sábado, 25 de maio de 2013

NÃO CONGREGO

A pergunta que mais me fazem é se tenho religião, qual é a minha religião, se “freqüento” alguma religião, se acredito em Deus, onde “congrego”...
                           Engraçado é que perdi a conta do número de vezes em que os protestantes, inconscientemente, em ato falho, trocaram o professor por pastor.
                           Agora, comigo trabalhando como voluntário em um abrigo de orientação protestante, o negócio tomou tamanha rotina que já não corrijo mais.
                           Normalmente respondo afirmando não ter religião, ou me dizendo ecumênico, com as pessoas surpreendidas, sem saber que “religião” é essa.
                           A primeira coisa a esclarecer é que não ter religião não é o mesmo que ser ateu.
                           Fui materialista por uns bons anos, apoiado na literatura marxista, na dialética, e voltei ao teísmo (crença num deus) por absoluto vazio intelectual.
                           A minha crença em Deus não é questão de fé, de “conhecimento” incutido por tradição familiar ou leitura de textos religiosos, é uma necessidade intelectual para entender e explicar a realidade.
                           Só não me subordino a doutrinas, por entendê-las excludentes (não aceitam as outras), prepotentes (acreditam-se donas da verdade, proprietárias dos segredos divinos), primitivas (humanizam Deus, atribuindo-Lhe os mesmos sentimentos humanos, miúdos e limitados) e reducionistas (consideram que já está tudo explicado nos textos religiosos).
                           Noto muita má fé, manobra ideológica e ignorância (no sentido de ignorar, desconhecer) entre as lideranças religiosas.
                           Aceito que neguem a evolução, o big-bang, a materialidade dos fenômenos naturais, o que quiserem, desde que saibam do que estão falando, que conheçam o assunto, sob pena de estarem repetindo uma criança em defesa de Papai Noel ou da cegonha.
                           Só tem autoridade para aceitar ou negar qualquer teoria quem a conheça, sob pena de crassa ignorância, de leviandade, o que não seria de se esperar em quem se pretende orientador do próximo ou porta-voz das vontades divinas.
                           No passado acreditamos na Terra como o centro do Universo e o homem criado à imagem e semelhança de Deus, fisicamente mesmo* (é só consultar os documentos da época, sobre os quais os artistas plásticos criaram as suas obras e que estão ai pelos museus até hoje).
                               Nada mais lógico. Se o homem era o centro da criação, o planeta em que habitava deveria ser o centro do Universo, com tudo girando em torno dele, Deus próximo e com a incumbência única de vigiar e orientar o seu rebanho.
                           Aí descobrimos que nosso planeta não era o centro de nada, mas que girava em torno do Sol. E o sistema solar passou a ser o centro do universo, decrescendo a nossa importância.
                           Aí descobrimos que o Sol só era o centro do Sistema Solar, girando em torno de um imenso Buraco Negro, situado no centro da nossa galáxia, a Via Láctea.
                           E mais descobrimos: que estamos na periferia da galáxia, lá nos subúrbios cósmicos, e que o Sol é uma das menores, menos brilhantes e mais frias estrelas, uma insignificância diante do Universo.
                           Aí a Via Láctea passou a ser o centro do Universo, ou melhor: todo o universo era a Via Láctea, lar da principal criação de Deus.
                           Aí descobrimos que existem bilhões de galáxias, cada uma delas com bilhões de sóis, e que a Via Láctea é uma das menores.
                           Aí, recentemente, descobrimos que cada estrela, ou pelo menos a maioria das estrelas, tem planetas girando em torno de si, exatamente como o Sol, abrindo infinitas possibilidades para infinitas formas de vida.
                           E de aí em aí... Descobrimos que não somos o centro de nada, senão de nós mesmos**.
                           As religiões não evoluíram junto com a evolução do conhecimento humano, e o Deus responsável por isso tudo continua aquele mesmo do tempo em que acreditávamos que morava aqui ao lado, quando tudo girava em torno de nós e o Universo acabava ali adiante.
                           Nos informamos e oramos pelos mesmos textos dessa época, e o que não se enquadra nos textos é simplesmente abandonado, desconsiderado, seja por dizerem que é mentira, má fé da ciência ou obra de forças malignas, quando não ridicularizam os que defendem os postulados científicos, esquecendo que não é uma questão de crer ou não crer, mas de apontar o telescópio ou o microscópio e ver.
                           A argumentação, para essa posição, é de que os textos religiosos foram “inspirados”.
                           Tudo bem, desde que se aceite que foram inspirados para aquela época, porque hoje, pelas inconsistências e contradições, só forçando uma boa barra e afirmando que a linguagem é figurada, imprópria a uma interpretação literal, como fazem.
                           Não consigo ir a uma igreja ou a um templo para ouvir que “a ciência afirma que o homem veio do macaco”, com o cara ridicularizando Darwin e todos os evolucionistas.
                           Li toda a obra de Darwin*** e não há tal afirmação.
                           Quando vão ao púlpito afirmar isso estão agindo como papagaios repetidores do que ouviram, sem saber o que e do que estão falando, ou sabem e agem de má fé?
                          
* N. A.: é só ouvir o discurso dos religiosos, ainda hoje: “as mãos de Deus”, “o olhar de Deus”, “o hálito de Deus”... E não citam em sentido figurado não. Acreditam que estão sendo fisicamente olhados, tocados...
** N. A.: é cada vez mais consistente a possibilidade do multiverso, cada vez maiores as evidências de que o nosso universo não é único, mas um em um número infinito de universos (a melhor maneira de criarmos uma imagem mental disso é imaginar a água fervendo: cada bolhinha seria um universo).
*** N. A.: Darwin escreveu dois livros: “A Origem das Espécies” e “A Origem do Homem”. Depois juntou os seus diários e apontamentos de bordo, quando viajou por anos, no Beagle, um navio inglês (esteve no Brasil, em Cabo Frio) e transformou em mais um livro: “Viagem de um Naturalista ao Redor do Mundo”. Juro que o macaco citado pelos religiosos não está escondido nesses livros.

In "Não Haverá Mais Natais", romance autobiográfico.

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