Amanheço. Vou à birosca comprar pães e estranho o
comportamento do birosqueiro tratando-me com respeitosa deferência, “bom dia, professor, como vai o senhor?” Toda
a gente olhando-me pelas ruas, fazendo questão de bom dia, professor!
Chego
na escola, a secretária: “está importante
ein?”
Sem
entender nada, pergunto a ela o que está acontecendo.
“Não leu o jornal?”
Vejo.
O jornal de maior circulação popular, página inteira, a três, a mais nobre do
jornal: “sindicalista diz que órgão
público está prestes a pegar fogo”, com foto e tudo, euzinho apontando para
as instalações do ar condicionado toda chamuscada, equipamento mais velho que o
dinossauro de estimação do Niemayer, e seguem-se as minhas declarações.
Exposição
tão gostosa quanto esta só no dia da posse de Collor.
Escondemos,
eu e mais dois companheiros do sindicato, parte dos dados da inflação do mês,
apurados no Rio de Janeiro, blefando que os tínhamos recolhido na Mangueira,
onde se apura o índice nacional.
Parte
do plano, companheiros começam a ligar para os órgãos de imprensa, dando conta
do ocorrido: direção do sindicato do IBGE seqüestra os dados da inflação,
impossibilitando que o governo hoje empossado tome pé da situação econômica.
Por
enquanto só falatório interno, no próprio órgão, e nas redações, os colloridos
nos chamando de terroristas e os derrotados nas eleições nos elegendo heróis,
núcleo de resistência ao “retrocesso”.
Estou
absorto, compenetrado, redigindo o boletim do dia seguinte, a greve continua,
quando uma companheira entra apressada: “a
Tevê G. está aí. Você fala.”
“Pô, não tem ninguém de bobeira por aí? Tem
que ser eu?”
“Você é o mais
articulado... Fala você, antes que algum porra-louca pegue o microfone.”
S.
M., simpatia e ética jornalística.
Aperto
a mão, “como vai?”
“Tudo bem. Que história é essa de seqüestrar
as informações, justo no dia da posse do homem?”
Primeira
de uma série de perguntas.
Profissional
competente para arrancar o que quer e honesta o bastante para proteger o
informante.
“Isso só em off, Sandra, você não vai botar
no ar senão vai melar tudo.
Está tudo aqui no
prédio, numa gaveta, em local seguro. A gente só não vai é entregar.”
Muitas
risadas depois, escolhe o melhor lugar pra gente gravar.
Edição
rápida e, pouco mais de uma hora depois, a notícia no Jornal Nacional, quando
ainda não era o Jornal Papai-mamãe, no vozeirão de Cid Moreira: “direção do sindicato do IBGE seqüestra os
dados da inflação.”
Telefone
enlouquecido, gente de todo o canto, “cuidado
aí, pessoal! Olha a polícia federal, companheiro! Onde é que vocês colocaram os
relatórios? É isso aí, não cede não companheiro! É melhor vocês saírem voado,
vai dar merda!” Os comentários ainda restritos ao Rio de Janeiro.
Nove
e pouco da noite, telefones congestionados.
Agora
é gente do Brasil todo querendo detalhes, minha cara no Jornal Nacional, “está em local seguro, protegido, e a
devolução deverá passar por uma negociação tensa. Há um vazio de poder por
causa da transição. Essa é uma maneira de sabermos quais serão os nossos
interlocutores daqui para diante. Queremos parar a greve, mas eles mesmos
dificultam”, minha mulher no telefone: “você
apareceu no Jornal Nacional, vão te prender. Vem embora, filho, larga isso de
lado.”
“Calma, filha, é só um blefe, amanhã de
manhã estou em casa, fica calma, vai dormir. As crianças viram?”
In “Não
Haverá Mais Natais”, romance autobiográfico.
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