
                  Não vejo estacas nem frutos, os pés estão altos, o clima é muito quente e nenhum vizinho planta tomates. Estranho.
                  “Tomates?”
                  “Sim senhor, não está vendo?”
                  “Posso ver esses tomateiros?”
                  Entreolham-se, os três: “o senhor é quem sabe!!!”
                  Encaminho-me para a plantação, o calça grande na frente, um dos seguranças do meu lado e o outro atrás.
                  Não preciso me aproximar muito: Canabis sativa. Maconha, diamba, marijuana, manga rosa... Pode botar nome e apelido que os há às centenas...
                  Maconha em Bangu, um hectare e meio, em um dos mais populosos bairros do Rio de Janeiro, a poucos quilômetros do complexo penitenciário, a menos de um quilômetro da linha férrea, praticamente no centro comercial... Maconha, meu Deus! Um hectare e meio, quase dois quarteirões de... Maconha!
                  Franzo a testa, limito as pretendidas gargalhadas a um sorriso, já meio assustado. Os três estudam as minhas reações.
                  “E aí?”
                  “O senhor é que sabe, vê o que pode fazer por nós.”
                  Aparecem mais dois, medida intimidatória.
                  “Tomate não. Com essa solina, sem irrigação, só tomate vagabundo.”
                  “O que é que o senhor vai botar?”
                  “O que de longe mais se parece com isso é quiabo. Nessa área plantam muito quiabo e é cultura de verão.
                  Vai quiabo mesmo, pode ficar tranqüilo que isso vai ser codificado. Vale o escrito e o supervisor da área sou eu. Eu é que dou as incertas pra ver se os recenseadores não chutaram. Pode ficar tranqüilo.”
                  Levam-me até o portão: “vê lá, hein, sangue bom!”
                  “Fica na paz que morreu tudo aqui. Aqui não, lá dentro. Um abraço pra vocês.”
                  Chego na agência. O chefe: “conseguiu?”
                  Empoluto-me: “eu sou eu, P.. Está na mão.”
                  “Qual era o mistério?”
                  Faço sinal para irmos para um canto. Vamos à cozinha, vazia: “o meu salário contra o teu: o que é que os caras têm lá?”
                  “Desmonte de carro?”
                  “Não.”
                  “Boca?”
                  “Não.”
                  “Puteiro?”
                  “Também não. Você não vai acertar, nem acreditar. Maconha!”
                  “Eles estocam maconha lá?”
                  “Estocam nada... Plantam. Quase dois quarteirões, P.”
                  “O que é que você fez, F.?”
                  “Lancei como quiabo, é o que mais parece. Vou ver a produtividade dos vizinhos e chutar a produção deles, a não ser que a gente bote o sítio como abandonado, sem produção, sei lá.”
                  “Depois desse sacrifico todo? Pode deixar quiabo mesmo.”
                  Gostosas risadas nossas.


In Não Haverá Mais Natais, romance autobiográfico

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