quinta-feira, 23 de maio de 2013

SARGENTINHO DEDO DURO

Terminei a aula e estou na secretaria do curso, de conversa fiada esperando a próxima aula, e o diretor me chama: “dois caras mal encarados pra cacete, enormes, perguntaram por você. Perguntei se era pra te chamar, disseram não, deixaram esse envelope.”
                  Confiro: intimação pra comparecer na Base Aérea dos Afonsos, tida e havida como base da inteligência da Aeronáutica, órgão de repressão da força aérea.
                  Apreensão dos colegas, pânico do dono do curso, vai sobrar pra todo mundo, “é agora que me lasco também, vão acabar com a minha escola. Você tem essa língua muito solta, eu já avisei”, outro me imaginando de armas na mão, atividade clandestina, quem diria?
                  Tranqüilizo-os: houvesse acusação grave, denúncia ou investigação, não teriam intimado, era prisão logo, em casa ao invés de no curso, já estava preso ou morto.
                  Parecem umas patas histéricas as cagonas, o intimado sou eu e vocês é que estão se borrando, mal sabendo eles que eu me borrava também.
             Fico em casa mal humorado, matutando o que seria, o que poderia ser, a mulher desconfiada, deve estar enrabichado com alguma sirigaita, o safado.
                  Devem ter atinado com o quadro premiado em Nova Iguaçu, bandeira brasileira com mãos esquálidas encarceradas no canto esquerdo, logotipos de multinacionais substituindo as estrelas. São tão burros que premiaram, não entenderam. Só devem ter dado conta agora.
                  Não, é pouco. O motivo só pode ser maior.
                  Agora faz sentido o corcel vermelho e preto dia e noite na minha cola, acompanhando, seguindo, observando, vigiando, tomando conta, os miseráveis, só falta me seguir no banheiro, só pode.
                  E quem me denunciou foi o sargento, professor de português.
                  Ele é lá da Base. A uns dias atrás me deu flanela: “pra você fazer uns pijaminhas pros seus garotos, está frio”, o desgraçado, não vai com a minha cara.
                  Deu a flanela pra disfarçar. Já falei demais perto dele. Sacou que sou de esquerda, dedurou, o X-9 safado, “vagabunda nada, mulher, é coisa minha, vou dizer não”.
             Sou recebido com desconfiança. É tempo em que qualquer um que não vista farda é suspeito. Mostro a intimação. O cabo chama dois soldados, meninos mal saídos das fraldas com armas quase tão pesadas quanto eles próprios. Apontam os dedos na direção da pista: “vamos!”
                  Devem ter me intimado para esse horário para permitir o aperitivo da tortura, um sol desgraçado arrancando vapor quente do concreto, aviões em torno, a maior parte deles Búfalos e Fockers, essa minha paixão pela aviação, um silêncio sepulcral até que um dos meninos inesperadamente me pergunta: “você já assaltou banco?”
                  Surpreendido e mal acreditando no que ouvi, respondo “eu sou professor, cara, nem sei porque fui intimado”. Esboço um sorriso e concluo: “devo ter comido a mulher de algum oficial sem saber, a danada não me contou”, levando os dois a sorrirem e relaxarem.
                  Passamos pelo Parque dos Afonsos. Estão fazendo a revisão de uma turbina e o barulho é ensurdecedor, mesmo a algumas centenas de metros.
                  Depois pela Escola de Cadetes, acalentado sonho do passado, antes do primeiro filho, os futuros aviadores em ordem unida, aeronaves nos hangares, reluzindo como nos meus sonhos adolescentes, já meio íntimo da minha escolta, um dos dois fazendo cursinho pré-vestibular, quer ser economista, o outro aspirando estádios lotados e manchetes com o nome nos jornais, ponta direita.
                  Ocasionalmente pergunto sobre os aviões, recebendo respostas vagas de quem não conhece o assunto. A minha curiosidade na adolescência me informou mais, os prédios ficando para trás.
                  Agora só mato e pista, uma pedreira no final, contra-senso, a pista termina de cara para um morro, é sair do chão e virar o avião. Tem coisas que não temos como entender.
                  Um sargento nos recebe. Aponta-me banco negro sem encosto nem espaldares, início de quarenta minutos esperando que alguém se digne a perceber aquele civil sentado, reles atravanco a empatar os trâmites da ditadura militar em curso, a redentora.
                  Mandam que eu entre numa pequena sala com duas velhas mesas, algumas cadeiras, ventilador de filme mexicano no teto, meia dúzia de rotações por minuto, um grande rádio transmissor militar, com fones, acredito que resquício da segunda guerra, e um gravador de rolo, desses que a gente só vê nos filmes das décadas de cinqüenta e sessenta.
                  O tenente pede que eu me sente, olhando-me como o toureiro olha o touro, desafio e intimidação, buscando o melhor ponto para fincar a lança, mas só depois de cansar com o manto vermelho das perguntas.
                  Entra um soldado louro, olhos azuis e sotaque do sul, catarinense do interior, talvez, peito de remador e punhos de peso pesado do Harlen.
                  A simples presença semeia insegurança. Uma porrada só e cá estou pronto para uma próxima encarnação, e um moreninho, óculos redondos de Lennon, inspirado em Woodstock, bloco de anotações, canetinha no bolso e gestos suaves.
                  Deve ser o analista, o farejador de contradições e inconsistências nos depoimentos. Senta-se também.
                  “O senhor sabe por que está aqui?” Cada reação minha conferida como curvas de mulher gostosa na passarela, tão atentos aos meus gestos e expressões faciais quanto às respostas. Só falta a galera nas arquibancadas: olé! Mata! Mata! Olé!
                  “O senhor sabe por que está aqui?” Nunca passei por um interrogatório que não começasse com essa pergunta, o senhor sabe por que está aqui?
                  Inicia com o time recuado. Vai explorar os contra-ataques, o que me recomenda prudência, o bom senso aconselhando cozinhar a bola na intermediária, no meio campo, pondo-me de vítima, sem brechas para qualquer jogada mais ousada dele.
                  A persistir a estratégia devo levar o jogo para o zero a zero.
                  “Saber não sei, mas presumo, tenente”.
                  “E o que é que o senhor presume?”
                  “O senhor sabe...”
                  “Não, não sei de nada, o senhor é que vai dizer.”
                  “Está bem, tenente. Eu sou coordenador de um curso preparatório para escolas militares e de pré-vestibular.Também dou aulas nesse mesmo curso e tem um sargento, A.R.C., sei o nome todo porque tem as minhas mesmas iniciais no nome, foi fácil memorizar, que também dá aulas, de português. Aí começa uma longa história, uma espécie de confronto... Aí ele veio com essas calúnias...
                  Se não for isso não sei o que é. Não consigo imaginar porque fui chamado aqui. Acho...”
                  “Confronto?”
                  “Sim senhor. Vou explicar: o curso estava meio combalido, mal das pernas, e apareceu esse sargento. Ele dava aulas em outro curso, se desentendeu com o dono e levou a maior parte dos alunos para o curso em que trabalho, em troco das aulas de português.
                  Só que, com o devido respeito, tenente, um sargento não tem preparo suficiente... Ele afirmou em sala que paradoxo é uma coisa que é mas não é.
                  Pô, tenente, uma coisa que é mas não é? Claro que fui obrigado a explicar aos alunos e ele ficou chateado, piorou a situação.
                  Ele também se achava no direito de ser o coordenador, só porque injetou alunos no curso, um bocado deles, é verdade.
                  Ele é agiota, sabe tenente? Anda pra lá e pra cá com uma pastinha tipo James Bond. Faz ponto na Galeria Avatar, em Madureira, na galeria onde fica o curso, emprestando dinheiro pro pessoal e ele sabe que não gosto disso.
                  Não topo agiota. Acho gigolô da miséria, desculpe o termo, tenente, é isso, tenente, se não é inveja é manobra pra me afastar da função e ele assumir.
                  Imagina tenente, usar a força aérea por causa de probleminha menor de cursinho... Não pode ser um homem sério...
                  Começa que traiu o patrão anterior, roubou alunos, empresta dinheiro a juros, o que é ilegal, leciona sem competência, embromando os outros, fica fazendo ponto em boteco, isso não condiz com a posição de um militar, tenente, ainda mais um sargento. Se fosse um soldado... Aí me meteu nessa furada. Ele sabe que não concordo com nada disso.”
             “O senhor está dispensado, pode ir para casa, mas fique atento que a qualquer momento o senhor poderá ser novamente chamado.”
                  “Obrigado, tenente”.

                  Dias depois, após uma curta ausência do sargento, possivelmente detido, o olhar de ódio e o comentário com aluno, também militar, infiltrado nos Correios, baixo, mas não o bastante para que eu deixasse de ouvir: “ainda mato esse filho da puta!”  

In "Não Haverá Mais Natais", romance autobiográfico.      

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