Estou na horta, tentando vencer a batalha contra as
ervas invasoras, a minha falta de tempo garantindo-lhes a vantagem: o sistema
penitenciário, o censo agrícola, as aulas e o bico, segurança.
Mal
tenho tempo de dormir, dividindo-me em tarefas díspares e não complementares,
com tempo só para dormir e fingir fazer filhos porque a mulher ligou, senão
seria um montão esperando papá e brinquedos, roupa, caramba, essa minha vida de
caixeiro viajante, só trabalhar e fazer filhos...
Censo
agrícola, recenseador: seguir um itinerário chamado de setor, localizar e
identificar cada propriedade agrícola, entrevistar o proprietário ou pessoa
autorizada, responsável pela propriedade, e lançar os dados num questionário
previamente impresso.
Como
gosto de bichos e plantas, atividade prazerosa.
Terminados
todos os setores da agência em que estava lotado, sou transferido para outra
agência, em outro bairro, onde o serviço se arrasta devido ao grande número de
pequenas propriedades rurais, praticamente dentro da cidade, agora com o cargo
de supervisor, cujas atribuições são coordenar a distribuição dos setores e
questionários, fazer a recepção dos questionários preenchidos e realizar
entrevistas pendentes ou de difícil realização, por recusa do entrevistado.
Uma
das supervisoras que trabalha comigo tem pouca, para não dizer nenhuma
iniciativa. Sempre trabalhara em ambiente fechado, escritórios, além do medo,
condizente com o físico, frágil, e a maneira polida de agir e falar,
dificultando a abordagem aos informantes recalcitrantes ou que se recusam às
respostas.
O
chefe da agência me chama: “há uma
propriedade em que estão se recusando a receber a entrevistadora e a
supervisora. Há cadeado na porteira e disseram ter visto homens armados. Como
você trabalha com segurança, eu gostaria que desse uma olhada. Mas não se
arrisque. Só acompanhe as meninas.”
Chego
com as meninas, supervisora e recenseadora, na porteira fechada com corrente e
cadeado.
Bato
palmas, chamo, gritando, e observo pelo menos dois homens disfarçados entre as
árvores.
Ninguém
atende e resolvemos ir embora.
Narramos
o ocorrido ao chefe da agência. Pede que não voltemos lá.
Peço
para voltar só mais uma vez, quem sabe atendem? Consente.
Aproximo-me
da porteira com precaução, muito desconfiado, e percebo dois homens na varanda,
sentados, olhando-me.
Não
os chamo. Examino corrente e cadeado, empurro a porteira, quase acintosamente,
como se me preparasse para invadir, e um
deles grita qualquer coisa em minha direção.
Levanta-se
e vem ao portão, até mim.
“O que é que você quer, meu chapa?”
“Eu queria falar com o
proprietário ou o responsável pela propriedade...”
“Falar o quê?”
“Trabalho no IBGE, e como deve
ser do seu conhecimento, através do rádio e da televisão, o governo está
fazendo um levantamento da produção agrícola em todo o Brasil. É o Censo
Agropecuário. Todas as propriedades rurais do país estão obrigadas a prestar
informações.”
“E se eu não der?”
“As meninas, minhas colegas,
já estiveram aqui um bocado de vezes à toa. Eu sou o chefe delas, o responsável
por essa área. Se o senhor não prestar as informações e não permitir que
prestem, farei um relatório descrevendo o que ocorreu e encaminharei aos meus
superiores...”
“E aí?” Voz ameaçadora.
“Aí intimação do órgão, intimação judicial,
invasão com ajuda policial... Vai depender dos senhores”, blefei.
“Não custa nada, amigo. Em
poucos minutos eu faço isso. Só algumas perguntas. O senhor fica livre de mim e
eu não preciso vir mais aqui.”
“Está bem, o senhor volte aqui
amanhã a esta hora, sem as meninas. Vou falar com o ‘home’”.
Na
mesma hora da véspera, dois me esperam na porteira, mais um na varanda,
certamente outros no pomar, tem alguma coisa errada aqui.
“O patrão liberou.”
Voz
de alívio, como se dissesse eu não tenho nada com isso.
“Quem vai ser o responsável pelas
informações?”
“Vou lhe apresentar.”
Chego
ao alpendre de pouco mais que uma choça, mera palhoça.
Um
homem magro, bem magro, com calça herdada de quem tinha o triplo do seu peso,
barbante dobrado em três substituindo o cinto, blusão enorme desabotoado, pés
no chão, sujo de sujeira semanal, esboça o que suponho ser desconfiado sorriso.
“É ele, vou lhe apresentar.”
“Bom dia, eu sou F...,
funcionário do IBGE. Não sei se o moço lhe explicou, eu preciso de umas
informações suas, vou dar uma olhada na propriedade...”
“Tá bom!”
Começo
a anotar: endereço, nome do proprietário, quantas pessoas moram, o que criam e
plantam, se é para venda ou consumo próprio... Certo de que ali sou importante:
dois seguranças não me abandonam um só instante, mediando com olhares as
respostas do moço.
“Vamos dar uma olhada?”
Um
chiqueiro de alguns porcos ancorados na lama, quase me obrigando a revisar
conceitos e admitir que suínos são anfíbios.
Galinhas,
galos, angolas, gansos, patos e pombos numa miscelânea de Noé, tudo misturado,
esperando o fim do dilúvio. Uma vaca esquálida, tipo personagem do Henfil, e
uma cachorrada de não ter fim.
“Vamos ver as plantas, agora?”
Esparsas
frutíferas, sem caracterizar produção, talvez fontes de refeições únicas para
aquele homem, a mulher e vasta e continuada prole.
Uma
hortinha, até que bem cuidada, e o verde viçoso e contínuo, homogêneo, morro
abaixo, cerca de um hectare e meio, ocupando três quartos da propriedade.
“O que é aquilo?”
O
calça grande olha para os meus dois seguranças e um deles responde: “tomate!”
Não
vejo estacas nem frutos, os pés estão altos, o clima é muito quente e nenhum
vizinho planta tomates. Estranho.
“Tomates?”
“Sim senhor, não está vendo?”
“Posso ver esses tomateiros?”
Entreolham-se,
os três: “o senhor é quem sabe!!!”
Encaminho-me
para a plantação, o calça grande na frente, um dos seguranças do meu lado e o
outro atrás.
Não
preciso me aproximar muito: Canabis
sativa. Maconha, diamba, marijuana, manga rosa... Pode botar nome e apelido
que os há às centenas...
Maconha
em Bangu, um hectare e meio, em um dos mais populosos bairros do Rio de
Janeiro, a poucos quilômetros do complexo penitenciário, a menos de um
quilômetro da linha férrea, praticamente no centro comercial... Maconha, meu
Deus! Um hectare e meio, quase dois quarteirões de... Maconha!
Franzo
a testa, limito as pretendidas gargalhadas a um sorriso, já meio assustado. Os
três estudam as minhas reações.
“E aí?”
“O senhor é que sabe, vê o que
pode fazer por nós.”
Aparecem
mais dois, medida intimidatória.
“Tomate não. Com essa solina, sem irrigação,
só tomate vagabundo.”
“O que é que o senhor vai
botar?”
“O que de longe mais se parece
com isso é quiabo. Nessa área plantam muito quiabo e é cultura de verão.
Vai quiabo mesmo, pode ficar
tranqüilo que isso vai ser codificado. Vale o escrito e o supervisor da área
sou eu. Eu é que dou as incertas pra ver se os recenseadores não chutaram. Pode
ficar tranqüilo.”
Levam-me
até o portão: “vê lá, hein, sangue bom!”
“Fica na paz que morreu tudo
aqui. Aqui não, lá dentro. Um abraço pra vocês.”
Chego
na agência. O chefe: “conseguiu?”
Empoluto-me:
“eu sou eu, P.. Está na mão.”
“Qual era o mistério?”
Faço
sinal para irmos para um canto. Vamos à cozinha, vazia: “o meu salário contra o teu: o que é que os caras têm lá?”
“Desmonte de carro?”
“Não.”
“Boca?”
“Não.”
“Puteiro?”
“Também não. Você não vai
acertar, nem acreditar. Maconha!”
“Eles estocam maconha lá?”
“Estocam nada... Plantam.
Quase dois quarteirões, P.”
“O que é que você fez, F.?”
“Lancei como quiabo, é o que
mais parece. Vou ver a produtividade dos vizinhos e chutar a produção deles, a
não ser que a gente bote o sítio como abandonado, sem produção, sei lá.”
“Depois desse sacrifico todo?
Pode deixar quiabo mesmo.”
Gostosas
risadas nossas.
In Não Haverá
Mais Natais, romance autobiográfico
Nenhum comentário:
Postar um comentário