sexta-feira, 24 de maio de 2013

NA BOCA DE FUMO

Bacia de Éden, Baixada Fluminense, pouco a dever ao Haiti, Bangla Desh ou Biafra.
                      Dias de muita chuva obrigando-me a patinar na lama, saltar sobre valas negras transbordantes, me equilibrar sobre frágeis tábuas, a pasta e um monte de questionários no sovaco, isso lá é vida?
                      “Seu C.!”
                      C.? Meu nome de guerra na cadeia, gritado a plenos pulmões.
                      Seu? Não é ex-colega, é vagabundo.
                      Respiro fundo, reteso-me, a nuca arrepiada, adrenalina, esperando o tiro.
                      Não vem. Viro devagar e olho, rosto amistoso, “chegaí, seu C.!”
                      Como me negar? Aproximo-me, três indivíduos no alpendre da birosca, um fuzil de longo alcance e uma pistola nove milímetros, o mais parrudo, do qual lembro vagamente, me anuncia aos outros: “esse é o seu C.!
                      Esse sabe ser polícia, nunca deu mole, mas também nunca prejudicou vagabundo, respeita legal. O senhor é professor, não é seu C.?”
                      Concordo, meneando a cabeça.
                      “Eu lembro que o senhor deu aulas pra vagabundagem... Vê como os seus colegas são otários? Lá dentro barbariza vagabundo, não respeita, tira onda, dá porrada, depois dá mole pra gente aqui fora.
                      Já pensou se o senhor fosse um desses? O que é que o senhor está fazendo aqui na minha área?”
                      “Como você mesmo falou, sou meio diferente dos caras que trabalharam comigo, não agüentei a onda, saí fora.
                      Agora trabalho no IBGE.”
                      “Qué qui é BêGêÉ?”
                      “É um órgão do governo. A gente faz levantamentos da situação nos bairros. Quanta gente mora neles. Quantos trabalham. Quantos estudam, essas paradas.”
                      “E pra quê o governo quer saber disso?”
                      “Para planejar a administração pública, fazer escolas, creches, calçar as ruas... Ter uma idéia do que está rolando nas comunidades.”
                      “Bota aí que aqui está precisando calçar a porra toda, olha quanta lama!
                      Vou dizer uma coisa, a vagabundagem respeitava o senhor. O senhor trata vagabundo como gente. Pode trabalhar a vontade, sem problema. Qualquer coisa diz que está comigo. Se algum vacilão não quiser receber o senhor, vai na associação de moradores, dá o endereço que o safado responde rapidinho. Chega aí!”
                      Leva-me até os fundos da birosca. Duas mulheres e um menino de treze ou quatorze anos embalam maconha, usando as pontas dos dedos, como os nordestinos pegam a papa de farinha, e cocaína, usando uma colher de sopa: “vai de quê, seu C.?”
                      “Pô, você não conhece o meu chefe. Se me encontra chapado é rua, meu chapa. É o maior caretão. Quando acabar o expediente pode ser.”
                      “Tô esperando, vai na fé.”
                      “Antes mata uma curiosidade minha, se quiser, você é quem sabe: pinote (fuga) ou recreio (condicional)?”
                      “Recreio, seu C.. Lá é ruim de pinote.”
                      “Ficou quanto tempo?”
                      “Me deram dezoito anos, puxei seis. Agora estou no sapatinho, nada de homicídio. Agora só quero é tocar a firma aqui, na paz.”
                     
                      Estou na agência: “toma o meu material e manda outro recenseador. Se eu voltar lá vou ter que cheirar pó, queimar baseado, beber...” E contei a história.

                      Risadas. Mudaram-me de bairro, peguei outro setor.

In "Não Haverá Mais Natais", romance autobiográfico.

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