Cinco e quarenta, o dia ainda não amanheceu, preparo o
piquete.
Na
verdade não é piquete. Cerco os que chegam cedo, bem antes do início do
expediente, em vã esperança de furar o possível piquete.
Só
meia dúzia, se tanto, com cargos comissionados.
Pouco
resistem aos argumentos, permanecendo fora, o prédio vazio, atestado da coesão
do movimento.
Nove
e meia. Estou no sindicato. Reunião para avaliação de conjuntura, avaliação do
movimento. Ajudo a preparar a redação e a seleção de textos para o boletim
diário, comunico-me com os outros estados, via telefone e fax... Mato Grosso e
São Paulo com problemas, direção dividida, muita gente entrando.
De
Mato Grosso pouco sei, salvo que a nossa delegada lá tem as dimensões exatas de
um sonho, delírio de um louco plantando bananeira na chuva, fora o noivo,
justificadamente ciumento, ligando três, quatro, cinco vezes por dia,
interrompendo reuniões e assembléias, e faz muito bem, cobiça coletiva sentando
praça naquele olhar de menina sapeca.
Muitos
têm cargos comissionados, insegurança e incerteza impedindo caminhos. Só poucos
colloridos*, mas todo mundo sem apostar uma moeda no que pode vir.
Piquetes
vazando por todos os lados, alguém se lembra de mim: discurso convincente
explorando contradições, experiência de salas de aulas, paciência e didatismo
nas palavras, tem que ser você.
Pulo,
empenhado que estou em afazeres imediatos, “viajar
agora?”
Depois
do almoço, ponte aérea, a passagem está na segunda gaveta, “vê se contorna isso, companheiro, o governo está apostando que a malha
vai romper lá, quebra essa.”
Itaim
Bibi, bairro paulistano, sala apertada, um calor do cão, senegalesco, os colloridos
tentando marcar posição, o resto indeciso, dando trabalho.
Peço
mais quarenta e oito horas de confiança, levo por pouco, quase três horas de
discussões.
A
direita é paciente e quase convincente, mas levo.
Passo
o resto da tarde visitando as agências, incentivando a resistência, instigando
a rebeldia, plantando a confiança.
Não
janto, faço um lanche leve. Não gosto de encher a pança antes de voar. Pretendo
jantar em casa.
Aeroporto
lotado, quase vinte e uma horas: Benedita da Silva toda sorrisos no varejo e no
atacado.
Rogério
Magri, o tal do “cachorro também é ser
humano”, acenando como candidato presidencial.
Todo
o elenco da novela Pantanal (vinham do centro do país por conexão em São Paulo ) esbanjando
acenos, sorrisos, fotos, autógrafos, mal disfarçando a impaciência pelo atraso.
E
um monte de aeronaves estacionadas no pátio, molhadas, algumas com os
limpadores de pára-brisas ainda funcionando, em contraste com o céu estrelado,
limpo, de brigadeiro: temporal no Rio de Janeiro. Estão voltando todas,
despejando mais gente no saguão já apinhado.
Temporal
no Rio, me informam, sem teto nem piso, um vendaval medonho.
“Fica lá em casa”, um; “vem comigo, tem um quarto vazio lá”,
outro; “está tarde, a que horas você vai
chegar no Rio?”
Companheirismo,
solidariedade, cumplicidade de propósitos...
Muitos
me vêem pela primeira vez, o discurso político associado ao caráter, confiança;
“a empresa oferece hospedagem, queiram
procurar os guichês, por favor...”
Mulher
ciumenta, compromisso logo de manhã, filho febril em casa... Mil desculpas
esperando embarque, dez e quinze, o primeiro vôo.
Sento
pouco atrás da asa direita, turbina desacelerada, quase desligada, um casal com
uma garotinha na poltrona ao lado, na esquerda; duas louras na frente; dois
seminaristas atrás do casal com a garota; um fazendeiro trazendo peões, três,
para pintar seu apartamento, acho que em Ipanema, não presto muita atenção no
que falam; um mulato parrudo senta-se do meu lado, “licença. Que demora! Pensei que não voaríamos hoje.”
Fecha
a porta, a voz do comandante: “boa noite,
aqui quem lhes fala é o comandante fulano. Em nome da companhia, agradeço pela
preferência ...”, culminando por “observem
as instruções de uso das máscaras de oxigênio e procedimentos em alguma eventualidade
não programada. Tenham todos uma boa viagem.”
Já
sei. Em caso de descompressão, as máscaras cairão automaticamente.
Colocá-las
sobre as narinas e a boca e só então ajudar aos outros passageiros.
Em
caso de pouso forçado, se recostar na poltrona com as pernas encolhidas,
joelhos encostados no peito e cabeça baixa, queixo também apoiado no peito,
queira Deus que este susto não se junte no meu currículo.
Acende-se
o letreiro de apertar o cinto, o avião começa a taxiar rumo à cabeceira da
pista.
Sinto
saudades da Transbrasil. Não era o melhor serviço de bordo, tinha muitos
comissários, ao invés de comissárias (acostumamo-nos tanto à palavra aeromoça
que comissários destoam), mas havia uma particularidade que a fazia diferente:
as informações da cabine: temperatura ambiente, no exterior do avião, altitude,
velocidade... Informações tediosas e entediantes para muitos, profundamente
prazerosas para mim, piloto frustrado na cabine, nesses momentos, domando
aquela máquina monumental, voando, voando, como os pássaros, os poetas e os
loucos.
Cabeceira
da pista. O comandante alinha, sola, acelerando em potência máxima, antecipando
situação de vôo, e imagino que checa todos os instrumentos, reloginhos e leads
num parque de diversões tecnológico.
Observo
os dois movimentos dos flaps, imagino os movimentos do leme, dos ailerons, e
começamos a nos mover, a inércia nos forçando contra as poltronas. Lá vamos
nós.
Decolagem
perfeita. Subimos.
Observo
a cidade lá embaixo, enxame humano, e imagino pessoas dormindo, trabalhando nos
turnos da noite, dançando nas boates e inferninhos, namorando, fazendo amor...
Dando seqüência aos trâmites da vida, aparentemente sem ordem nem sentido, uma
colônia de bactérias no microscópio, movimentos aparentemente caóticos e desordenados
na consecução do instante.
O
letreiro se apaga, abro o cinto de segurança, afrouxo o meu próprio cinto,
relaxo, e não há vontade para o livro nem para a revista de palavras cruzadas,
nem sono.
Vinte
e cinco minutos de vôo. Já sobrevoamos território fluminense, sul do estado, e
súbito a aeronave se inclina para a direita. O letreiro acende-se
automaticamente: apertar o cinto, e a voz do comandante: “permaneçam em seus lugares, afivelem os cintos, estamos entrando em
zona de fortes turbulências”.
Estranho.
Turbulências tiram a sustentação e o aparelho desce horizontalmente, como um
elevador, sem se inclinar, ou baixando ligeiramente o nariz.
Não
é turbulência.
O
comandante corrige, estamos novamente paralelos ao horizonte, o cara do meu
lado olhos arregalados: “que susto!”
Novo
balanço. Balanço não, sacolejão.
A
iluminação é interrompida por fração de segundo, ouvem-se gritos, o avião
inclina, o fazendeiro saca uma garrafa anatômica, de bolso, e traga em grandes
goles. Uísque, imagino.
Os
três peões, lívidos de medo, estão mudos e absolutamente inertes, como que
paralisados por uma droga, olhos arregalados, fixos, olhando para frente.
O
comandante principia uma curva acentuada para a direita e deixo de ver as luzes
no chão. Estamos nos dirigindo para alto mar.
Falo
com o parceiro do lado. Ele se surpreende e me olha incrédulo, como se
dissesse: o medo te deixou maluco, isso não é um navio, cara.
Está
virando para pegar o vento de proa, pela frente, as turbinas assoviando, em
pressão máxima, imagino; ou para contornar a área de tempestade, os relâmpagos
cada vez a mais curtos intervalos, crianças agarrando-se nas mães, mães
agarrando-se nos pais, pais agarrando-se nos próprios medos, impotência e
fragilidade reduzindo todos a crianças indefesas procurando pelos pais em
parque lotado.
E
se... Arrepio-me, afastou-se da costa porque, diante da possibilidade de queda
iminente, está evitando fazer vítimas no solo?
“Vamos morrer eletrocutados!”
O
meu companheiro de poltrona, pálido como o losango da bandeira, sua, trêmulo,
cara de choro.
“Não há o menor risco”, respondo,
lembrando-me de providencial aula de Física, efeito ampola, a energia circula o
exterior do corpo, mas nada digo a ele. Só garanto que eletrocutados não
morreremos.
Fecho
os olhos, não tenho medo. O sentimento é de vazio, de angústia, e imagino os
meus filhos brincando; minha mulher, minha mãe... Antecipadamente pesaroso pela
perda. Não os verei mais.
Como
não percebi o avião descer, concluo que voamos ainda em altitude de cruzeiro, alto
o bastante para que o impacto com o solo nos alivie sem dores.
De
repente o aparelho guina para a esquerda e principia a descer, a voz do
comandante: “estamos iniciando os
procedimentos de pouso. Mantenham os cintos afivelados e observem se não há algum
instrumento cortante ou de ponta próximos, inclusive brinquedos. Se houver,
coloque-os no chão.
Quando estivermos nos
aproximando do solo, mantenham as pernas encolhidas e a cabeça baixa, joelhos e
queixo juntos ao peito. Obrigado.”
Na
medida em que fomos baixando, os relâmpagos foram sendo substituídos pelo
vento.
Como
não há nada a redor, só a escuridão, não há referências e a conclusão de ventar
muito se dá pela dificuldade do piloto para estabilizar a aeronave oscilando
lateralmente como uma embarcação em mar agitado.
Luzes,
a minha cidade, o chão, finalmente.
Procuro
identificar, adivinhar: Ipanema, Copacabana, a Enseada de Botafogo, Aterro do
Flamengo, o Pão de Açúcar à esquerda... Atravessamos a entrada da baía,
Niterói, São Gonçalo e... Bendita Ponte Rio-Niterói. Lá vamos nós para casa,
mas...
A
pouco mais de um quilômetro da cabeceira da pista o pouso é abortado, turbinas
aceleradas iniciando nova subida.
A
voz do comandante: “em virtude de fortes
rajadas de vento, tentaremos um novo pouso, com condições mais favoráveis.”
Procuro
entender a manobra: se na altitude de cruzeiro virou para a direita, para pegar
vento de frente, por que é que tentou pousar do norte para o sul, com vento na
cauda? Deve ter feito a aproximação com muita velocidade, para compensar o
vento, ou...
Está
ventando do mar para a terra, de leste para oeste, e a opção é rajadas à
direita ou à esquerda. Então mandou bem, abortou para evitar o risco da ponta
de uma das asas tocar o solo e a aeronave rodopiar em torno do próprio eixo,
derrapando e se incendiando. Mandou bem.
O
Pão de Açúcar à frente, curva à esquerda, Niterói, São Gonçalo, Ponte
Rio-Niterói de novo... Novo aborto e a voz do comandante: “por causa das fortes rajadas de vento, pousaremos por instrumentos, no
Aeroporto Internacional Tom Jobim. Mantenham-se calmos que o pior da tempestade
já passou.”
“Instrumentos porra nenhuma”, balbucio. “Vai
pousar em alta velocidade, para compensar o vento. Lá a pista é bem maior.”
Tranqüilizo-me.
Agora vai!
Niterói, São Gonçalo, Manilha, Itaboraí, Magé, Serra de Petrópolis, Raiz
da Serra, Caxias...
Imagino
a impressão que os turistas têm quando chegam ao Brasil em vôos diurnos, a
periferia de Caxias, ruas descalçadas, sem o menor planejamento urbano: rua que
sobe, rua que desce, travessas, becos, vielas, mil entroncamentos... Uma teia
de miséria e carências.
Depois
as favelas da Ilha do Governador, da Linha Vermelha...
Devem
confundir Brasil e Afeganistão, Biafra, qualquer coisa assim.
Ainda
não foi desta vez. O piloto arremete tão próximo do chão que podemos ver as
luzes das ambulâncias e dos bombeiros ao lado da pista, nos esperando.
Sou
acometido de outro temor: pane seca. E se o combustível estiver no fim?
Combustível
a mais para a desaceleração, três vezes o reverso das turbinas. Depois mais
combustível para três decolagens não programadas... Vamos cair por falta de
combustível!
Dez
minutos após a aterrissagem abortada, terceira tentativa, percebo que a
aeronave permanece em linha reta, sem realizar nenhuma curva, mar adentro, e um
princípio de pânico se instaura entre os que já conhecem a rota, por viagens
anteriores: vai tentar um pouso forçado na água, não tem mais combustível para
nova tentativa.
Começam
os cochichos de pé de ouvido, todo mundo comentando a má nova: parece que
cairemos, os tanques secaram, gente principiando a chorar, os dois seminaristas
de mãos dadas, terço e um livro de orações, ou Bíblia, sei lá, entre as mãos,
as duas louras da frente falando alto, o fazendeiro já porrado, exigindo mais
uísque que “não quero ver esta merda
cair”, o comissário vai até a cabine e volta sorridente: “calma, pessoal!”
E
a voz no circuito interno de som: “aqui
quem lhes fala é o seu comandante. Temos combustível suficiente para realizar o
retorno a São Paulo. Segundo o SINDACTA, que é o órgão responsável pelo
controle da navegação aérea em nosso país, as condições de vôo agora estão bem
melhores que na vinda. Mantenham-se calmos e confiem na tripulação. Somos
experientes, bastante acostumados com essa rota. Neste momento voamos a...
metros de altitude, com velocidade de ..., horário previsto para o pouso: à uma
hora e doze minutos.”
Caramba!
Saí às dez e quarenta. Duas horas e meia para uma rota que dura cinqüenta
minutos, se tanto.
Questionei
o combustível novamente e lembrei que sempre que vou ao nordeste, vou em avião
deste mesmo modelo e sem escalas. Resta saber se encheram os tanques para
viagem tão curta.
A
quinze minutos do pouso, a voz novamente: “em
virtude de superlotação no aeroporto de Congonhas, teremos que pousar em Guarulhos. Perdoem
o contratempo, é por motivo alheio à nossa vontade e da direção da companhia.”
Imagino
Congonhas, aquela multidão acrescida de mais gente no saguão, o pátio cheio de
aviões esperando ordem para decolar...
Tivesse
sido um vôo normal, essa alteração de destino teria provocado todo o tipo de
protestos, urros, xingamentos, vaias... A distância entre Guarulhos e São Paulo
é bem maior que entre o Santos Dumont e o Tom Jobim.
Mesmo
com a companhia colocando transporte terrestre a disposição, é um bom pedaço.
Mas...
E daí? Desde que estejamos no chão, tanto faz se Congonhas, Guarulhos, Bangla
Desh ou Pequim.
Pouso
perfeito. Urras, vivas, palmas, abraços... Parece passagem de ano.
Ficamos
parados sem que a porta se abra.
Ninguém
reclama. Estamos vivos e agora qualquer contratempo é nada.
O
meu vizinho de poltrona estranha. Explico: é um procedimento normal em vôos
difíceis.
Esperam
que nos acalmemos ainda dentro do avião, para evitar traumas que nos espantarão
de vôos futuros.
Não
bastasse isso, se chegarmos no saguão chorando uns, com cara de medo outros,
vamos semear a insegurança nos que estão embarcando.
Rolamento
normal. Chega a escada e antes que a porta se abra, abre-se a porta da cabine.
Sai
um tipo baixinho, moreno de bigodes e... Craque no instante do gol, atleta no
momento do recorde, musa no palco... Demorados aplausos.
Esse
é o nosso comandante!
Ele
sorri, meio sem graça, como se nos dissesse: perdão, senhores, eu também estou
todo cagado!
In “Não Haverá
Mais Natais”, romance autobiográfico.
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