Terminei a aula e estou na secretaria do curso, de
conversa fiada esperando a próxima aula, e o diretor me chama: “dois caras mal encarados pra cacete,
enormes, perguntaram por você. Perguntei se era pra te chamar, disseram não,
deixaram esse envelope.”
Confiro:
intimação pra comparecer na Base Aérea dos Afonsos, tida e havida como base da
inteligência da Aeronáutica, órgão de repressão da força aérea.
Apreensão
dos colegas, pânico do dono do curso, vai sobrar pra todo mundo, “é agora que me lasco também, vão acabar com
a minha escola. Você tem essa língua muito solta, eu já avisei”, outro me
imaginando de armas na mão, atividade clandestina, quem diria?
Tranqüilizo-os:
houvesse acusação grave, denúncia ou investigação, não teriam intimado, era
prisão logo, em casa ao invés de no curso, já estava preso ou morto.
Parecem
umas patas histéricas as cagonas, o intimado sou eu e vocês é que estão se
borrando, mal sabendo eles que eu me borrava também.
Fico em casa mal humorado, matutando o que seria, o que poderia ser, a
mulher desconfiada, deve estar enrabichado com alguma sirigaita, o safado.
Devem
ter atinado com o quadro premiado em Nova Iguaçu , bandeira brasileira com mãos
esquálidas encarceradas no canto esquerdo, logotipos de multinacionais
substituindo as estrelas. São tão burros que premiaram, não entenderam. Só devem
ter dado conta agora.
Não,
é pouco. O motivo só pode ser maior.
Agora
faz sentido o corcel vermelho e preto dia e noite na minha cola, acompanhando,
seguindo, observando, vigiando, tomando conta, os miseráveis, só falta me
seguir no banheiro, só pode.
E
quem me denunciou foi o sargento, professor de português.
Ele
é lá da Base. A uns dias atrás me deu flanela: “pra você fazer uns pijaminhas pros seus garotos, está frio”, o
desgraçado, não vai com a minha cara.
Deu
a flanela pra disfarçar. Já falei demais perto dele. Sacou que sou de esquerda,
dedurou, o X-9 safado, “vagabunda nada,
mulher, é coisa minha, vou dizer não”.
Sou
recebido com desconfiança. É tempo em que qualquer um que não vista farda é
suspeito. Mostro a intimação. O cabo chama dois soldados, meninos mal saídos
das fraldas com armas quase tão pesadas quanto eles próprios. Apontam os dedos
na direção da pista: “vamos!”
Devem
ter me intimado para esse horário para permitir o aperitivo da tortura, um sol
desgraçado arrancando vapor quente do concreto, aviões em torno, a maior parte
deles Búfalos e Fockers, essa minha paixão pela aviação, um silêncio sepulcral
até que um dos meninos inesperadamente me pergunta: “você já assaltou banco?”
Surpreendido
e mal acreditando no que ouvi, respondo “eu
sou professor, cara, nem sei porque fui intimado”. Esboço um sorriso e
concluo: “devo ter comido a mulher de
algum oficial sem saber, a danada não me contou”, levando os dois a
sorrirem e relaxarem.
Passamos
pelo Parque dos Afonsos. Estão fazendo a revisão de uma turbina e o barulho é
ensurdecedor, mesmo a algumas centenas de metros.
Depois
pela Escola de Cadetes, acalentado sonho do passado, antes do primeiro filho,
os futuros aviadores em ordem unida, aeronaves nos hangares, reluzindo como nos
meus sonhos adolescentes, já meio íntimo da minha escolta, um dos dois fazendo
cursinho pré-vestibular, quer ser economista, o outro aspirando estádios
lotados e manchetes com o nome nos jornais, ponta direita.
Ocasionalmente
pergunto sobre os aviões, recebendo respostas vagas de quem não conhece o
assunto. A minha curiosidade na adolescência me informou mais, os prédios
ficando para trás.
Agora
só mato e pista, uma pedreira no final, contra-senso, a pista termina de cara
para um morro, é sair do chão e virar o avião. Tem coisas que não temos como
entender.
Um
sargento nos recebe. Aponta-me banco negro sem encosto nem espaldares, início
de quarenta minutos esperando que alguém se digne a perceber aquele civil
sentado, reles atravanco a empatar os trâmites da ditadura militar em curso, a
redentora.
Mandam
que eu entre numa pequena sala com duas velhas mesas, algumas cadeiras,
ventilador de filme mexicano no teto, meia dúzia de rotações por minuto, um
grande rádio transmissor militar, com fones, acredito que resquício da segunda
guerra, e um gravador de rolo, desses que a gente só vê nos filmes das décadas
de cinqüenta e sessenta.
O
tenente pede que eu me sente, olhando-me como o toureiro olha o touro, desafio
e intimidação, buscando o melhor ponto para fincar a lança, mas só depois de
cansar com o manto vermelho das perguntas.
Entra
um soldado louro, olhos azuis e sotaque do sul, catarinense do interior,
talvez, peito de remador e punhos de peso pesado do Harlen.
A
simples presença semeia insegurança. Uma porrada só e cá estou pronto para uma
próxima encarnação, e um moreninho, óculos redondos de Lennon, inspirado em
Woodstock, bloco de anotações, canetinha no bolso e gestos suaves.
Deve
ser o analista, o farejador de contradições e inconsistências nos depoimentos.
Senta-se também.
“O senhor sabe por que está aqui?” Cada
reação minha conferida como curvas de mulher gostosa na passarela, tão atentos
aos meus gestos e expressões faciais quanto às respostas. Só falta a galera nas
arquibancadas: olé! Mata! Mata! Olé!
“O senhor sabe por que está aqui?” Nunca
passei por um interrogatório que não começasse com essa pergunta, o senhor sabe
por que está aqui?
Inicia
com o time recuado. Vai explorar os contra-ataques, o que me recomenda
prudência, o bom senso aconselhando cozinhar a bola na intermediária, no meio
campo, pondo-me de vítima, sem brechas para qualquer jogada mais ousada dele.
A
persistir a estratégia devo levar o jogo para o zero a zero.
“Saber não sei, mas presumo, tenente”.
“E o que é que o senhor
presume?”
“O senhor sabe...”
“Não, não sei de nada, o
senhor é que vai dizer.”
“Está bem, tenente. Eu sou
coordenador de um curso preparatório para escolas militares e de
pré-vestibular.Também dou aulas nesse mesmo curso e tem um sargento, A.R.C., sei
o nome todo porque tem as minhas mesmas iniciais no nome, foi fácil memorizar,
que também dá aulas, de português. Aí começa uma longa história, uma espécie de
confronto... Aí ele veio com essas calúnias...
Se não for isso não sei o que
é. Não consigo imaginar porque fui chamado aqui. Acho...”
“Confronto?”
“Sim senhor. Vou explicar: o
curso estava meio combalido, mal das pernas, e apareceu esse sargento. Ele dava
aulas em outro curso, se desentendeu com o dono e levou a maior parte dos
alunos para o curso em que trabalho, em troco das aulas de português.
Só que, com o devido respeito,
tenente, um sargento não tem preparo suficiente... Ele afirmou em sala que
paradoxo é uma coisa que é mas não é.
Pô, tenente, uma coisa que é
mas não é? Claro que fui obrigado a explicar aos alunos e ele ficou chateado,
piorou a situação.
Ele também se achava no
direito de ser o coordenador, só porque injetou alunos no curso, um bocado
deles, é verdade.
Ele é agiota, sabe tenente?
Anda pra lá e pra cá com uma pastinha tipo James Bond. Faz ponto na Galeria
Avatar, em Madureira, na galeria onde fica o curso, emprestando dinheiro pro
pessoal e ele sabe que não gosto disso.
Não topo agiota. Acho gigolô
da miséria, desculpe o termo, tenente, é isso, tenente, se não é inveja é
manobra pra me afastar da função e ele assumir.
Imagina tenente, usar a força
aérea por causa de probleminha menor de cursinho... Não pode ser um homem
sério...
Começa que traiu o patrão
anterior, roubou alunos, empresta dinheiro a juros, o que é ilegal, leciona sem
competência, embromando os outros, fica fazendo ponto em boteco, isso não
condiz com a posição de um militar, tenente, ainda mais um sargento. Se fosse
um soldado... Aí me meteu nessa furada. Ele sabe que não concordo com nada
disso.”
“O senhor está
dispensado, pode ir para casa, mas fique atento que a qualquer momento o senhor
poderá ser novamente chamado.”
“Obrigado, tenente”.
Dias
depois, após uma curta ausência do sargento, possivelmente detido, o olhar de
ódio e o comentário com aluno, também militar, infiltrado nos Correios, baixo,
mas não o bastante para que eu deixasse de ouvir: “ainda mato esse filho da puta!”
In "Não Haverá Mais Natais", romance autobiográfico.
In "Não Haverá Mais Natais", romance autobiográfico.
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