Estou numa
sala, nove ou dez metros quadrados, sentado diante de um monte de equipamentos
eletrônicos, fones nos ouvidos: microfones, gravador, aparelhos de DVD, CD,
pick up, o monitor do computador, mesa de som com vinte e quatro canais,
telefone à minha direita, equalizador, compressor, transmissor, papéis e discos
espalhados.
É
um estúdio de rádio. Estou numa emissora de rádio e a noite já vai avançada.
Confiro
a próxima seqüência: Morris Albert, Oswaldo Montenegro e Foreigner. Feelings, Lua e
Flor e I Want Know What Love is.
Depois a
locução: nomes das músicas, intérpretes, indicações de oferecimentos dos
ouvintes e dois minutos e meio de comerciais pré-gravados.
Acho
que já comentei que nunca fiz nada para que as coisas acontecessem. Aconteceram
sem o menor esforço, sem qualquer esforço meu.
Explicando
melhor: nunca escolhi estradas. O destino, através de uma série de
coincidências é que foi me apontando caminhos, deixando que eu só fizesse
esforço para vencer esses caminhos, chegar aos objetivos que não predeterminei.
O
único projeto que realmente levei a sério não conheceu êxito: não me tornei
piloto de jatos, como queria desde tenra idade, por causa de uma gravidez.
Segui
camelô e artesão porque essas as opções únicas para um menino de quatorze anos,
depois para um pai precoce sem profissão determinada, a chamada mão de obra não
qualificada.
Caí
no magistério por acaso, precisando de grana. Alguém me chamou para “dar umas
aulinhas” e as Universidades vieram depois.
Prestei
concurso para o sistema penitenciário forçado por dificuldades econômicas,
escolhendo esta atividade como quem vai comprar bananas, sem nenhum
planejamento ou entusiasmo.
Cheguei
ao serviço público federal por biscate: duro, resolvi assinar um contrato
temporário de recenseador.
Terminado
o censo, apareceu um concurso interno, e sem nenhuma pretensão, muito mais
forçado por meu irmão que por vontade própria, prestei as provas, com o meu
nome aparecendo em primeiro lugar, sem que eu fizesse nada para isso.
Comprei
a escola porque o dono anterior tinha como opção única vender-me. Não tivesse
me empurrado as dívidas trabalhistas, acreditando-me bobo, e estaria pagando
indenizações e encargos até hoje, vinte anos depois.
Sempre
que passei nos vestibulares, três, para universidades federais, foi sem gastar
um único minuto estudando, preparando-me.
Mesmo
na política sindical entrei sem nem perceber: houve uma assembléia da categoria
e, do meio dos assistentes, discordei do orador e das propostas em pauta,
manifestando-me veementemente, o que me custou um convite para figurar em uma
das chapas, azarã, que concorreriam às eleições do sindicato.
Tornei-me
delegado sindical, dirigente de base.
Quatro
meses depois houve um congresso de delegados sindicais no Estado, em Nova Iguaçu , e voltei
diretor estadual.
Nove
meses depois houve um congresso nacional, em Ibirité, município da grande Belo
Horizonte, e voltei membro da Executiva Nacional.
A
ficha só caiu alguns meses depois, entre Senadores da República, nos corredores
do Senado Federal: o que é que eu estou fazendo aqui, meu Deus?
Minha
chegada ao rádio aconteceu nos mesmos moldes.
É
como se houvesse alguém no imponderável conspirando, manobrando as situações,
abrindo-me caminhos, nem sempre com a minha concordância, às vezes até mesmo
contra a minha vontade e as minhas intenções.
Primeira
aula, vinte e oito alunos, e a descoberta: o ser humano se caracteriza pela
necessidade de se comunicar, partilhar conhecimentos e experiências, sentimentos
e intenções, por todos os métodos e linguagens, do simples gestual dos animais
que insistem em nós às mais sofisticadas verbalizações, culminando em todas as
manifestações da arte.
Logo,
mais turmas, cada vez maiores, com mais alunos, e logo os auditórios, em
palestras e conferências.
A
seguir a política sindical, os palcos, palanques, carros de som, trios
elétricos... Somando-se em milhares os ouvintes partilhando as mesmas emoções.
Mas
não bastava, era preciso mais.
Juntos,
sacrificamos parte da nossa individualidade, alienando parte de nós em prol do
coletivo ou pelo menos em favor da corrente com que afinamos, avaliando os
nossos próprios pensamentos e as nossas convicções parcialmente.
Se
o desejo é comum, como comuns as ambições e necessidades, nos apoiamos ao mesmo
tempo em que nos permitimos apoio.
É
preciso falar para multidões sim, mas de maneira que cada um preserve a própria
individualidade, a idiossincrasia, porque cada ser humano é único, com
semelhanças às vezes muito intensas, mas nunca exatamente igual a outro.
Cada
cérebro é uma digital, cada coração também.
E
descobri o rádio.
Agora
era falar para milhares de alunos, milhares de correligionários, milhares de
companheiros, milhares de amigos, milhares de pessoas... Com todos ao mesmo
tempo e a cada um individualmente, sem sacrifício do coletivo e respeitando a
unicidade de cada peito e cada cabeça.
Cheguei
ao rádio por acaso: na dúvida se criava um jornal de bairro ou uma rádio
perereca, aquela de postes, com caixas de som espalhadas pelas principais ruas
do bairro, coincidentemente fui procurado por um dos amigos de adolescência dos
meus filhos, DJ e locutor de eventos: fundaram uma rádio comunitária no bairro
e estavam precisando de patrocinadores, no caso, a escola.
Saudoso
dos microfones políticos, resolvi fazer a experiência, e a escola patrocinou um
programa matinal, de variedades, com enfoque cultural, principalmente
procurando dignificar a cidadania e o espírito comunitário.
Um
desastre: acostumado com a oratória dos palanques, onde se passa ou se defende
uma ideia rapidamente e com convicção, usei a mesma técnica, falando rápido e
alto, sem me preocupar com a entonação e a empostação.
Com
o tempo, observando outros locutores e lendo trabalhos ligados ao assunto, fui
me adaptando ao rádio.
Com
a audiência crescente e o prazer com que estava fazendo, procurei um curso de
produção para rádio e outro, de locução.
Logo
percebi que a produção ensinada nada a tinha a ver com radiofonia comunitária,
mas com rádios comerciais, nada a ver comigo.
Durante
um exercício, o fonoaudiólogo me chamou: “você
pouco usa a boca para falar. Você articula na garganta. Isso é um erro
terrível, porque dificulta a leitura labial, que facilita o entendimento, e
provoca um dispêndio de energia enorme, cansando rápido.”
E
acrescentou: “mas, surpreendentemente, a
sua voz é forte e muito bonita, aveludada, ideal para locução de programas
românticos”.
Eu
não lhe disse que era professor, não raro trabalhando dez, doze horas por dia,
quase sempre em pré-vestibulares, onde não se fala, grita-se o tempo todo,
terminando cada dia com a exaustão de maratonista na linha de chegada.
A
voz grossa e forte é herança genética. Todos os meus tios paternos, inclusive o
meu pai, tinham vozes poderosas, em engraçado contraste com os corpos
esmirradinhos, pequenos e magros.
Quanto
ao acusado defeito da fala, foi técnica obrigatoriamente desenvolvida.
Aí
por volta dos vinte e cinco anos resolvi prestigiar um amigo que cursava
odontologia, permitindo que ele me extraísse um pré-molar transformado em usina
de dor e incômodo.
Com
pouca experiência, o infeliz apoiou a alavanca sobre uma das minhas salivares,
que se estropiou para sempre, passando a segregar saliva ininterruptamente, dia
e noite, como se eu mastigasse.
Dois
contratempos: a insalivação permanente provoca grande perda de água e sais
minerais, o que me manteve sempre magro e...
Com
a boca cheia d’água tive que reaprender a falar, para evitar chuveiradas na
cara dos outros, o que me obrigou a controlar a emissão dos fonemas,
principalmente os bilabiais e linguodentais, e ser parcimonioso na emissão de
ar, quando falando, jogando a sonorização para a parte posterior da boca,
usando muito o palato, o que provoca essa voz fechada, de trovão, mas muito ressonante.
Só
isso. O resto é elogio sem motivo, imerecido.
“Está entrando no ar... Programa Espaço Aberto...”
Abelardo
Chacrinha Barbosa, “quem vai querer
bacalhau?”, a encarnação do tropicalismo nacional sacaneando a ditadura de
uma maneira tão popular e deslavada que poder algum foi capaz de calar, “olha a calcinha dela, ai, ai, ai... Olha a
cueca do Roberto Carlos, quem quer a cueca do Roberto Carlos?”, afirmou que
na televisão brasileira nada se cria, tudo se copia.
Sábias
palavras.
O
canal Globo News, por assinatura, tem um programa chamado “Espaço Aberto”, uma
estranha coincidência.
Como
cinco anos antes de começar o funcionar a Globo News eu já apresentava o “Espaço
Aberto”, com uma audiência enorme na Zona Oeste, de Santa Cruz à Barra da
Tijuca, alguém se agradou do nome e “tudo
se copia”.
Como
a Globo registra em cartório, patenteia as “suas produções”, o título “Espaço
Aberto” é deles.
É
o timinho pequeno fornecendo craques para a seleção.
Até
aí nada demais. A desonestidade está na pose do “eu faço”, “nós fazemos”.
Ronaldo
Fenômeno nasceu no São Cristóvão, Romário nasceu no Olaria, mas na produção da
Globo... Bem, tudo nasce lá.
A
inteligência e a criatividade moram ali, o resto sendo resto, um deserto mental
aos olhos da Globo.
Os
mecanismos que norteiam a expropriação do trabalho intelectual são os mesmos da
expropriação do trabalho braçal.
“Está
entrando no ar... Programa Espaço Aberto...”
“Hoje, segunda feira,
dia cinco de maio, agora nove horas e dois minutos. Um bom dia, mais que um bom
dia, um ótimo dia pra você.
E a semana já não
começa bem, o destrambelhado do governador fazendo afirmações absurdas, mas
disso falo daqui a pouco, no ‘Papo das Dez’.
E daqui a pouco tem
horóscopo na área, hoje com um fundo muito legal, de um compositor alemão
chamado Beethoven.
A previsão do tempo:
será que vai dar praia ou cama? Biquíni ou guarda-chuva? Daqui a já-já!
Ah! Tem também o ‘Entendendo
a Letra’, e a letra de hoje é ‘Sonho de Ícaro’, do Biafra.
E você vai me ajudar
a fazer o programa, ligando, pedindo e oferecendo canções a quem você preza,
ama, venera, idolatra. É só ligar. O telefone é...
E mais, muito mais,
daqui a pouquinho porque agora vou prestigiar os que nos prestigiam, os nossos
anunciantes. Daqui a um minuto e meio eu volto. “Güenta” que não vai doer nada!”
E
entram os primeiros comerciais do programa, pré-gravados.
Tudo,
qualquer coisa é motivo para passar informações, conhecimentos, e são vários os
quadros, uma revista variada, com enfoque para o político, para a politização
da comunidade.
Leio
o horóscopo no jornal, com fundo musical.
Na
verdade a leitura do horóscopo é gancho para uma coisa maior: antes da leitura,
explico quem foi o compositor da música de fundo, contando causos da vida dele,
como viveu, como morreu, criando curiosidade, e depois comento a música,
explico.
Assim,
uma rádio comunitária, popular, de subúrbio, toca Bach, Haendel, Mendelson,
Mozart, Beethoven, Dvörak, Tchaikovsky, Verdi...
O
que culminou com uma peça sinfônica inteira, quase meia hora, e sem ser fazendo
fundo.
“Bom, gente, hoje vou tocar Tchaikovsky, o
meu compositor preferido...”, e falei dele, da vida dele.
A música escolhida é a “Abertura de 1812” .
“Essa música fala da vitória russa em uma
das muitas guerras em que a Rússia esteve envolvida, principalmente com
Napoleão e, depois com Hitler, na Segunda Guerra Mundial, quando morreram vinte
e dois milhões de russos.
Vou tocar o último movimento.
Fica atento aos canhões, sinos, fogos de artifício, na algazarra... À
comemoração pela vitória, mas antes saca o hino francês e o hino russo.
São executados cada
vez mais próximos até que se fundem num só, uma confusão danada. É a hora da
batalha, os dois países se engalfinhando.”
Claro
que é uma explicação simplista para uma gente simples, mas terminada a leitura
do horóscopo, pelo telefone começam os pedidos para que eu repita a música,
agora só a música.
Toco
o finalzinho novamente e mais telefonemas: toca inteira!
No
dia seguinte tocarei.
E
uma rádio comunitária, popular, de periferia urbana, plantada em plena
miséria*, toca Tchaikovsky numa segunda feira às nove e meia da manhã, todo
mundo atento.
Quem
disse que o povo não gosta do que é bom, das coisas de nível? Não ouve porque
não conhece, não interessa à classe dominante que venha a conhecer.
Pode
despertar a consciência e aí... Blau-blau classe dominante, fim da roubalheira
e da exploração.
Como
no programa humorístico, “isso não pode”.
Escola de
má qualidade, de baixo nível, já está de bom tamanho.
O
negócio é o diplominha, prá arranjar emprego e gastar dindim no shopping, pobre
povo.
* N. A.: eu ia escrever num
bolsão de miséria, mas é uma inversão. Esse país é feito de bolsões de riqueza
na miséria geral.
Agora o momento mais esperado, o “Papo
das Dez”, quando desço o cacete, seja nos poderosos locais, nos maus moradores
ou nas autoridades públicas.
É
o momento de terror dos que andam na contramão dos interesses do povo, e solto
o verbo em porradaria pura.
Hora
de audiência no pico, praticamente todos os rádios sintonizados, todo mundo
ligado, para ver (ouvir) quem é o “pato” do dia.
Ontem
o governador afirmou que a ordem é atirar primeiro para identificar depois.
Aproveito
que tem político propondo plebiscito para a pena de morte, junto tudo e começo:
“ontem o nosso governador, possivelmente
alguns uísques depois, porque é de domínio público que o cara é bicudo, entorna
todas, afirmou que se depender dele a polícia vai matar primeiro para
identificar depois.
Espero que os
policiais que estão me ouvindo entendam que esta afirmação põe em risco a vida
de todos os policiais.
Vamos primeiro ver o
que é a polícia: a polícia é o braço armado da sociedade, e é paga por nós para
nos dar segurança e tranqüilidade, e só, o que passa por nos livrar dos que
transgridem a lei, ameaçando-nos.
Identificados, devem
ser presos e encaminhados à justiça, a quem cabe julgar: absolver ou condenar.
E só. A partir daí é
arbitrariedade, é abuso de autoridade, é desvio de função.
Aí o meu ouvinte
pergunta: e se o vagabundo reagir, resolver atirar no policial?
Aí? Aí policial que
descarregue até acabar a munição, até ver o bandido fora de ação.
E por quê?
Primeiro porque o
policial deixou família em casa, e deve voltar são e salvo. Chega de viúvas e
órfãos por causa da violência urbana.
Além disso, se a
polícia é o braço armado da sociedade, a cada vez que um vagabundo atira num
policial está atirando contra toda a sociedade, tem que ser tirado de
circulação, incólume, ferido ou morto.
Agora, quando o
governador, que é o chefe da Polícia Civil e comandante em chefe da Polícia
Militar, diz que é para atirar primeiro e identificar depois, está criando a
figura de legítima defesa para o bandido que mata polícia.
Isso mesmo: o
advogado do vagabundo vai alegar que o cliente matou para não morrer. Agiu em
legítima defesa.
Se o governador quer
isso, trazer o faroeste para a cidade, que faça esses comentários
reservadamente, entre os comandantes e delegados, de preferência antes do
primeiro trago, e não dando salvo conduto para que policiais e vagabundos
troquem tiros, com a população no meio, indefesa.
E já que estamos
falando em matar e morrer, um outro assunto que está na ordem dia: tem um grupo
de deputados propondo plebiscito para que a gente decida se deve haver pena de
morte no Brasil ou não.
Primeiro: os países
com maiores índices de violência são justamente os que têm pena de morte.
Quando o vagabundo
sabe que vai morrer, ao invés de ficar na prisão, reage com muito mais
ferocidade.
Segundo: todo mundo
sabe que trabalhei no Sistema Penitenciário. Não vi nenhum grande empresário
hospedado. Não vi nenhum político de nome hospedado, nenhum rico, nenhum dono
da gente.
Só vi negros,
nordestinos, analfabetos, favelados... Um de nós.
Ladrão de galinha é
cana, ladrão de granja pega empréstimo no Banco do Brasil, prá comprar ração.
Ladrão de bicicleta é
cana, contrabandista de carros de luxo é empresário bem sucedido.
Batedor de carteira é
cana, quem sonega impostos, faz caixa dois, deposita no exterior, provocando
evasão de divisas... Circula pelos corredores do poder, mamando nas tetas dos
cofres públicos, distribuindo propinas.
As leis só servem
para nós, só se aplicam se os criminosos somos nós.
A conclusão é óbvia:
no sistema político e econômico em que vivemos as leis são armas para que a
classe dominante nos mantenha dominados.
Aí um bando de bobos
alegres quer aumentar ainda mais o poder da classe dominante, dando a eles o
poder de decidir quais de nós devem viver e quais devem morrer.
Discorda?
O estupro é
considerado crime hediondo, passível de pena de morte.
Então vamos imaginar
duas situações reais: uma mulher aqui do bairro vai trabalhar no apartamento de
um desses marajás da vida. Ela tem uma filha e o filho do marajá come a garota
na marra, estupra a garota.
A mãe vai na
delegacia, e o pai do moleque: sabe como é doutor, ela provocou o garoto, coisa
da idade, ela não é bobinha não, foi criada na favela, é esperta, já era
mulherzinha, quanto é que custa o arquivamento do caso? Eu dou um dinheirinho a
ela e tudo bem doutor, zero a zero.
E ponto final.
Alguém imagina que
seria diferente?
Agora vamos imaginar
que o garoto é que é filho da empregada e a garotinha dá, mesmo que não haja
estupro, e engravida.
Para se justificar
com o pai diz que foi estupro, ou nem diz, o pai é que, revoltado por causa da
mancha, sangue de pobre na família dele, faz uma acusação de estupro.
Você tem dúvida de
que haverá um velório aqui no bairro, de um tarado executado pela justiça, por
estupro?
Pobre a favor da pena
de morte é bobo alegre bebendo veneno pensando que é remédio.
Se toca, Mané!”
E
solto a vinheta e os comerciais.
Já afirmei
em mais de uma oportunidade que as coisas acontecem comigo à minha revelia, por
acaso, e foi por acaso que apresentei outros dois programas.
A
emissora saía do ar às vinte e duas horas, um desperdício, principalmente nos
finais de semana, com todo mundo acordado.
Num
sábado, um calorão danado, entediado e sem sono, resolvi sair de casa e ficar
sem fazer nada na rádio.
Passei
a mão na estante, peguei as músicas românticas de que mais gosto e fui
ouvi-las, fazendo uma trilha sonora da madrugada, deixando a rádio no ar.
Não
demorou e o telefone começou a tocar, com gente elogiando ou perguntando se eu
tinha determinada música à disposição, gente oferecendo música.
Como
passaram a oferecer músicas, passei a fazer locução.
A
audiência foi aumentando, aumentando, e os colegas me convenceram a começar o
programa às oito da noite, indo até as duas.
Muito
estafante, e reduzi para a meia noite, com o programa agora produzido, com
vinhetas, comerciais e tudo o mais que tinha direito.
Tornei-me
o campeão de audiência no horário, campeão de telefonemas na emissora, o que
não é nenhuma vantagem quando se tem Phil Collins, Elton John, Stevie Wonder,
Roxette, Peter Frampton, A-Ha, Oasis, Scorpions, Aerosmith, Lennon, McCartney,
Eric Clapton, Madonna... Milton Nascimento, Rita Lee, Raul Seixas, Kid Abelha,
Gal, Gil, Caetano, Paralamas, Skank, Roupa Nova, Lulu Santos... No repertório.
Às
vezes, ao chegar na emissora, me esperava uma lista de oferecimentos, passada
por telefone, durante os programas anteriores, o programa sendo a trilha sonora
de muitas festas, música ambiente de muitos estabelecimentos comerciais
(aconteceu até de comerciantes ligarem, no final do programa, reclamando porque
eu ia parar justamente na hora em que estavam com as casas cheias).
Fiquei
com o programa “Love’s Light” por quase treze anos no ar, em cinco emissoras
diferentes.
E por acaso também comecei o terceiro
programa, “O Rei e os Amigos do Rei”.
Havia
na emissora um programa muito bom no gênero, muito popular, com sambas de raízes,
locução e comentários bem no nível do povão, com uma audiência danada,
apresentado por colega que é policial militar.
Na
escala de serviço, no quartel, “pegado”, no jargão dos policiais, pediu que eu
o substituísse em determinado domingo.
Pedi
permissão para fazer programa diferente. Ele não só permitiu como alertou os
ouvintes, na semana anterior.
Saquei
os meus discos da “Jovem Guarda”, toda a discografia do Roberto Carlos, e rumei
para a rádio, sem nenhuma produção, nenhum planejamento, de maneira que o
programa se tornou um bate papo de “coroas”, “tios e tias”, despretensioso, com
causos da época, lembrando Chacrinha, Jair de Taumaturgo, Carlos Imperial...
Fazendo fofocas dos bastidores, relembrando os climas dos bailes, e tocando
músicas que os ouvintes não ouviam a quase meio século.
Para
“sentir” como estava a minha audiência fiz um desafio: que ligassem e pedissem
uma música do Roberto Carlos, qualquer música, de qualquer época, gravada aqui
ou no exterior, e se eu não a tocasse em dez minutos, quem fez o pedido
ganharia a minha coleção completa, menos um disco, que não tenho, uma raridade.
Telefones
congestionados, uma lista suficiente para alimentar vários programas
exclusivamente com Roberto Carlos.
Muitos
de olho grande na minha coleção, muitos querendo ouvir as músicas que não
ouviam a muitos anos.
Claro
que minutos depois o concurso acabou, diante da impossibilidade de atender a
todos.
A
esta altura você deve estar pensando que sou fanzão do cara, tietão.
Pensou
certo. Sou.
Ele
fez a trilha sonora da minha geração.
Terminado
o programa, os comentários, os pedidos nas ruas, para que repetisse o programa,
os comentários com os colegas e os diretores da emissora, e resolveram me
entregar todas as manhãs dos sábados, e nasceu “O Rei e os Amigos do Rei”,
agora produzido, mais que feito profissionalmente, feito com amor, com diversos
quadros: “As Canções que o Rei não Quis”, quando eu tocava as músicas que
Roberto não quis gravar, por discordar das letras ou não ter gostado. Certamente
foram centenas, talvez milhares, mas mostrava as mais conhecidas, como a “Se Eu
Quiser Falar com Deus”, do Gil; “Por onde Andará?”, e eu tocava os que tiveram
sucesso meteórico e a gente não sabe o que estão fazendo hoje; “E Lá Vem
Beatles”, tocando os cabeludos, claro; “Outros Cantam o Rei”, tocando sucessos
dele com outros intérpretes (Gal, Bethânia, Paulo Ricardo, Agnaldo
Thimóteo...), “É Hora de Baile”, com Fevers, Renato e Seus Bluecaps, Pholhas,
Lafayete... E tome Golden Boys, Deny & Dino, Leno & Lilian, Os Vips,
Rosemary, Vanusa, Eduardo Araújo e, lógico, muito dos “maninhos”, Wanderléia e
Erasmo.
Isso
embutido numa overdose de Roberto Carlos.
Para
sustentar os comentários, li praticamente tudo sobre a Jovem Guarda, inclusive
a biografia não autorizada do Roberto, a que ele tirou de circulação, na
Justiça (comprei loguinho, antes do rapa).
O momento mais gratificante foi o de telefonema dado por um dos próceres da Jovem Guarda.
O momento mais gratificante foi o de telefonema dado por um dos próceres da Jovem Guarda.
Tinha
vindo a um churrasco, em sítio num bairro próximo, e estava me ouvindo.
A
princípio pensei que fosse trote, mas o papo bateu e a voz estava inconfundível. Ganhei o dia, prosa pra danar.
Quem está em casa não imagina o quão cansativo é fazer um programa de rádio.
* N.A.: agora podem baixar na Internet, mas na época
os computadores eram ainda novidade e a Internet não estava tão ao alcance.
In "Não Haverá Mais Natais", romance autobiográfico.
Quem está em casa não imagina o quão cansativo é fazer um programa de rádio.
Nas grandes rádios
comerciais trabalham equipes: um produtor (ou programador), um operador de
áudio, um técnico de som, um ou mais telefonistas e o locutor.
Nas rádios pobres e pequenas
um sujeito só substitui a todos, acumulando todo o serviço.
Há profissionais que
preferem trabalhar com o computador (alguns programas substituem diversos
procedimentos manuais e auditivos), o que não é o meu caso. Só uso o computador
para tocar os comerciais pré-gravados, por dois motivos: a minha absoluta
incompetência para acompanhar a tecnologia, enrolando-me todo com o computador,
e para proteger o meu acervo: sou colecionador de músicas e tenho algumas raridades,
fora dos catálogos e fora do mercado*.
Gravadas no computador,
rapidamente serão copiadas, perdendo o valor.
Então trabalho com dois e
até três aparelhos de CD ou DVD, alternando discos e aparelhos (ao invés do
equipamento jogar o sinal para os auto falantes, como acontece em nossas casas,
joga para a mesa).
E como funciona? Insere-se o
disco na gaveta, seleciona-se a faixa e trava-se (deixa no ponto).
Quando a música anterior
acaba, solta-se a vinheta que intercala as músicas ao mesmo tempo em que se trava
o disco que acabou de tocar.
No momento exato do término
da vinheta, trava-se, soltando a música, no outro aparelho, sincronizadamente,
com os olhos no cronômetro e os ouvidos nos fones, atentos: há diferenças de
alturas na gravação, variando de gravadora para gravadora, e às vezes entre
faixas num mesmo disco, o que obriga ao controle manual, na mesa, senão o seu
rádio, em casa, aumenta e diminui de volume sozinho.
Regulada a altura do som,
procura-se a música seguinte, insere-se o disco na gaveta, seleciona-se a faixa
desejada e deixa-se no ponto (travada).
Seleciona-se a próxima
vinheta, com o cuidado de não repetir as anteriores, tocadas a pouco, e também
deixa no ponto.
Quando for falar, fecha-se o
canal que está tocando a música e, enquanto a vinheta está no ar, recomeça-se a
mesma música, com o canal fechado.
Faltando três segundos para
a vinheta terminar (há vinhetas que só duram quatro segundos), abre-se o canal
do microfone, ao mesmo tempo em que vai se diminuindo, gradativa e lentamente,
o canal onde está tocando a música.
Falta ainda carimbar as
músicas: soltar uma vinheta muito curta (um ou dois segundos) ou um efeito
sonoro no meio da música, no momento exato de uma pausa, para que os sons não
se sobreponham.
Além de elegante,
caracteriza a emissora e não permite que uma grave as músicas da outra, usando
em concorrência desleal.
Enquanto se está atento a
isso, a todos esses procedimentos, o telefone toca. Pode ser alguém que só peça
uma música, diga a quem quer oferecer, agradeça e desligue, mas também pode ser
um conhecido querendo sustentar a conversa, e você todo enrolado, tendo que
consultar na lista qual é a próxima seqüência, procurar os discos e programar,
esperar a pausa, carimbar a música; uma gentil dama liga, impressionada com a
sua voz, acreditando que o seu físico condiz com a voz, nos seus vinte e poucos
anos de tesão e bom desempenho, que já se foram em meados do século passado, você
na pista para negócio, “artista” transa fácil, e carimba a música, quando não é
uma rejeitada ou um corno te fazendo de psicólogo, a música acabando, a vinheta
entrando, os seus ouvidos atentos à altura do som, os olhos no cronômetro,
agora é uma dona que quer oferecer a próxima seqüência aos filhos, são nove, e
começa a ditar o nome completo de um por um, depois o nome do marido também, e
de uma amiga que vende Avon, se o senhor
quiser mando ela aí, e há que programar os comerciais, entram no próximo
intervalo, e outro telefonema, alguém que perdeu um cachorrinho da raça poodle
e que atende pelo nome de peralta, por favor o senhor pode anunciar?, carimba a
música, e você escrevendo o recado, e súbito alguém chama no portão, é o
vizinho da rádio, quer oferecer uma música ou só assistir você trabalhando, uma
conversa reme-reme que haja Deus, e lá vem outra música e o telefone toca,
alguém quer vaga no colégio estadual, por favor ligue para o outro programa, na
segunda de manhã, é, sou eu mesmo sim senhora, e tome vinheta, outra música, e
agora é o moço pedindo um “louvor”, nesse horário não tocamos isso não meu
amigo, e ele xinga você, em nome de Jesus, carimba a música, e você acaba
esquecendo de tocar os comerciais, passou a hora, os anunciantes vão ligar,
reclamando, e o telefone tocando, agora é a namorada do locutor que saiu, se
lastimando porque ele ainda não apareceu no local do encontro, será que você
sabe onde ele está? Sei não, deve ter se atrasado, ele ficou aqui no estúdio um
tempão (mentira), deve ter se atrasado. Carimba a música, programa a próxima
vinheta, trava; o telefone tocando, agora um Paraíba com sotaque de japonês
bêbado, quer ouvir Bartô Galeno, não tenho isso não, amigo, então Oldair José,
pode ser?, também não trouxe, e você tem que falar os nomes das músicas que tocaram
na última seqüência, a pedido de quem, oferecendo a quem, e o japa-paraibano
não desliga, o Amado Batista não é possível que você não tenha, também não?,
liga pro programa de forró, amanhã, amigo, o colega toca, e o telefone tocando,
e falar baboseiras românticas com empostação de travesseiro porque o programa é
romântico e há que despertar tesão, e o telefone tocando, e a música acabando,
e alguém chamando... E a sua mulher em casa certa de que você está aos beijos e
abraços com alguém no estúdio, comeu mais uma hoje, cobrança que fará quando
você chegar em casa, cansado, vendo leads coloridos piscando, anunciando que a
música já vai acabar, os ouvidos zumbindo, efeito dos fones e do telefone, a
mulher aguardando a carimbada e você mortinho, pronto ao ronco, e a mulher
esperando, hora de comercial, e a música acabando, o telefone tocando, e você
programando e o telefone tocando e alguém chamando e você anotando e o telefone
tocando, a música acabando e amanhã tudo de novo outra vez... Puta merda!
In "Não Haverá Mais Natais", romance autobiográfico.
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