sábado, 25 de maio de 2013

COISAS DO RÁDIO

Estou numa sala, nove ou dez metros quadrados, sentado diante de um monte de equipamentos eletrônicos, fones nos ouvidos: microfones, gravador, aparelhos de DVD, CD, pick up, o monitor do computador, mesa de som com vinte e quatro canais, telefone à minha direita, equalizador, compressor, transmissor, papéis e discos espalhados.
                             É um estúdio de rádio. Estou numa emissora de rádio e a noite já vai avançada.
                             Confiro a próxima seqüência: Morris Albert, Oswaldo Montenegro e Foreigner. Feelings, Lua e Flor e I Want Know What Love is.
                             Depois a locução: nomes das músicas, intérpretes, indicações de oferecimentos dos ouvintes e dois minutos e meio de comerciais pré-gravados.
                             Acho que já comentei que nunca fiz nada para que as coisas acontecessem. Aconteceram sem o menor esforço, sem qualquer esforço meu.
                             Explicando melhor: nunca escolhi estradas. O destino, através de uma série de coincidências é que foi me apontando caminhos, deixando que eu só fizesse esforço para vencer esses caminhos, chegar aos objetivos que não predeterminei.
                             O único projeto que realmente levei a sério não conheceu êxito: não me tornei piloto de jatos, como queria desde tenra idade, por causa de uma gravidez.
                             Segui camelô e artesão porque essas as opções únicas para um menino de quatorze anos, depois para um pai precoce sem profissão determinada, a chamada mão de obra não qualificada.
                             Caí no magistério por acaso, precisando de grana. Alguém me chamou para “dar umas aulinhas” e as Universidades vieram depois.
                             Prestei concurso para o sistema penitenciário forçado por dificuldades econômicas, escolhendo esta atividade como quem vai comprar bananas, sem nenhum planejamento ou entusiasmo.
                             Cheguei ao serviço público federal por biscate: duro, resolvi assinar um contrato temporário de recenseador.
                             Terminado o censo, apareceu um concurso interno, e sem nenhuma pretensão, muito mais forçado por meu irmão que por vontade própria, prestei as provas, com o meu nome aparecendo em primeiro lugar, sem que eu fizesse nada para isso.
                             Comprei a escola porque o dono anterior tinha como opção única vender-me. Não tivesse me empurrado as dívidas trabalhistas, acreditando-me bobo, e estaria pagando indenizações e encargos até hoje, vinte anos depois.
                             Sempre que passei nos vestibulares, três, para universidades federais, foi sem gastar um único minuto estudando, preparando-me.
                             Mesmo na política sindical entrei sem nem perceber: houve uma assembléia da categoria e, do meio dos assistentes, discordei do orador e das propostas em pauta, manifestando-me veementemente, o que me custou um convite para figurar em uma das chapas, azarã, que concorreriam às eleições do sindicato.
                             Tornei-me delegado sindical, dirigente de base.
                             Quatro meses depois houve um congresso de delegados sindicais no Estado, em Nova Iguaçu, e voltei diretor estadual.
                             Nove meses depois houve um congresso nacional, em Ibirité, município da grande Belo Horizonte, e voltei membro da Executiva Nacional.
                             A ficha só caiu alguns meses depois, entre Senadores da República, nos corredores do Senado Federal: o que é que eu estou fazendo aqui, meu Deus?
                             Minha chegada ao rádio aconteceu nos mesmos moldes.
                             É como se houvesse alguém no imponderável conspirando, manobrando as situações, abrindo-me caminhos, nem sempre com a minha concordância, às vezes até mesmo contra a minha vontade e as minhas intenções.

                      Primeira aula, vinte e oito alunos, e a descoberta: o ser humano se caracteriza pela necessidade de se comunicar, partilhar conhecimentos e experiências, sentimentos e intenções, por todos os métodos e linguagens, do simples gestual dos animais que insistem em nós às mais sofisticadas verbalizações, culminando em todas as manifestações da arte.
                             Logo, mais turmas, cada vez maiores, com mais alunos, e logo os auditórios, em palestras e conferências.
                             A seguir a política sindical, os palcos, palanques, carros de som, trios elétricos... Somando-se em milhares os ouvintes partilhando as mesmas emoções.
                             Mas não bastava, era preciso mais.
                             Juntos, sacrificamos parte da nossa individualidade, alienando parte de nós em prol do coletivo ou pelo menos em favor da corrente com que afinamos, avaliando os nossos próprios pensamentos e as nossas convicções parcialmente.
                             Se o desejo é comum, como comuns as ambições e necessidades, nos apoiamos ao mesmo tempo em que nos permitimos apoio.
                             É preciso falar para multidões sim, mas de maneira que cada um preserve a própria individualidade, a idiossincrasia, porque cada ser humano é único, com semelhanças às vezes muito intensas, mas nunca exatamente igual a outro.
                             Cada cérebro é uma digital, cada coração também.
                             E descobri o rádio.
                     Agora era falar para milhares de alunos, milhares de correligionários, milhares de companheiros, milhares de amigos, milhares de pessoas... Com todos ao mesmo tempo e a cada um individualmente, sem sacrifício do coletivo e respeitando a unicidade de cada peito e cada cabeça.
                             Cheguei ao rádio por acaso: na dúvida se criava um jornal de bairro ou uma rádio perereca, aquela de postes, com caixas de som espalhadas pelas principais ruas do bairro, coincidentemente fui procurado por um dos amigos de adolescência dos meus filhos, DJ e locutor de eventos: fundaram uma rádio comunitária no bairro e estavam precisando de patrocinadores, no caso, a escola.
                             Saudoso dos microfones políticos, resolvi fazer a experiência, e a escola patrocinou um programa matinal, de variedades, com enfoque cultural, principalmente procurando dignificar a cidadania e o espírito comunitário.
                             Um desastre: acostumado com a oratória dos palanques, onde se passa ou se defende uma ideia rapidamente e com convicção, usei a mesma técnica, falando rápido e alto, sem me preocupar com a entonação e a empostação.  
                             Com o tempo, observando outros locutores e lendo trabalhos ligados ao assunto, fui me adaptando ao rádio.
                             Com a audiência crescente e o prazer com que estava fazendo, procurei um curso de produção para rádio e outro, de locução.
                             Logo percebi que a produção ensinada nada a tinha a ver com radiofonia comunitária, mas com rádios comerciais, nada a ver comigo.
                             Durante um exercício, o fonoaudiólogo me chamou: “você pouco usa a boca para falar. Você articula na garganta. Isso é um erro terrível, porque dificulta a leitura labial, que facilita o entendimento, e provoca um dispêndio de energia enorme, cansando rápido.”
                             E acrescentou: “mas, surpreendentemente, a sua voz é forte e muito bonita, aveludada, ideal para locução de programas românticos”.
                             Eu não lhe disse que era professor, não raro trabalhando dez, doze horas por dia, quase sempre em pré-vestibulares, onde não se fala, grita-se o tempo todo, terminando cada dia com a exaustão de maratonista na linha de chegada.
                             A voz grossa e forte é herança genética. Todos os meus tios paternos, inclusive o meu pai, tinham vozes poderosas, em engraçado contraste com os corpos esmirradinhos, pequenos e magros.
                             Quanto ao acusado defeito da fala, foi técnica obrigatoriamente desenvolvida.
                             Aí por volta dos vinte e cinco anos resolvi prestigiar um amigo que cursava odontologia, permitindo que ele me extraísse um pré-molar transformado em usina de dor e incômodo.
                             Com pouca experiência, o infeliz apoiou a alavanca sobre uma das minhas salivares, que se estropiou para sempre, passando a segregar saliva ininterruptamente, dia e noite, como se eu mastigasse.
                             Dois contratempos: a insalivação permanente provoca grande perda de água e sais minerais, o que me manteve sempre magro e...
                             Com a boca cheia d’água tive que reaprender a falar, para evitar chuveiradas na cara dos outros, o que me obrigou a controlar a emissão dos fonemas, principalmente os bilabiais e linguodentais, e ser parcimonioso na emissão de ar, quando falando, jogando a sonorização para a parte posterior da boca, usando muito o palato, o que provoca essa voz fechada, de trovão, mas muito ressonante.
                             Só isso. O resto é elogio sem motivo, imerecido. 

                    “Está entrando no ar... Programa Espaço Aberto...”
                           Abelardo Chacrinha Barbosa, “quem vai querer bacalhau?”, a encarnação do tropicalismo nacional sacaneando a ditadura de uma maneira tão popular e deslavada que poder algum foi capaz de calar, “olha a calcinha dela, ai, ai, ai... Olha a cueca do Roberto Carlos, quem quer a cueca do Roberto Carlos?”, afirmou que na televisão brasileira nada se cria, tudo se copia.
                           Sábias palavras.
                           O canal Globo News, por assinatura, tem um programa chamado “Espaço Aberto”, uma estranha coincidência.
                           Como cinco anos antes de começar o funcionar a Globo News eu já apresentava o “Espaço Aberto”, com uma audiência enorme na Zona Oeste, de Santa Cruz à Barra da Tijuca, alguém se agradou do nome e “tudo se copia”.
                           Como a Globo registra em cartório, patenteia as “suas produções”, o título “Espaço Aberto” é deles.
                           É o timinho pequeno fornecendo craques para a seleção.
                           Até aí nada demais. A desonestidade está na pose do “eu faço”, “nós fazemos”.
                           Ronaldo Fenômeno nasceu no São Cristóvão, Romário nasceu no Olaria, mas na produção da Globo... Bem, tudo nasce lá.
                           A inteligência e a criatividade moram ali, o resto sendo resto, um deserto mental aos olhos da Globo.
                           Os mecanismos que norteiam a expropriação do trabalho intelectual são os mesmos da expropriação do trabalho braçal.

         “Está entrando no ar... Programa Espaço Aberto...”
                           “Hoje, segunda feira, dia cinco de maio, agora nove horas e dois minutos. Um bom dia, mais que um bom dia, um ótimo dia pra você.
                           E a semana já não começa bem, o destrambelhado do governador fazendo afirmações absurdas, mas disso falo daqui a pouco, no ‘Papo das Dez’.
                           E daqui a pouco tem horóscopo na área, hoje com um fundo muito legal, de um compositor alemão chamado Beethoven.
                           A previsão do tempo: será que vai dar praia ou cama? Biquíni ou guarda-chuva? Daqui a já-já!
                           Ah! Tem também o ‘Entendendo a Letra’, e a letra de hoje é ‘Sonho de Ícaro’, do Biafra.
                           E você vai me ajudar a fazer o programa, ligando, pedindo e oferecendo canções a quem você preza, ama, venera, idolatra. É só ligar. O telefone é...
                           E mais, muito mais, daqui a pouquinho porque agora vou prestigiar os que nos prestigiam, os nossos anunciantes. Daqui a um minuto e meio eu volto. “Güenta” que não vai doer nada!”
                           E entram os primeiros comerciais do programa, pré-gravados.
                           Tudo, qualquer coisa é motivo para passar informações, conhecimentos, e são vários os quadros, uma revista variada, com enfoque para o político, para a politização da comunidade.
                           Leio o horóscopo no jornal, com fundo musical.
                           Na verdade a leitura do horóscopo é gancho para uma coisa maior: antes da leitura, explico quem foi o compositor da música de fundo, contando causos da vida dele, como viveu, como morreu, criando curiosidade, e depois comento a música, explico.
                           Assim, uma rádio comunitária, popular, de subúrbio, toca Bach, Haendel, Mendelson, Mozart, Beethoven, Dvörak, Tchaikovsky, Verdi...
                           O que culminou com uma peça sinfônica inteira, quase meia hora, e sem ser fazendo fundo.
                           “Bom, gente, hoje vou tocar Tchaikovsky, o meu compositor preferido...”, e falei dele, da vida dele.
                            A música escolhida é a “Abertura de 1812”.
                           “Essa música fala da vitória russa em uma das muitas guerras em que a Rússia esteve envolvida, principalmente com Napoleão e, depois com Hitler, na Segunda Guerra Mundial, quando morreram vinte e dois milhões de russos.
                           Vou tocar o último movimento. Fica atento aos canhões, sinos, fogos de artifício, na algazarra... À comemoração pela vitória, mas antes saca o hino francês e o hino russo.
                           São executados cada vez mais próximos até que se fundem num só, uma confusão danada. É a hora da batalha, os dois países se engalfinhando.”
                           Claro que é uma explicação simplista para uma gente simples, mas terminada a leitura do horóscopo, pelo telefone começam os pedidos para que eu repita a música, agora só a música.
                           Toco o finalzinho novamente e mais telefonemas: toca inteira!
                           No dia seguinte tocarei.
                           E uma rádio comunitária, popular, de periferia urbana, plantada em plena miséria*, toca Tchaikovsky numa segunda feira às nove e meia da manhã, todo mundo atento.
                           Quem disse que o povo não gosta do que é bom, das coisas de nível? Não ouve porque não conhece, não interessa à classe dominante que venha a conhecer.
                           Pode despertar a consciência e aí... Blau-blau classe dominante, fim da roubalheira e da exploração.
                           Como no programa humorístico, “isso não pode”.
                           Escola de má qualidade, de baixo nível, já está de bom tamanho.
                           O negócio é o diplominha, prá arranjar emprego e gastar dindim no shopping, pobre povo.

* N. A.: eu ia escrever num bolsão de miséria, mas é uma inversão. Esse país é feito de bolsões de riqueza na miséria geral. 


                           Agora o momento mais esperado, o “Papo das Dez”, quando desço o cacete, seja nos poderosos locais, nos maus moradores ou nas autoridades públicas.
                           É o momento de terror dos que andam na contramão dos interesses do povo, e solto o verbo em porradaria pura.
                           Hora de audiência no pico, praticamente todos os rádios sintonizados, todo mundo ligado, para ver (ouvir) quem é o “pato” do dia.
                           Ontem o governador afirmou que a ordem é atirar primeiro para identificar depois.
                           Aproveito que tem político propondo plebiscito para a pena de morte, junto tudo e começo: “ontem o nosso governador, possivelmente alguns uísques depois, porque é de domínio público que o cara é bicudo, entorna todas, afirmou que se depender dele a polícia vai matar primeiro para identificar depois.
                           Espero que os policiais que estão me ouvindo entendam que esta afirmação põe em risco a vida de todos os policiais.
                           Vamos primeiro ver o que é a polícia: a polícia é o braço armado da sociedade, e é paga por nós para nos dar segurança e tranqüilidade, e só, o que passa por nos livrar dos que transgridem a lei, ameaçando-nos.
                           Identificados, devem ser presos e encaminhados à justiça, a quem cabe julgar: absolver ou condenar.
                           E só. A partir daí é arbitrariedade, é abuso de autoridade, é desvio de função.
                           Aí o meu ouvinte pergunta: e se o vagabundo reagir, resolver atirar no policial?
                           Aí? Aí policial que descarregue até acabar a munição, até ver o bandido fora de ação.
                           E por quê?
                           Primeiro porque o policial deixou família em casa, e deve voltar são e salvo. Chega de viúvas e órfãos por causa da violência urbana.
                           Além disso, se a polícia é o braço armado da sociedade, a cada vez que um vagabundo atira num policial está atirando contra toda a sociedade, tem que ser tirado de circulação, incólume, ferido ou morto.
                           Agora, quando o governador, que é o chefe da Polícia Civil e comandante em chefe da Polícia Militar, diz que é para atirar primeiro e identificar depois, está criando a figura de legítima defesa para o bandido que mata polícia.
                           Isso mesmo: o advogado do vagabundo vai alegar que o cliente matou para não morrer. Agiu em legítima defesa.
                           Se o governador quer isso, trazer o faroeste para a cidade, que faça esses comentários reservadamente, entre os comandantes e delegados, de preferência antes do primeiro trago, e não dando salvo conduto para que policiais e vagabundos troquem tiros, com a população no meio, indefesa.
                           E já que estamos falando em matar e morrer, um outro assunto que está na ordem dia: tem um grupo de deputados propondo plebiscito para que a gente decida se deve haver pena de morte no Brasil ou não.
                           Primeiro: os países com maiores índices de violência são justamente os que têm pena de morte.
                           Quando o vagabundo sabe que vai morrer, ao invés de ficar na prisão, reage com muito mais ferocidade.
                           Segundo: todo mundo sabe que trabalhei no Sistema Penitenciário. Não vi nenhum grande empresário hospedado. Não vi nenhum político de nome hospedado, nenhum rico, nenhum dono da gente.
                           Só vi negros, nordestinos, analfabetos, favelados... Um de nós.
                           Ladrão de galinha é cana, ladrão de granja pega empréstimo no Banco do Brasil, prá comprar ração.
                           Ladrão de bicicleta é cana, contrabandista de carros de luxo é empresário bem sucedido.
                           Batedor de carteira é cana, quem sonega impostos, faz caixa dois, deposita no exterior, provocando evasão de divisas... Circula pelos corredores do poder, mamando nas tetas dos cofres públicos, distribuindo propinas.
                           As leis só servem para nós, só se aplicam se os criminosos somos nós.
                           A conclusão é óbvia: no sistema político e econômico em que vivemos as leis são armas para que a classe dominante nos mantenha dominados.
                           Aí um bando de bobos alegres quer aumentar ainda mais o poder da classe dominante, dando a eles o poder de decidir quais de nós devem viver e quais devem morrer.
                           Discorda?
                           O estupro é considerado crime hediondo, passível de pena de morte.
                           Então vamos imaginar duas situações reais: uma mulher aqui do bairro vai trabalhar no apartamento de um desses marajás da vida. Ela tem uma filha e o filho do marajá come a garota na marra, estupra a garota.
                           A mãe vai na delegacia, e o pai do moleque: sabe como é doutor, ela provocou o garoto, coisa da idade, ela não é bobinha não, foi criada na favela, é esperta, já era mulherzinha, quanto é que custa o arquivamento do caso? Eu dou um dinheirinho a ela e tudo bem doutor, zero a zero.
                           E ponto final.
                           Alguém imagina que seria diferente?
                           Agora vamos imaginar que o garoto é que é filho da empregada e a garotinha dá, mesmo que não haja estupro, e engravida.
                           Para se justificar com o pai diz que foi estupro, ou nem diz, o pai é que, revoltado por causa da mancha, sangue de pobre na família dele, faz uma acusação de estupro.
                           Você tem dúvida de que haverá um velório aqui no bairro, de um tarado executado pela justiça, por estupro?
                           Pobre a favor da pena de morte é bobo alegre bebendo veneno pensando que é remédio.
                           Se toca, Mané!”
                           E solto a vinheta e os comerciais.

                    Já afirmei em mais de uma oportunidade que as coisas acontecem comigo à minha revelia, por acaso, e foi por acaso que apresentei outros dois programas.
                           A emissora saía do ar às vinte e duas horas, um desperdício, principalmente nos finais de semana, com todo mundo acordado.
                           Num sábado, um calorão danado, entediado e sem sono, resolvi sair de casa e ficar sem fazer nada na rádio.
                           Passei a mão na estante, peguei as músicas românticas de que mais gosto e fui ouvi-las, fazendo uma trilha sonora da madrugada, deixando a rádio no ar.
                           Não demorou e o telefone começou a tocar, com gente elogiando ou perguntando se eu tinha determinada música à disposição, gente oferecendo música.
                           Como passaram a oferecer músicas, passei a fazer locução.
                           A audiência foi aumentando, aumentando, e os colegas me convenceram a começar o programa às oito da noite, indo até as duas.
                           Muito estafante, e reduzi para a meia noite, com o programa agora produzido, com vinhetas, comerciais e tudo o mais que tinha direito.
                           Tornei-me o campeão de audiência no horário, campeão de telefonemas na emissora, o que não é nenhuma vantagem quando se tem Phil Collins, Elton John, Stevie Wonder, Roxette, Peter Frampton, A-Ha, Oasis, Scorpions, Aerosmith, Lennon, McCartney, Eric Clapton, Madonna... Milton Nascimento, Rita Lee, Raul Seixas, Kid Abelha, Gal, Gil, Caetano, Paralamas, Skank, Roupa Nova, Lulu Santos... No repertório.
                           Às vezes, ao chegar na emissora, me esperava uma lista de oferecimentos, passada por telefone, durante os programas anteriores, o programa sendo a trilha sonora de muitas festas, música ambiente de muitos estabelecimentos comerciais (aconteceu até de comerciantes ligarem, no final do programa, reclamando porque eu ia parar justamente na hora em que estavam com as casas cheias).
                           Fiquei com o programa “Love’s Light” por quase treze anos no ar, em cinco emissoras diferentes.

                           E por acaso também comecei o terceiro programa, “O Rei e os Amigos do Rei”.
                           Havia na emissora um programa muito bom no gênero, muito popular, com sambas de raízes, locução e comentários bem no nível do povão, com uma audiência danada, apresentado por colega que é policial militar.
                           Na escala de serviço, no quartel, “pegado”, no jargão dos policiais, pediu que eu o substituísse em determinado domingo.               
                           Pedi permissão para fazer programa diferente. Ele não só permitiu como alertou os ouvintes, na semana anterior.
                           Saquei os meus discos da “Jovem Guarda”, toda a discografia do Roberto Carlos, e rumei para a rádio, sem nenhuma produção, nenhum planejamento, de maneira que o programa se tornou um bate papo de “coroas”, “tios e tias”, despretensioso, com causos da época, lembrando Chacrinha, Jair de Taumaturgo, Carlos Imperial... Fazendo fofocas dos bastidores, relembrando os climas dos bailes, e tocando músicas que os ouvintes não ouviam a quase meio século.
                           Para “sentir” como estava a minha audiência fiz um desafio: que ligassem e pedissem uma música do Roberto Carlos, qualquer música, de qualquer época, gravada aqui ou no exterior, e se eu não a tocasse em dez minutos, quem fez o pedido ganharia a minha coleção completa, menos um disco, que não tenho, uma raridade.
                           Telefones congestionados, uma lista suficiente para alimentar vários programas exclusivamente com Roberto Carlos.
                           Muitos de olho grande na minha coleção, muitos querendo ouvir as músicas que não ouviam a muitos anos.
                           Claro que minutos depois o concurso acabou, diante da impossibilidade de atender a todos.
                           A esta altura você deve estar pensando que sou fanzão do cara, tietão.
                           Pensou certo. Sou.
                           Ele fez a trilha sonora da minha geração.
                           Terminado o programa, os comentários, os pedidos nas ruas, para que repetisse o programa, os comentários com os colegas e os diretores da emissora, e resolveram me entregar todas as manhãs dos sábados, e nasceu “O Rei e os Amigos do Rei”, agora produzido, mais que feito profissionalmente, feito com amor, com diversos quadros: “As Canções que o Rei não Quis”, quando eu tocava as músicas que Roberto não quis gravar, por discordar das letras ou não ter gostado. Certamente foram centenas, talvez milhares, mas mostrava as mais conhecidas, como a “Se Eu Quiser Falar com Deus”, do Gil; “Por onde Andará?”, e eu tocava os que tiveram sucesso meteórico e a gente não sabe o que estão fazendo hoje; “E Lá Vem Beatles”, tocando os cabeludos, claro; “Outros Cantam o Rei”, tocando sucessos dele com outros intérpretes (Gal, Bethânia, Paulo Ricardo, Agnaldo Thimóteo...), “É Hora de Baile”, com Fevers, Renato e Seus Bluecaps, Pholhas, Lafayete... E tome Golden Boys, Deny & Dino, Leno & Lilian, Os Vips, Rosemary, Vanusa, Eduardo Araújo e, lógico, muito dos “maninhos”, Wanderléia e Erasmo.
                           Isso embutido numa overdose de Roberto Carlos.
                           Para sustentar os comentários, li praticamente tudo sobre a Jovem Guarda, inclusive a biografia não autorizada do Roberto, a que ele tirou de circulação, na Justiça (comprei loguinho, antes do rapa).
                           O momento mais gratificante foi o de telefonema dado por um dos próceres da Jovem Guarda.
                           Tinha vindo a um churrasco, em sítio num bairro próximo, e estava me ouvindo.
                           A princípio pensei que fosse trote, mas o papo bateu e a voz estava inconfundível. Ganhei o dia, prosa pra danar.

Quem está em casa não imagina o quão cansativo é fazer um programa de rádio.
                    Nas grandes rádios comerciais trabalham equipes: um produtor (ou programador), um operador de áudio, um técnico de som, um ou mais telefonistas e o locutor.
                    Nas rádios pobres e pequenas um sujeito só substitui a todos, acumulando todo o serviço.
                    Há profissionais que preferem trabalhar com o computador (alguns programas substituem diversos procedimentos manuais e auditivos), o que não é o meu caso. Só uso o computador para tocar os comerciais pré-gravados, por dois motivos: a minha absoluta incompetência para acompanhar a tecnologia, enrolando-me todo com o computador, e para proteger o meu acervo: sou colecionador de músicas e tenho algumas raridades, fora dos catálogos e fora do mercado*.
                    Gravadas no computador, rapidamente serão copiadas, perdendo o valor.
                    Então trabalho com dois e até três aparelhos de CD ou DVD, alternando discos e aparelhos (ao invés do equipamento jogar o sinal para os auto falantes, como acontece em nossas casas, joga para a mesa).
                    E como funciona? Insere-se o disco na gaveta, seleciona-se a faixa e trava-se (deixa no ponto).
                    Quando a música anterior acaba, solta-se a vinheta que intercala as músicas ao mesmo tempo em que se trava o disco que acabou de tocar.
                    No momento exato do término da vinheta, trava-se, soltando a música, no outro aparelho, sincronizadamente, com os olhos no cronômetro e os ouvidos nos fones, atentos: há diferenças de alturas na gravação, variando de gravadora para gravadora, e às vezes entre faixas num mesmo disco, o que obriga ao controle manual, na mesa, senão o seu rádio, em casa, aumenta e diminui de volume sozinho.
                    Regulada a altura do som, procura-se a música seguinte, insere-se o disco na gaveta, seleciona-se a faixa desejada e deixa-se no ponto (travada).
                    Seleciona-se a próxima vinheta, com o cuidado de não repetir as anteriores, tocadas a pouco, e também deixa no ponto.
                    Quando for falar, fecha-se o canal que está tocando a música e, enquanto a vinheta está no ar, recomeça-se a mesma música, com o canal fechado.
                    Faltando três segundos para a vinheta terminar (há vinhetas que só duram quatro segundos), abre-se o canal do microfone, ao mesmo tempo em que vai se diminuindo, gradativa e lentamente, o canal onde está tocando a música.
                    Falta ainda carimbar as músicas: soltar uma vinheta muito curta (um ou dois segundos) ou um efeito sonoro no meio da música, no momento exato de uma pausa, para que os sons não se sobreponham.
                    Além de elegante, caracteriza a emissora e não permite que uma grave as músicas da outra, usando em concorrência desleal.
                    Enquanto se está atento a isso, a todos esses procedimentos, o telefone toca. Pode ser alguém que só peça uma música, diga a quem quer oferecer, agradeça e desligue, mas também pode ser um conhecido querendo sustentar a conversa, e você todo enrolado, tendo que consultar na lista qual é a próxima seqüência, procurar os discos e programar, esperar a pausa, carimbar a música; uma gentil dama liga, impressionada com a sua voz, acreditando que o seu físico condiz com a voz, nos seus vinte e poucos anos de tesão e bom desempenho, que já se foram em meados do século passado, você na pista para negócio, “artista” transa fácil, e carimba a música, quando não é uma rejeitada ou um corno te fazendo de psicólogo, a música acabando, a vinheta entrando, os seus ouvidos atentos à altura do som, os olhos no cronômetro, agora é uma dona que quer oferecer a próxima seqüência aos filhos, são nove, e começa a ditar o nome completo de um por um, depois o nome do marido também, e de uma amiga que vende  Avon, se o senhor quiser mando ela aí, e há que programar os comerciais, entram no próximo intervalo, e outro telefonema, alguém que perdeu um cachorrinho da raça poodle e que atende pelo nome de peralta, por favor o senhor pode anunciar?, carimba a música, e você escrevendo o recado, e súbito alguém chama no portão, é o vizinho da rádio, quer oferecer uma música ou só assistir você trabalhando, uma conversa reme-reme que haja Deus, e lá vem outra música e o telefone toca, alguém quer vaga no colégio estadual, por favor ligue para o outro programa, na segunda de manhã, é, sou eu mesmo sim senhora, e tome vinheta, outra música, e agora é o moço pedindo um “louvor”, nesse horário não tocamos isso não meu amigo, e ele xinga você, em nome de Jesus, carimba a música, e você acaba esquecendo de tocar os comerciais, passou a hora, os anunciantes vão ligar, reclamando, e o telefone tocando, agora é a namorada do locutor que saiu, se lastimando porque ele ainda não apareceu no local do encontro, será que você sabe onde ele está? Sei não, deve ter se atrasado, ele ficou aqui no estúdio um tempão (mentira), deve ter se atrasado. Carimba a música, programa a próxima vinheta, trava; o telefone tocando, agora um Paraíba com sotaque de japonês bêbado, quer ouvir Bartô Galeno, não tenho isso não, amigo, então Oldair José, pode ser?, também não trouxe, e você tem que falar os nomes das músicas que tocaram na última seqüência, a pedido de quem, oferecendo a quem, e o japa-paraibano não desliga, o Amado Batista não é possível que você não tenha, também não?, liga pro programa de forró, amanhã, amigo, o colega toca, e o telefone tocando, e falar baboseiras românticas com empostação de travesseiro porque o programa é romântico e há que despertar tesão, e o telefone tocando, e a música acabando, e alguém chamando... E a sua mulher em casa certa de que você está aos beijos e abraços com alguém no estúdio, comeu mais uma hoje, cobrança que fará quando você chegar em casa, cansado, vendo leads coloridos piscando, anunciando que a música já vai acabar, os ouvidos zumbindo, efeito dos fones e do telefone, a mulher aguardando a carimbada e você mortinho, pronto ao ronco, e a mulher esperando, hora de comercial, e a música acabando, o telefone tocando, e você programando e o telefone tocando e alguém chamando e você anotando e o telefone tocando, a música acabando e amanhã tudo de novo outra vez... Puta merda!

* N.A.: agora podem baixar na Internet, mas na época os computadores eram ainda novidade e a Internet não estava tão ao alcance.

In "Não Haverá Mais Natais", romance autobiográfico.
             

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