quinta-feira, 23 de maio de 2013

UM VOO QUASE NORMAL

Cinco e quarenta, o dia ainda não amanheceu, preparo o piquete.
                  Na verdade não é piquete. Cerco os que chegam cedo, bem antes do início do expediente, em vã esperança de furar o possível piquete.
                  Só meia dúzia, se tanto, com cargos comissionados.
                  Pouco resistem aos argumentos, permanecendo fora, o prédio vazio, atestado da coesão do movimento.
                  Nove e meia. Estou no sindicato. Reunião para avaliação de conjuntura, avaliação do movimento. Ajudo a preparar a redação e a seleção de textos para o boletim diário, comunico-me com os outros estados, via telefone e fax... Mato Grosso e São Paulo com problemas, direção dividida, muita gente entrando.
                  De Mato Grosso pouco sei, salvo que a nossa delegada lá tem as dimensões exatas de um sonho, delírio de um louco plantando bananeira na chuva, fora o noivo, justificadamente ciumento, ligando três, quatro, cinco vezes por dia, interrompendo reuniões e assembléias, e faz muito bem, cobiça coletiva sentando praça naquele olhar de menina sapeca.
                  Em São Paulo situação complicada. A direção é majoritariamente da ala mais conservadora do partido, tendência dominante e que daqui a alguns anos fará o Presidente da República, discurso socialista em postura social-democrata.
                  Muitos têm cargos comissionados, insegurança e incerteza impedindo caminhos. Só poucos colloridos*, mas todo mundo sem apostar uma moeda no que pode vir.
                  Piquetes vazando por todos os lados, alguém se lembra de mim: discurso convincente explorando contradições, experiência de salas de aulas, paciência e didatismo nas palavras, tem que ser você.
                  Pulo, empenhado que estou em afazeres imediatos, “viajar agora?”
                  Depois do almoço, ponte aérea, a passagem está na segunda gaveta, “vê se contorna isso, companheiro, o governo está apostando que a malha vai romper lá, quebra essa.”
                  Itaim Bibi, bairro paulistano, sala apertada, um calor do cão, senegalesco, os colloridos tentando marcar posição, o resto indeciso, dando trabalho.
                  Peço mais quarenta e oito horas de confiança, levo por pouco, quase três horas de discussões.
                  A direita é paciente e quase convincente, mas levo.
                  Passo o resto da tarde visitando as agências, incentivando a resistência, instigando a rebeldia, plantando a confiança.
                  Não janto, faço um lanche leve. Não gosto de encher a pança antes de voar. Pretendo jantar em casa.
                  Aeroporto lotado, quase vinte e uma horas: Benedita da Silva toda sorrisos no varejo e no atacado.
                  Rogério Magri, o tal do “cachorro também é ser humano”, acenando como candidato presidencial.
                  Todo o elenco da novela Pantanal (vinham do centro do país por conexão em São Paulo) esbanjando acenos, sorrisos, fotos, autógrafos, mal disfarçando a impaciência pelo atraso.
                  E um monte de aeronaves estacionadas no pátio, molhadas, algumas com os limpadores de pára-brisas ainda funcionando, em contraste com o céu estrelado, limpo, de brigadeiro: temporal no Rio de Janeiro. Estão voltando todas, despejando mais gente no saguão já apinhado.
                  Temporal no Rio, me informam, sem teto nem piso, um vendaval medonho.
                  “Fica lá em casa”, um; “vem comigo, tem um quarto vazio lá”, outro; “está tarde, a que horas você vai chegar no Rio?”
                  Companheirismo, solidariedade, cumplicidade de propósitos...
                  Muitos me vêem pela primeira vez, o discurso político associado ao caráter, confiança; “a empresa oferece hospedagem, queiram procurar os guichês, por favor...”
                  Mulher ciumenta, compromisso logo de manhã, filho febril em casa... Mil desculpas esperando embarque, dez e quinze, o primeiro vôo.
                  Sento pouco atrás da asa direita, turbina desacelerada, quase desligada, um casal com uma garotinha na poltrona ao lado, na esquerda; duas louras na frente; dois seminaristas atrás do casal com a garota; um fazendeiro trazendo peões, três, para pintar seu apartamento, acho que em Ipanema, não presto muita atenção no que falam; um mulato parrudo senta-se do meu lado, “licença. Que demora! Pensei que não voaríamos hoje.”
                  Fecha a porta, a voz do comandante: “boa noite, aqui quem lhes fala é o comandante fulano. Em nome da companhia, agradeço pela preferência ...”, culminando por “observem as instruções de uso das máscaras de oxigênio e procedimentos em alguma eventualidade não programada. Tenham todos uma boa viagem.”
                  Já sei. Em caso de descompressão, as máscaras cairão automaticamente.
                  Colocá-las sobre as narinas e a boca e só então ajudar aos outros passageiros.
                  Em caso de pouso forçado, se recostar na poltrona com as pernas encolhidas, joelhos encostados no peito e cabeça baixa, queixo também apoiado no peito, queira Deus que este susto não se junte no meu currículo.
                  Acende-se o letreiro de apertar o cinto, o avião começa a taxiar rumo à cabeceira da pista.
                  Sinto saudades da Transbrasil. Não era o melhor serviço de bordo, tinha muitos comissários, ao invés de comissárias (acostumamo-nos tanto à palavra aeromoça que comissários destoam), mas havia uma particularidade que a fazia diferente: as informações da cabine: temperatura ambiente, no exterior do avião, altitude, velocidade... Informações tediosas e entediantes para muitos, profundamente prazerosas para mim, piloto frustrado na cabine, nesses momentos, domando aquela máquina monumental, voando, voando, como os pássaros, os poetas e os loucos.
                  Cabeceira da pista. O comandante alinha, sola, acelerando em potência máxima, antecipando situação de vôo, e imagino que checa todos os instrumentos, reloginhos e leads num parque de diversões tecnológico.
                  Observo os dois movimentos dos flaps, imagino os movimentos do leme, dos ailerons, e começamos a nos mover, a inércia nos forçando contra as poltronas. Lá vamos nós.
                  Decolagem perfeita. Subimos.
                  Observo a cidade lá embaixo, enxame humano, e imagino pessoas dormindo, trabalhando nos turnos da noite, dançando nas boates e inferninhos, namorando, fazendo amor... Dando seqüência aos trâmites da vida, aparentemente sem ordem nem sentido, uma colônia de bactérias no microscópio, movimentos aparentemente caóticos e desordenados na consecução do instante.
                  O letreiro se apaga, abro o cinto de segurança, afrouxo o meu próprio cinto, relaxo, e não há vontade para o livro nem para a revista de palavras cruzadas, nem sono.
                  Vinte e cinco minutos de vôo. Já sobrevoamos território fluminense, sul do estado, e súbito a aeronave se inclina para a direita. O letreiro acende-se automaticamente: apertar o cinto, e a voz do comandante: “permaneçam em seus lugares, afivelem os cintos, estamos entrando em zona de fortes turbulências”.
                  Estranho. Turbulências tiram a sustentação e o aparelho desce horizontalmente, como um elevador, sem se inclinar, ou baixando ligeiramente o nariz.
                  Não é turbulência.
                  O comandante corrige, estamos novamente paralelos ao horizonte, o cara do meu lado olhos arregalados: “que susto!”
                  Novo balanço. Balanço não, sacolejão.
                  A iluminação é interrompida por fração de segundo, ouvem-se gritos, o avião inclina, o fazendeiro saca uma garrafa anatômica, de bolso, e traga em grandes goles. Uísque, imagino.
                  Os três peões, lívidos de medo, estão mudos e absolutamente inertes, como que paralisados por uma droga, olhos arregalados, fixos, olhando para frente.
                  O comandante principia uma curva acentuada para a direita e deixo de ver as luzes no chão. Estamos nos dirigindo para alto mar.
                  Falo com o parceiro do lado. Ele se surpreende e me olha incrédulo, como se dissesse: o medo te deixou maluco, isso não é um navio, cara.
                  Está virando para pegar o vento de proa, pela frente, as turbinas assoviando, em pressão máxima, imagino; ou para contornar a área de tempestade, os relâmpagos cada vez a mais curtos intervalos, crianças agarrando-se nas mães, mães agarrando-se nos pais, pais agarrando-se nos próprios medos, impotência e fragilidade reduzindo todos a crianças indefesas procurando pelos pais em parque lotado.
                  E se... Arrepio-me, afastou-se da costa porque, diante da possibilidade de queda iminente, está evitando fazer vítimas no solo?
                  “Vamos morrer eletrocutados!”
                  O meu companheiro de poltrona, pálido como o losango da bandeira, sua, trêmulo, cara de choro.
                  “Não há o menor risco”, respondo, lembrando-me de providencial aula de Física, efeito ampola, a energia circula o exterior do corpo, mas nada digo a ele. Só garanto que eletrocutados não morreremos.
                  Fecho os olhos, não tenho medo. O sentimento é de vazio, de angústia, e imagino os meus filhos brincando; minha mulher, minha mãe... Antecipadamente pesaroso pela perda. Não os verei mais.
                  Como não percebi o avião descer, concluo que voamos ainda em altitude de cruzeiro, alto o bastante para que o impacto com o solo nos alivie sem dores.
                  De repente o aparelho guina para a esquerda e principia a descer, a voz do comandante: “estamos iniciando os procedimentos de pouso. Mantenham os cintos afivelados e observem se não há algum instrumento cortante ou de ponta próximos, inclusive brinquedos. Se houver, coloque-os no chão.
                  Quando estivermos nos aproximando do solo, mantenham as pernas encolhidas e a cabeça baixa, joelhos e queixo juntos ao peito. Obrigado.”
                  Na medida em que fomos baixando, os relâmpagos foram sendo substituídos pelo vento.
                  Como não há nada a redor, só a escuridão, não há referências e a conclusão de ventar muito se dá pela dificuldade do piloto para estabilizar a aeronave oscilando lateralmente como uma embarcação em mar agitado.
                  Luzes, a minha cidade, o chão, finalmente.
                  Procuro identificar, adivinhar: Ipanema, Copacabana, a Enseada de Botafogo, Aterro do Flamengo, o Pão de Açúcar à esquerda... Atravessamos a entrada da baía, Niterói, São Gonçalo e... Bendita Ponte Rio-Niterói. Lá vamos nós para casa, mas...
                  A pouco mais de um quilômetro da cabeceira da pista o pouso é abortado, turbinas aceleradas iniciando nova subida.
                  A voz do comandante: “em virtude de fortes rajadas de vento, tentaremos um novo pouso, com condições mais favoráveis.”
                  Procuro entender a manobra: se na altitude de cruzeiro virou para a direita, para pegar vento de frente, por que é que tentou pousar do norte para o sul, com vento na cauda? Deve ter feito a aproximação com muita velocidade, para compensar o vento, ou...
                  Está ventando do mar para a terra, de leste para oeste, e a opção é rajadas à direita ou à esquerda. Então mandou bem, abortou para evitar o risco da ponta de uma das asas tocar o solo e a aeronave rodopiar em torno do próprio eixo, derrapando e se incendiando. Mandou bem.
                  O Pão de Açúcar à frente, curva à esquerda, Niterói, São Gonçalo, Ponte Rio-Niterói de novo... Novo aborto e a voz do comandante: “por causa das fortes rajadas de vento, pousaremos por instrumentos, no Aeroporto Internacional Tom Jobim. Mantenham-se calmos que o pior da tempestade já passou.”
                  “Instrumentos porra nenhuma”, balbucio. “Vai pousar em alta velocidade, para compensar o vento. Lá a pista é bem maior.”
                  Tranqüilizo-me. Agora vai!
             Niterói, São Gonçalo, Manilha, Itaboraí, Magé, Serra de Petrópolis, Raiz da Serra, Caxias...
                  Imagino a impressão que os turistas têm quando chegam ao Brasil em vôos diurnos, a periferia de Caxias, ruas descalçadas, sem o menor planejamento urbano: rua que sobe, rua que desce, travessas, becos, vielas, mil entroncamentos... Uma teia de miséria e carências.
                  Depois as favelas da Ilha do Governador, da Linha Vermelha...
                  Devem confundir Brasil e Afeganistão, Biafra, qualquer coisa assim.
                  Ainda não foi desta vez. O piloto arremete tão próximo do chão que podemos ver as luzes das ambulâncias e dos bombeiros ao lado da pista, nos esperando.
                  Sou acometido de outro temor: pane seca. E se o combustível estiver no fim?
                  Combustível a mais para a desaceleração, três vezes o reverso das turbinas. Depois mais combustível para três decolagens não programadas... Vamos cair por falta de combustível!
                  Dez minutos após a aterrissagem abortada, terceira tentativa, percebo que a aeronave permanece em linha reta, sem realizar nenhuma curva, mar adentro, e um princípio de pânico se instaura entre os que já conhecem a rota, por viagens anteriores: vai tentar um pouso forçado na água, não tem mais combustível para nova tentativa.
                  Começam os cochichos de pé de ouvido, todo mundo comentando a má nova: parece que cairemos, os tanques secaram, gente principiando a chorar, os dois seminaristas de mãos dadas, terço e um livro de orações, ou Bíblia, sei lá, entre as mãos, as duas louras da frente falando alto, o fazendeiro já porrado, exigindo mais uísque que “não quero ver esta merda cair”, o comissário vai até a cabine e volta sorridente: “calma, pessoal!”
                  E a voz no circuito interno de som: “aqui quem lhes fala é o seu comandante. Temos combustível suficiente para realizar o retorno a São Paulo. Segundo o SINDACTA, que é o órgão responsável pelo controle da navegação aérea em nosso país, as condições de vôo agora estão bem melhores que na vinda. Mantenham-se calmos e confiem na tripulação. Somos experientes, bastante acostumados com essa rota. Neste momento voamos a... metros de altitude, com velocidade de ..., horário previsto para o pouso: à uma hora e doze minutos.”
                  Caramba! Saí às dez e quarenta. Duas horas e meia para uma rota que dura cinqüenta minutos, se tanto.
                  Questionei o combustível novamente e lembrei que sempre que vou ao nordeste, vou em avião deste mesmo modelo e sem escalas. Resta saber se encheram os tanques para viagem tão curta.
                  A quinze minutos do pouso, a voz novamente: “em virtude de superlotação no aeroporto de Congonhas, teremos que pousar em Guarulhos. Perdoem o contratempo, é por motivo alheio à nossa vontade e da direção da companhia.”
                  Imagino Congonhas, aquela multidão acrescida de mais gente no saguão, o pátio cheio de aviões esperando ordem para decolar...
                  Tivesse sido um vôo normal, essa alteração de destino teria provocado todo o tipo de protestos, urros, xingamentos, vaias... A distância entre Guarulhos e São Paulo é bem maior que entre o Santos Dumont e o Tom Jobim.
                  Mesmo com a companhia colocando transporte terrestre a disposição, é um bom pedaço.
                  Mas... E daí? Desde que estejamos no chão, tanto faz se Congonhas, Guarulhos, Bangla Desh ou Pequim.
                  Pouso perfeito. Urras, vivas, palmas, abraços... Parece passagem de ano.       
                  Ficamos parados sem que a porta se abra.
                  Ninguém reclama. Estamos vivos e agora qualquer contratempo é nada.
                  O meu vizinho de poltrona estranha. Explico: é um procedimento normal em vôos difíceis.
                  Esperam que nos acalmemos ainda dentro do avião, para evitar traumas que nos espantarão de vôos futuros.
                  Não bastasse isso, se chegarmos no saguão chorando uns, com cara de medo outros, vamos semear a insegurança nos que estão embarcando.
                  Rolamento normal. Chega a escada e antes que a porta se abra, abre-se a porta da cabine.
                  Sai um tipo baixinho, moreno de bigodes e... Craque no instante do gol, atleta no momento do recorde, musa no palco... Demorados aplausos.
                  Esse é o nosso comandante!
                  Ele sorri, meio sem graça, como se nos dissesse: perdão, senhores, eu também estou todo cagado!


In “Não Haverá Mais Natais”, romance autobiográfico.

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