quinta-feira, 23 de maio de 2013

O MOTIM

Qualquer cadeia é fonte para muitos tratados sobre o comportamento humano, não só considerando os encarcerados, mas qualquer um que tenha contato direto ou indireto com eles, como se fosse sociedade apartada e auto-suficiente, restinga de acesso estreito e seletivo, de estreita porta com o continente.
                  Em qualquer sistema carcerário, em qualquer cadeia do mundo, o pilar sobre o qual se sustentam todas as relações é o da desconfiança, a desonestidade sendo considerada o componente mais consistente e relevante nos seres humanos, só esperando a oportunidade para se manifestar, independente de que lado da grade se está, e acima de todas as convicções: morais, éticas, religiosas...
                  Se um homem não é desonesto pode ser qualquer coisa menos um homem, reduzidas a honestidade e a ética à desonestidade sob controle, em suspensão.
                  Na cadeia todo olhar é de desconfiança. Entre os guardas, entre os detentos, entre detentos e guardas, a direção e o corpo da guarda, funcionários e direção, guardas e visitantes, sejam parentes de presos, autoridades da administração pública, prestadores de serviços...
                  Cada um que chega ou sai, permanece ou não, é fonte de delitos, indisciplinas e transgressões a serem flagrados, se não para punição, pelo menos para confirmar e mais sedimentar a tese.
                  O que não confirma, pauta-se pelo que deveria ser lógico, agrega-se não ao conjunto dos honestos, que não há, mas ao dos espertos.
                  Vinte e duas horas e quarenta e três minutos. Sei porque redigi o relatório depois, inspetor mais afeito ao gatilho que à caneta me incumbindo.
                  Cumpro horário de descanso no beliche, sendo despertado em paisagem mental próxima à da explosão do paiol do Exército, em Deodoro, quando criança, a mesma insegurança, o mesmo medo, alarme, gritos, sirenes... Colegas como insetos em incêndio no mato, correndo tontos, ganhando tempo para ordenar as idéias, e um grito: “fuga!  Os filhos da puta estão fugindo!”
                  Nove. Só nove, cinco intramuros e quatro dormindo, preparando-se para render os cinco acordados, sozinhos agora, esperando reforço de fora, os vagabundos estão amotinados! Mil e trezentos, devem ter armas.
                  Já ligaram pra piranha, pro corno, pro choque? Piranha: diretora, corno: chefe de segurança, choque: tropa de choque da polícia militar.
                  Agora cada um de nós odeia tudo o que não for cada um de nós e o único vestígio de humanidade é a morfologia, a forma dos nossos corpos prontos para investir, atacar, lacerar, matar...
                  Os instintos milenares das feras que nos habitam, milhões de anos não bastaram para matá-las, afloram e persistem, aparentemente adormecidas, em tocaia, prontas para o bote no momento propício, ainda que inesperado.
                  Um ir ao telefone é abrir mão de mais de dez por cento da força. Liga depois.
                  Desarmados na frente, armados dando cobertura, mil e trezentos homens gritando ameaças, todo o arsenal de termos chulos tornando-se idioma oficial.
                  Imagine uma sublevação no zoológico, numa reserva, as feras acuadas nas grades, rosnando, rugindo, mostrando presas e garras, observando jugulares, avaliando os movimentos das presas.
                  A sala de armas, caralho! Abre logo!
                  Está aberta!
                  Não tenho, não tive, espero nunca ter armas. Chego tarde, prateleiras vazias, e o inspetor: “todo mundo fardado. Não quero nenhum paisano lá dentro, pode ser confundido. Os desarmados na frente, o resto dando cobertura. Todas as lanternas apagadas, podem nos posicionar para um tiro. Vamos e seja o que Deus quiser!”
                  As sirenes das unidades vizinhas começam a soar, todo o complexo penitenciário em som único de fábrica, entrada, saída ou hora de refeição.
                  Chegam colegas de outros lugares, as primeiras viaturas da polícia militar, da polícia civil. Alguém ligou de uma unidade vizinha ou estavam nas imediações, ouviram o alarme e passaram rádio para as outras viaturas.
                  Não entram, vaidade e norma.
                  Na cadeia só desipes e presos, polícia do lado de fora. Só entra se permitirmos.
                  Não permitimos. Por enquanto sob controle, problema nosso, e subordinados ao medo, a mais legítima, talvez única forma de defesa, os detentos começam a gritar “calma, superior!” “São só três, seu fulano!” “Já foram, seu beltrano!” “A cadeia está calma, seu sicrano!” Fulano, beltrano e sicrano os nossos nomes.
                  Conhecem-nos a todos, pelo convívio, duas vezes por semana somos presos também, e nos observam agora, sabendo exatamente a posição de cada um, tanto geográfica, nos corredores, quanto psicológica.
                  Muitos anos no mesmo lugar, conhecem cada poro de cada parede, todas as manchas de ferrugem das grades, nossas reações, analisados que fomos, em profundidade e cotidianamente.
                  Um bilhetinho cai de uma janela, cachorrinho em ação.
                  Cachorrinhos são como tratamos os X-9, os dedos duros, os delatores, carne tenra para estoques, tão desprezados por nós quanto pelos companheiros de infortúnio: são três.
                  Um está forrado, de ferro em cima, entenda-se portando arma de fogo, possivelmente revólver, que também possivelmente entrou na cadeia peça a peça, por meses, não se pode imaginar como, na vagina da amante ou da mãe, recheando bolos e pudins trazidos por parentes, caminhão do lixo, viatura de algum fornecedor, nos mantimentos que chegam à despensa e depois à cozinha, jogado por cima do muro, vindo de alguma guarita guarnecida por policial militar ou através da portaria mesmo, atravessado por um de nós, por alguém esperto o bastante para não entender que pode estar fornecendo a arma que o matará.
                  O primeiro se entrega e é recepcionado por um tapa na cara, um soco nas costas, pontapés entre pernas, uivando como um cão.
                  O segundo começa a gritar na oficina mecânica, na garagem, “perdão, perdão! Pelamor de Deus, autoridade! O sangue de Jesus tem poder. Pelo sangue de Jesus, superior!” Perdendo dentes, chorando como criança na hora do banho.
                  A arma está com o terceiro. Cadeia vasculhada cada palmo e canto. Não pode ter saído.
                  Não há tereza no muro, corda de lençóis e fronhas, nem gancho, a galera das guaritas dizendo “ninguém saiu”.
                  Puta-merda, onde esse vagabundo se meteu?
                  “Achei!” Grita alguém. Tiros para cima, intimidar, o safado está armado.
                  Na confusão tiros na direção dele. Rende-se.
                  Coronhada com a arma que portava, um trezoitão tão velho que era capaz de negar fogo, todo mundo batendo, socando, estapeando, chutando, até que já não é um homem, saco de serragem, batatas, qualquer coisa passiva e inumana, flácido e quase imóvel nos estertores da morte, a voz do inspetor, “vocês vão matar o filho da puta! Pára!”
                  Um dos guardas abre a braguilha e... Urina na cara do pobre, outro cospe, toda a população carcerária nas janelas, frestas, buracos, assistindo: “covardia! Pára, seus filhos da puta, que vão matar o homem!”
                  “Na rua vocês botam o rabo entre as pernas, aqui ficam machos. Abre as grades, seus filhos da puta! Vinte contra um, seus viados, entra aqui e vem bater na gente, seus viados filhos da puta! Enquanto tão na covardia as mulheres de vocês tão fudendo com o vizinho, seus filhos da puta, covardes! Bando de cornos! Tão esquecendo que de manhã vão embora? A gente vai mandar lembranças pros filhos de vocês, pras putas de vocês, nossa rapaziada está lá fora, só esperando, seus viados...”
                  Dois fujões já no isolamento, na solitária. Feridas que se sarem por si ou se inflamem, supurem, apodreçam.
                  Quando semimorto será socorrido, se alguém lembrar ou atender aos apelos, a vida nas mãos da boa vontade e dos sentimentos do guarda que escoltará a entrega das refeições.
                  O outro é arrastado pelas pernas, nuca e costas no cimento, até que um mais piedoso pega pelos braços, acabando de deslocar os ossos fraturados, talvez a coluna, tornando irreversíveis os danos.
                  Levado para o hospital penitenciário, nenhum médico de plantão, o inspetor recusando, “tá maluco? Tá pensando que essa porra é necrotério? Daqui a pouco morto, não tem médico, vou segurar essa não.”
                  Transferência para o hospital público, dois policiais militares escoltando aquele corpo agônico, como se pudesse fugir da maca, sangue em cada poro, olhos fechados de inchaço, por onde só passa algumas lágrimas, rasgo na testa, coronhadas, talvez afundamento do crânio, respiração sem ritmo na boca abrindo e fechando como a de um peixe na areia, certo de que o mar secou e daqui a pouco só o silêncio e a imobilidade, o vazio sob o sol.
                  Nenhum detento na cela. Todos nos corredores separados do mundo por poucas portas elétricas com os mecanismos pifados, defeituosos, em pane nos obrigando a abri-las manualmente, as trancas eletrônicas substituídas por milenares correntes e medievais cadeados, todos andando para lá e para cá, fora de si, alguns socando as paredes, todos falando ao mesmo tempo, alguns gritando, não humanos, mortos pelas mesmas feras que nos habitaram a pouco, prontos para investirem contra qualquer coisa que se mova, muito mais pela visão posta na nossa agressividade que por solidariedade ao companheiro na UTI, gosto de sangue na garganta, unhas, mãos, garras, dedos e dentes prontos para entrar em ação.
                  Um companheiro me chama: reunião agora, na inspetoria, com todo mundo. O inspetor falou com a mulher (diretora), ela está vindo pra cá, acho que o bicho vai pegar.
                  O inspetor, sem titubeios nem meias palavras: “vamos invadir!”
                  Pondero, dividindo os companheiros: “tá maluco, chefe? O clima é de reação, não há a menor condição de impor disciplina”, os companheiros mais intempestivos ou mais belicosos insinuando que estou com medo, os mais sensatos concordando comigo, não tem acordo, os vagabundos vão reagir, é melhor a gente dar um tempo, esperar que se acalmem sozinhos, aí a gente negocia...
                  Mas o inspetor opta por negociar imediatamente. É chamar os xerifes aqui embaixo e passar o que a diretora passou: todo mundo nas celas, todas as celas trancadas.
                  Xerifes são os top nas cadeias, as autoridades máximas, o Estado paralelo com as suas leis e procedimentos.
                  Uns porque grandes aqui fora, levaram para a cadeia o apoio exterior, continuam líderes nas organizações criminosas a que pertencem, cuidando para que o poder da organização continue pós grades, em alguns casos braço estratégico do grupo.
                  Outros ascenderam ao poder pela truculência ou pela estratégia, eliminando concorrentes e arregimentando comparsas. Normalmente não têm apoio externo e, por vulnerabilidade, são os mais violentos e implacáveis.
                  Os do terceiro tipo detêm o poder econômico, os banqueiros, que movimentam a droga, a prostituição e a jogatina.
                  São os agentes ativos da corrupção, comprando tudo, inclusive e infelizmente as autoridades públicas e os funcionários do sistema.
                  Agem juntos, dividindo atribuições e poderes. São o executivo, o legislativo e o judiciário. Juízes, defensores e promotores.
                  Os executores, conhecidos por buchas, são os caidinhos, muito pobres, dependentes de favores e grana para sustentar os vícios, ou de penas elevadas, com muitos anos a cumprir, seja pela gravidade do delito seja pelo acúmulo de delitos e sentenças.
                  Como morrerão na cadeia, velhos ou justiçados, e um crime a mais ou a menos não faz diferença, assumem sempre a execução, tenha sido eles ou um dos xerifes.
                  Só um comparece, mesmo assim para dizer que os outros se recusaram, “não temos condição de manter a órdi chefe, nóis não se responsabilizamos, se eu fosse o senhor não deixava os guarda entrar, é melhor esperar os vagabundo acalmar, num vão pra cela de jeito ninhum, vai por mim, autoridade, deixa os seus home aí fora, eu lavo as minha mão, a merda vai fedê muito.”
                  Maldade, sadismo ou crime? Não foi avisado que a tropa de choque estava nos portões, pronta para entrar em ação.
             “Vou mandar o choque entrar, a mulher mandou, ela está vindo pra cá.”
                  Afirmação convicta do inspetor. Troca de olhares, piedade de alguns, prazer sádico de outros.
                  Os portões são abertos.
                  Detentos correm nos corredores, falam alto, até serem abafados por um barulho ensurdecedor: uivos, gritos, sons de objetos se quebrando, portas metálicas batendo, gemidos...
                  Cassetetes, punhos e escudos se lançando em tudo que encontra pela frente, os guardas penitenciários do lado de fora.
                  O comando agora é do tenente. Prevenção nossa por causa do inquérito depois.
                  Presos na enfermaria, hematomas por todo o corpo, membros e dentes quebrados, sangramentos, aparelhos de tevê e rádios de pilhas, quadros com fotos de parentes, objetos de uso pessoal, tudo destroçado, em pedaços.
                  Roupas rasgadas, gente mancando, com as mãos nos rostos, estancando sangue, gente chorando e a voz do tenente: “vai trancar?”
                  Os policiais recuam, ficam nos corredores externos e começamos o confere e a geral, prancheta na mão, nome a nome, cela por cela revistadas, trancadas depois, e só faltam os três que tentaram fugir, mal menor.
                  A diretora chega, vai direto para o gabinete. O choque vai embora e ficamos novamente a sós, administrando o ódio tão adensado que quase concreto, fatiável com as facas da covardia.
                  Entrevista coletiva com a diretora, a imprensa alardeando o risco supremo que a sociedade correu, “está tudo sob controle, a Polícia Militar fez um bom trabalho, ninguém ferido, nossos funcionários também estão bem, nenhum ferido, só três internos no hospital, dois com ferimentos leves, reagiram à voz de captura e um mal, muito mal, caiu da caixa d’água quando tentava alcançar o muro, caiu sozinho, ninguém estava armado, é especulação Como poderia entrar uma arma no sistema? Isso é especulação, vamos apurar.”
                  Sem nomeação ou vantagens vou eu, redator da turma, redigir o relatório, o que presenciei.
                  É recusado. “Como é que você escreve um negócio desse?”
                  Alguém me chama de traíra e sustento a minha posição.
                  Não serei cúmplice nessa sacanagem. Três tentaram fugir e a gente permitiu porrada em todo mundo, quase mataram o pobre e dizem que caiu da caixa d’água, isso é sacanagem, covardia.
                  Não vou redigir porra de relatório nenhum que só sou professor lá fora. Aqui sou guarda como qualquer um de vocês, escrevo porra nenhuma, inspetor e chefe de segurança conversando com a diretora e vindo negociar comigo, a gente vai dizendo e você escreve. Exijo a redação de ressalva no final: “conforme me foi relatado pelos funcionários fulano e beltrano.”
                  Retorno à direção, concordância da diretora, redijo e ressalvo.
                  No próximo serviço receberei a notícia: “você vai ser transferido de unidade.”


(Este conto faz parte do romance autobiográfico Não Haverá Mais Natais)

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